A VELHA AÇAÍ

Ajuizava mais o vício que os afazeres. Bebia cachaça constantemente transformando esse hábito em uma formalidade beirando um rito. Seus tragos eram ingeridos em curtos intervalos de tempo durante o dia. Durante a noite, seu sono era interrompido pontualmente, exatamente na hora cerimonial do gole que lhe instigaria na continuidade do seu viver.
O efeito do álcool lhe incitava na proclamação diversa de insultos e afrontas estarrecedoras dispensadas a tudo e a todos ao seu redor, os quais no seu entender eram os responsáveis diretos por todos os desencontros e desordens existentes no mundo.
Dando fé do estoque prestes a esvair-se e na perspectiva não promissora do seu reabastecimento, sob o perigo iminente da sobriedade infalível a rondar-lhe de perto, multiplicava-se sobremaneira a abastança do seu vocábulo de injúrias.
Residia única em uma palhoça um pouco afastada das demais da vila de São Domingos do Araguaia. Seus entes familiares evitavam-lhe o contato. Não suportavam, por mais esforços que dispusessem, os insultos da anciã.
Seu ofício era a quebra e coleta do côco babaçu, o que lhe rendia o de comprar a parca alimentação daquele resto de gente que era o seu corpo magro, enrugado e murcho, feito um maracujá passado de maduro. Isso por que encurtava na compra da alimentação, para esticar na compra da cachaça cotidiana.
Durante a semana ia para o Almescão, arranchando-se na Fazenda Pedra de Amolar, em casa de uns conhecidos seus, os quais não davam muita importância àquele seu modo implícito que eram os seus xingamentos sem fim.
Pelos pastos e matas daquela fazenda era onde a velha Açaí, nos intervalos entre um e outro gole da pinga que lhe era inseparável, juntava os frutos das palmeiras e usando um porrete e um machado, cortava-os ao meio. Cada parte do fruto partido era também partida ao meio, restando quatro partes de onde eram retirados os quatro bagos do babaçu, os quais eram depositados dentro de um tiracolo feito de olho de pindoba.
Realçava-se sob a escaldante luz do sol a alvura dos cabelos eriçados da velha Açaí, que com o cachimbo escuro, da cor da sua pele, sugava pelo canto da boca desdentada, grandes baforadas de fumo, sentada ao lado da garrafa de pinga e de um monte de frutos de babaçu, o machado entre as pernas, de gume para cima e com o cabo preso sob a perna direita, um fruto seguro na mão esquerda e apoiado sobre o fio do machado, o porrete na mão direita com o qual desferia uma forte pancada sobre o fruto partindo-o ao meio, com uma força e destreza de causar admiração, principalmente em se tratando daquele fragmento de gente que era a velha bêbada, a vela Açaí; Em cada pancada o rogar de uma imprecaução; cada bago depositado dentro do tiracolo o lance de uma maldição; cada gole um descompor do ofício; cada pitada no cachimbo uma cusparada e uma afronta à divindade, perdurando assim até ao meio dia essa associação arbitrária de ira e revolta com o labor, quando finalmente depois de mais um gole, mastigava alguns bagos de côco e um punhado de farinha de puba, o que se resumia em sua refeição do almoço. Depois cochilava abraçada à garrafa de cachaça, sob a sombra de uma árvore mais próxima. Com pouco despertava, entornava mais um trago da pinga, e dava continuidade à labuta que se estendia até ocultar-se o sol por detrás da linha escura entre o horizonte rubro e o verde do pasto, que era a densa mata mais a frente.
Era numa sexta feira. A cachaça estava esgotando-se. O mau humor da velha excedia-se na perspectiva de se ver sem pinga. Mesmo assim naquela manhã bem cedo, a dona da casa onde a velha arranchara-se resolveu segui-la para também quebrar côco e dos bagos coletados tirar o leite para temperar a caça que seria servida no almoço.
? Hoje vamos quebrar côco é lá na mata, dona Açaí, que é debaixo de sombra, é melhor, mesmo que seja um pouco mais longe.
? Com os diabos, mulher, eu só penso é na desgraça das muriçocas, mulher, no demônio dos carrapatos e na peste das mutucas, não tem cão que agüente... Arre, besta fera!
? Credo, dona Açaí, Deus a livre com tantos nomes feios...
? Qual nada, mulher, eu quero mais é que este mundo infeliz se acabe logo, é melhor, nem que eu vá pro inferno me abraçar com o capeta...
? Cruz credo, dona Açaí!
Nesse diálogo as duas mulheres saíram dos pastos e adentraram na mata, seguindo por uma varrida feita por caçadores. Os xingamentos da velha abafavam o rumorejo da mata. O canto das aves, dos guaribas, o farfalhar do vento nas folhas das árvores, a pisada de animais sobre galhos e folhas secas, o criquilar dos grilos, o esturro da onça ao longe, tudo havia se calado para ouvir com perplexidade as imprecauções da velha Açaí.
Seguindo na frente a passos vacilantes das pernas esqueléticas e arqueadas, o vestido comprido varrendo as folhas e garranchos da beira do caminho, o côfo de palha a tiracolo pendurado nas costas e com o machado e o porrete dentro, a garrafa de pinga pela metade ia prensada com extrema pertinência sob as axilas, o cachimbo expelindo um fio azul de fumaça, o vento malinando nos cabelos eriçados, assim ia a velha Açaí, ruminando palavrões que a outra não conseguia decifrar com os ouvidos, porém sabia tratar-se de mal criações, nomes feios, palavrões de todos os gêneros contra tudo e contra todos na face da terra.
De repente a velha estacou virando-se para a outra que seguia logo atrás, dizendo-lhe:
? Com os diabos, mulher, vai indo e me espera logo ali depois daquela curva, que eu vou urinar. Estou que não me agüento com uma vontade tão grande de mijar, que nem mesmo o cão pode medir.
Colocou novamente o cachimbo no canto da boca, depois de tomar um trago e depositar a garrafa sob as axilas, e ficou esperando a outra a sumir-se na curva da varrida.
Chegando um pouco depois da curva, a outra colocou o seu tiracolo com o machado e o porrete no chão, sentou-se sobre um tronco de quina caído bem na beira do caminho e ficou a esperar pela velha.
Enquanto esperava pela companheira, meditava no quanto aquela anciã xingava, no porquê da existência de semelhante criatura, na quantidade de bebida alcoólica que consumia habitualmente, na freqüência com que permanecia com aquele fétido cachimbo em atividade, alimentando-se mal e mal, e no entanto demonstrava uma saúde de ferro, como se ainda estivesse muito aquém dos seus mais de setenta anos de idade...
Por vezes sentia medo daquela criatura de aspecto fantasmagórico, com fisionomia de bruxas das quais formulava aparências em seu pensamento quando ouvia sua mãe lhe contar histórias de velhas feiticeiras, no seu tempo de menina.
Naquele momento mesmo principiou-lhe um repentino medo daquela velha horrível, quando esperava a qualquer momento vê-la aparecer no caminho sombreado, logo depois daquela curva, cambaleante, as pernas tortas, aquele vestido comprido que parecia ter vida própria em seu balançar desobediente ao movimento do corpo da velha, aquele cachimbo fumegante no canto da boca murcha e sem dentes, aqueles cabelos eriçados em forma de pavios e aquela voz rouca, de bruxa, que só profere nomes feios, xingamentos e heresias. Aquela velha só pode é ter parte com o demo. Onde já se viu, xingar até o próprio Deus? Cruz credo!
Aceitava-a como hóspede em sua casa mais por receio que por simpatia. Temia para si uma praga rogada por aquela velha horrorosa, pois quem é como aquela criatura, com certeza tem parte com o capeta, e rogando praga para uma pessoa, é certo que pega, pega no ato.
Deu uma sacudidela de cabeça, como se tentasse afastar aqueles pensamentos, fez o sinal da cruz e tornou os olhos para a curva do caminho. Nada da velha.
Aguçou os ouvidos e percebeu que a mata reassumira a sua postura natural, deixava novamente os seus rumores fluírem sem nenhuma timidez, sem nenhum receio, desenvolta e alegre, sob a luz filtrada por frestas entre a folhagem, do sol que já se adiantara por beira de um quarto de dia. Foi quando resolveu voltar para ver o que a velha estava a fazer naquela demora. Com certeza devia de ter voltado para casa em busca de cachaça, pois a que vinha trazendo já estava na iminência de esgotamento. A velha não estava na mata.
Enquanto fazia o percurso de volta, refletia sobre um fato curioso que percebera desde a primeira vez em que acompanhou aquela velha na quebra de côco. Era só entrarem na mata e abafavam-se os rumores da natureza. Todos os sinais de vida móvel evacuavam-se, como se receosos tomassem prudente distância daquela velha, daquela criatura sinistra. Os pássaros cessavam os seus cantos, os bichos se aquietavam em suas tocas, em seus ocos de paus, uma barreira qualquer em qualquer lugar impedia o passear da brisa fresca por entre os ramos das árvores que se mantinham imóveis e encolhidas, como se criassem olhos assustados e lançantes de olhares perplexos e atemorizados para a presença incômoda e ameaçadora daquela velha dentro da mata. Tudo se assustava com ela. Tudo se estremecia ao som de suas palavras blasfemas. Tudo fugia da sua presença.
Chegando ao local onde a velha havia ficado, não a encontrando, concluiu que ela havia mesmo voltado para casa, em busca de mais bebida.
Ao chegar a casa, indagando os meninos sobre notícias da velha, ficou sabendo que para ali também ela não tinha retornado. Remexeu a boroca da velha e encontrou a garrafa de pinga que ela supostamente teria vindo buscar. Então concluiu com certeza que dona Açaí também não retornou para casa.
? Onde será que se meteu? Será que se perdeu aí por esse imenso trecho de mata?
Enviou um dos meninos a ir chamar os homens que estavam no serviço, para verem o que se poderia fazer, os quais mal terminaram de engolir o almoço, embrenharam-se na mata a procura da velha.
? Onde se meteu a velha Açaí?
Aqueles quinze homens se dividiram em grupos de três, cada grupo tomando um rumo diferente, e gritando, dando tiros para o alto, com espingardas de caça, fazendo toda sorte de barulho dentro da mata, para nortearem a velha de onde ela possivelmente poderia estar, terminaram por retornarem à sede da fazenda, já ao cair do crepúsculo daquele primeiro dia de buscas sem resultados. Nem a velha, nem o tiracolo, nem o machado, nem o porrete, nem a garrafa de cachaça, nem o cachimbo e nem a embalagem do fumo. Tudo desapareceu com ela como por encanto.
? Onde se meteu a velha Açaí?
? Onça não foi, pois se fosse, a gente teria encontrado as coisas da velha ? Opinava uns durante aquela noite, sentados ao redor de uma grande fogueira que ardia em frente à casa grande da fazenda.
? Sucuri também não ? Diziam outros ? Sucuri não engole o freguês com tiracolo, machado, porrete e tudo mais.
? Ela deve de tá é morta Por aí ? Concluíam uns terceiros ? Se for isso, amanhã nós acha ela, pelos urubus na sua carniça.
O dia seguinte foi todo de buscas sem resultados. No terceiro dia, já espalhada a notícia do sumiço da velha Açaí, todos os homens da vizinhança juntaram-se, um grupo de mais de cinqüenta pessoas que fizeram um pente fino desde o lugar onde a Dona Açaí desapareceu até a um raio de trinta quilômetros, e nada, nem um vestígio da velha. Nem urubus, nem carniça, nem um farrapo de suas roupas, nem tira colo, machado, porrete nem um sinalzinho se quer. Somente a alegria estampada na presença de cada rumor da mata, de cada árvore e planta, de cada animal, da brisa portadora do aroma de flores silvestres, como se todos e tudo soubessem do paradeiro daquela velha, todavia conluiados guardavam isso em segredo, desdenhando dos que infrutiferamente a procuravam.
O sumiço da velha Açaí, de notícia passou a mistério; Como pode alguém desaparecer assim, sem mais e nem menos, sem deixar nenhum rastro, nenhum sinal de vida ou de morte? Qual seria a fera daquelas matas, capaz de devorar uma pessoa com todos os pertences que carrega no momento? Não! Naquela região ou mesmo na face da terra não existe animal capaz de tal proeza. Onde se meteu a velha Açaí?
Por fim a notícia veio parar na cidade (Na época Distrito de São Domingos do Araguaia). O Prefeito do Município colocou três caminhões da Prefeitura à disposição para o transporte dos que estivessem dispostos a irem ajudar nas buscas.
Mais de trezentos homens liderados pelo Vereador Natalício Nogueira, fizeram um pente fino por toda a mata da região do Almescão, do Cuxiú, da Maria muçal, Sororó, enfim, de onde a velha sumiu até a um raio de cem quilômetros, porém nada foi encontrado. Nem a velha, nem o seu tiracolo, nem o seu machado, nem o seu porrete, nem o seu cachimbo, nem a sua garrafa de pinga e nem o seu saquinho de fumo.
? Onde se meteu a velha Açaí?
Sendo encontradas somente coisas há muito tempo perdidas por castanheiros, caçadores, que eram facas, facões, machados, panelas, cartuchos de espingardas, lamparinas, garrafas, tudo já bastante envelhecidos e enferrujados, os quais eram recolhidos e amontoados bem em frente a casa grande da fazenda.
Depois de um mês inteiro de buscas sem nenhum efeito, e principalmente pelo fato de um dos que faziam parte do grupo de buscas, chamado julhão, ter encontrado uma agulha de costurar sacos, perdida por ele mesmo a cerca de dez anos atrás, quando o mesmo cortava castanha do Pará naquele ponto de coleta, tendo perdido a sua agulha, e para não ter que andar trinta quilômetros a pé até ao povoado de São Domingos, optou por um improviso de confeccionar uma, feita de uma lasca de canela.
? Quem acha uma agulha perdida há dez anos, por que não achar um ser humano perdido há apenas trinta dias? ? Dizia o julhão exibindo a sua velha agulha já bastante corroída pela ferrugem. Diante desse fato, o povo desvaneceu de procurar a dona Açaí, e cada um foi para a sua casa, para os seus afazeres, porém carregando consigo a perplexidade diante daquele sumiço misterioso.
? Onde se meteu a velha Açaí?
Até aos dias atuais ainda perdura esse misterioso sumiço que virou lenda:
? Onde se meteu a velha Açaí?
De uma coisa todos são de comum acordo: A velha não morreu dentro daquelas matas. Nem de morte natural, pois se assim fosse, seus restos teriam sido encontrados, da mesma forma como os seus pertences. Devorada por alguma fera também não foi, pois dessa forma também haveria de deixar alguma pista da mesma maneira.
? Onde se meteu a velha Açaí?
Na opinião de todos, o diabo a levou, pois com certeza haveria de gostar por demais daquela velha, pelo muito que ela blasfemava, pelo tanto que xingava, pela quantidade que bebia e pelo nada que amava. Só pode o capeta a ter levado para si. Se assim não foi, então onde se meteu a velha Açaí?
Foi-se embora para bem longe? Não, pois quem foge, se for por terra, haverá de deixar seu rastro; Se for por água, deixará o banzeiro, e se for pelo ar, certamente deixará a sua sombra. Então, onde se meteu a velha açaí?