AUTORAS:

ANA MARINA SOEIRO PEREIRA

FRANCYANE SOUZA FERNANDES DOS SANTOS

  

A USUCAPIÃO URBANA ESPECIAL COMO INSTRUMENTO PARA O CUMPRIMENTO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

 

INTRODUÇÃO

O direito à propriedade é um tema que há muito vem sendo enfrentado por toda a sociedade. Muitos foram os entendimentos firmados sobre este assunto sendo que, dentre estes, Locke destacou-se afirmando ser a propriedade um direito natural do indivíduo, que não poderá ser violado por qualquer terceiro e nem mesmo pelo Estado, que possui aqui a responsabilidade e o objetivo de conservar a propriedade, pois a partir do momento em que o homem lhe dedicava o seu labor, esta se tornaria sua propriedade privada (PEREIRA, 2004).

Entretanto, a evolução legal e social quanto a novas concepções sobre o tema e o crescimento populacional das cidades acarretando sérios problemas sociais, fez surgir a necessidade de se buscar soluções para garantir vida digna a todos os indivíduos.  Nesse contexto, a Constituição Federal brasileira estabeleceu o direito à propriedade como um direito fundamental, devendo esta atender à sua função social (TARTUCE, 2011).

Segundo Anjos Filho (2010), esta garantia é considerada uma conquista social, que se estende a todos os indivíduos indistintamente e que deve ser satisfeita na sua maior medida possível. Sendo assim, na busca pela promoção efetiva deste direito constitucional, foram instituídos espécies de usucapião para a aquisição de propriedade e, dentre outras medidas, o Estatuto da Cidade, que regula a previsão do instituto específico ‘usucapião urbana especial’ com o objetivo primordial de promover a função social da propriedade, melhorar a qualidade de vida da população, legitimar a posse e ainda garantir o direito social à moradia.

As questões envolvendo as ações de usucapião no direito brasileiro e nas discussões sociais estão cada vez mais presentes no dia a dia dos juristas. Desta forma, observando a importância não só jurídica como também social deste assunto, vê-se a necessidade de um estudo adequado que relacione tais especificações no sentido de se analisar as possibilidades de utilização da usucapião especial urbana em consonância ao Estatuto da Cidade e a garantia legítima à propriedade no tocante à promoção de sua função social.

1 A EVOLUÇÃO DA AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE E SUA PREVISÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Desde os primórdios, o homem sempre conferiu grande importância à propriedade.  Inicialmente, esta era pensada por uma ênfase comunitária, onde o domínio sobre as coisas dificilmente era relativizado. Na era romana, o papel da propriedade passou a ser desenhado de uma forma mais individualista, e o que era coletivo gradativamente tornou-se privado. Passado o tempo e advindas as transformações sociais, os modelos de propriedade foram se adequando e tornando-se cada vez mais flexíveis (DINIZ, 2010).

Traçando uma evolução da teoria da propriedade instituída no direito romano, viu-se, a princípio, o delineamento do fato, garantindo a manifestação, e da norma, disciplinando-o. O estudo jurídico da propriedade adveio na Idade Média e teve o marco de sua instauração histórica na Revolução Francesa. Para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a propriedade foi tida como direito inviolável e sagrado e na Revolução Francesa, tomou um caráter democrático, sem privilégios ou direitos perpétuos (RICCITELLI, 2009).

Para Anjos Filho (2010), o Código de Napoleão (Código Civil Francês de 1804) foi o marco da inclusão jurídica do direito individual à propriedade. Neste momento, a propriedade foi tida como um direito natural, inalienável e também não suscetível de prescrição, tornando-se o principal instituto do direito privado. Apesar dessa configuração absolutista, já existia neste código uma norma referente à obrigação do uso da propriedade conforme as leis e os regulamentos específicos.

Com o advento do constitucionalismo liberal, a propriedade tornou-se o protótipo dos direitos individuais pertinentes a toda e qualquer pessoa. John Locke dizia que “a aquisição da propriedade é direito natural a todo homem, sobre as coisas da natureza, por meio de seu trabalho que representa o que há de mais próprio a cada pessoa” (RICCITELLI, 2009, p. 24). Aqui, a propriedade passou a ser protegida, constitucionalmente, como direito subjetivo (contra as expropriações do poder público) e como instituto jurídico (contra tentativa do legislador em suprimi-la ou alterá-la) (RICCITELLI, 2009).

No Brasil, as concepções constitucionais de direito de propriedade transformaram-se conforme os anseios sociais de cada época. Neste sentido, o direito de propriedade compreende diversas instituições relacionadas ao texto constitucional em vigor, e não apenas ao direito de propriedade imobiliária. A origem e aplicação da chamada função social da propriedade deu-se ao longo deste processo evolutivo, tendo o seu primeiro destaque na Constituição de 1934, que, além de manter a propriedade no rol dos direitos e garantias individuais, viu a propriedade pela primeira vez na linha do interesse social e ordem econômica (PEREIRA, 2004).

As Cartas anteriores, a Constituição Imperial de 1824 e a Constituição Republicana de 1891, trouxeram a propriedade como um direito individual, mas sem qualquer referência à questão do interesse social, ou seja, a propriedade era um direito individual, mas não se configurava como um direito social. Neste período, a propriedade era regulada apenas como condição básica para a proteção dos direitos civis, políticos e também para a garantia da liberdade e segurança individuais (HOLZ, 2008).

Na Constituição Federal de 1946, o destaque se deu  na subordinação do exercício da propriedade ao bem estar social, conforme a redação do seu artigo 147: “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do artigo 141, §º 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. A Constituição de 1967 foi pioneira ao tratar a função social da propriedade como um princípio da ordem econômica e social. Esse fato representou considerável etapa para a ampliação da função da propriedade no país (PEREIRA; MARCONDES, 2011).

Segundo o Código Civil brasileiro, em seu artigo 1228, o proprietário tem o direito de gozar, usar e dispor dos bens de sua propriedade, podendo reavê-los de quem os detenha injustamente.  Hoje, sabe-se que o conceito de propriedade vai além desta fundamentação e que a demarcação do seu conteúdo depende de tantos outros fatores. Esta flexibilização do direito de propriedade ganhou ênfase com a configuração da Constituição Federal de 1988 e a prerrogativa da função social (GIANCOLI, 2012). 

Na Carta Constitucional de 1988, a propriedade tem o seu fundamento de uma maneira que demonstra a tendência constitucionalizante do Direito Civil. O artigo 5º, em seus incisos XXII e XXIII, trata especificamente sobre a garantia do direito à propriedade, desde que esta atenda a sua função social. O artigo 170, incisos II e III, prevê a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica. Os artigos 182, 183 e 186 ensejam, da mesma forma, sobre a função social da propriedade (LUCIANO, 2012).

A função social da propriedade fundamentada na Carta Magna de 1988 consiste em, duplamente, limitar o direito de propriedade e também realizar a sua promoção. A noção de promoção é a que melhor se encaixa aos valores atuais vividos pela sociedade e, neste sentido, a aquisição da propriedade visa, essencialmente fazer transcorrer esse objetivo base da função social da propriedade, garantindo aos indivíduos o gozo pleno deste direito fundamental (PEREIRA; MARCONDES, 2011).

2 USUCAPIÃO NO DIREITO BRASILEIRO

O artigo 5º da Lei 601, de 1850 e que diz respeito à legitimação de posse, é tido como o precedente mais remoto relacionado ao ‘usucapir’ no país. Esta lei definia que os posseiros poderiam adquirir o domínio das glebas por eles ocupadas com a condição de haver a comprovação de cultura efetiva e moradia habitual. A partir da Constituição Federal de 1934, passou-se a consagrar, dando ênfase a uma forte preocupação social, a aquisição de propriedade especificada como usucapião pro labore, cujo objetivo era propiciar melhores condições ao pequeno produtor rural (BASTOS; MARTINS, 1990).

A Carta Magna vigente dedicou os Capítulos II e III especificamente à política urbana e à política agrícola e fundiária. O texto constitucional manteve a usucapião especial no campo (artigo 191), e inovou ao estender a sua aplicação às propriedades urbanas (artigo 183), no intuito de amenizar as questões e problemas envolvendo habitação, conseqüentes do rápido, adensado e desordenado crescimento populacional nos meios urbanísticos. Nestes dois casos, o constituinte vetou a possibilidade da aquisição de bens públicos pela posse prolongada (PEREIRA; MARCONDES, 2011).

A usucapião é apenas uma das formas existentes para a proclamação da aquisição originária da propriedade de bens, e também de outros direitos reais, como a habitação, enfiteuse, o uso, ainda o usufruto. Este feito se dá mediante a posse prolongada e ainda pelo preenchimento de outros requisitos específicos determinados legalmente e exigidos ao possuidor (DINIZ, 2010).

Neste sentido, Silva (2012, p. 4) afirma que

A usucapião é forma de aquisição da propriedade, e para o seu reconhecimento são necessários dois elementos básicos, quais sejam, a posse e o tempo. Entende-se que este instituto é uma modalidade de aquisição originária da propriedade ou de outro direito real sobre coisa alheia, consistente na posse ininterrupta, com intenção de dono, sem oposição e no decurso do prazo previsto no Código Civil. Pode ser considerada como uma forma de alienação prescrita na lei, na qual o legislador permite que uma determinada situação de fato que se alongou por certo intervalo de tempo determinado na lei, transforme-se em situação de direito.

Tratando dos requisitos, o primeiro e mais importante a ser citado consiste no prazo determinado pela legislação civil, que corresponde àquele que deverá ser comprovado pelo possuidor quanto ao tempo em que se encontra na posse do imóvel. Outro requisito é a posse ininterrupta do bem pretendido, sem qualquer intervalo. No mais, para que se possa requerer a usucapião, impõe-se ainda a posse sem oposição, ou seja, o possuidor interessado deverá comprovar, no pedido da usucapião, que aquele bem não foi requerido por outrem. O justo título e a boa fé são requisitos de caráter complementar (MÜLLER, 2012).

Rodrigues (2003) complementa que a posse que gera aptidão à obtenção da usucapião é aquela contínua, pacífica, incontestada com intenção de dono, no prazo estipulado. Sendo assim, a posse que tenha intervalos, vícios, defeitos ou contestação não instituirá a usucapião. Sobre o tempo, a posse deve, acertadamente, durar pelo prazo estipulado nas leis, ou seja, nem mais e nem menos do que o determinado.

A aquisição de propriedade poderá ser originária ou derivada. Na originária, o domínio emana do assenhoramento autônomo da coisa independe de atos de vontade do titular anterior. Neste caso, a propriedade mantém-se sem os vícios d o direito do antecessor. Na derivação, pressupõe-se um dono anterior, que transmite os direitos ao adquirente. Nesta, os mesmos defeitos existentes anteriormente são repassados ao adquirente. Isso se registra pela leitura dos artigos 492 e 495 do Código Civil (NOBRE JÚNIOR, 2008).

A aquisição por usucapião é determinada como originária, pois, neste caso, o direito obtido é desvinculado do proprietário anterior, que não atua na transmissão do bem ao adquirente. Sendo assim, a usucapião dar-se-á com a conjunção do tempo e da posse, sendo a conduta formalizada por ato judicial. Há casos em que o anterior dono poderá nem existir. Mesmo sendo esta o pensamento doutrinário majoritário, Santiago Dantas e Caio Mário da Silva Pereira defenderam a usucapião como aquisição derivada (NOBRE JÚNIOR, 2008).

Sobre a natureza jurídica da aquisição por usucapião, vislumbram-se duas principais correntes. A primeira é a objetiva, que presume a renúncia do direito de propriedade de um determinado indivíduo, que demonstra inércia e passividade. A segunda, subjetiva, está pautada na utilidade e função social, no tocante a estabilizar e garantir a proteção e segurança da propriedade, consolidando e resguardando as aquisições (SILVA, 2012).

Venosa (2007) afirma que o principal efeito da ação de usucapião é constituir título ao usucapiente, que é oponível ‘erga omnes’, gerando a transferência do bem. Estas possibilidades de posse continuada produzirem como efeito a aquisição da propriedade se dá, para o autor, pela questão social e axiológica. Seria uma espécie de premiação ao indivíduo que utiliza o bem de forma útil, em desfavor da outra parte que se despreocupa em relação ao tempo, sem utilizar o bem ou não impedindo que outro o faça.

Reiterando esse entendimento, Bessone (1996) alega que, num primeiro olhar, a prescrição pode até parecer injustiça. Porém, esta prescrição realmente se dá pelas razões de ordem social que pleiteiam a usucapião, especialmente no que diz respeito ao interesse de transformar os estados de fato em estados de direito. A inexistência desta prescrição poderia gerar certa onda de instabilidade, pois poderiam surgir impugnações tardias, afetando as novas relações constituídas.

Sobre as espécies de usucapião Rodrigues (2003), infere que no Código Civil de 1916 existiam duas espécies, que seriam a extraordinária e a ordinária. Além destas, a Constituição de 1934 instituiu a usucapião especial, pro labore ou constitucional, que, assim como as outras, se mantém até os dias atuais. O novo Código deu destaque a este tipo de aquisição, cuidando dela primeiramente quanto os modos de aquisição de propriedade imóvel, e criou novas espécies de usucapião, como a especial urbana, que será vista a seguir.

3 UMA VISÃO SOBRE A LEI DENOMINADA “ESTATUTO DA CIDADE”

A Carta Constitucional brasileira, em sua promulgação, trouxe em seu texto a preocupação do legislador quanto à função social da propriedade, buscando assim através de previsões no artigo 5º, 182 e 183, garantir à população moradia que lhe proporcione vida digna, segurança, paz e que atenda às suas necessidades básicas. Contudo, somente esta previsão não foi suficiente diante do crescimento desordenado da cidade e o aproveitamento inadequado do solo (SAULE JÚNIOR, 2005).

O Brasil, assim como outros países não desenvolvidos, tem prevalência à ocupação informal, sem observância aos planos e leis urbanísticas. Estas ocupações irregulares, segundo ambientalistas, trazem riscos ao cidadão assim como ao meio ambiente, pois estão instaladas em regiões frágeis como: córregos, beira de rios, mananciais, mangues, encostas. Estas regiões ficam livres em razão de não deterem valor comercial ao ramo imobiliário, que tem estabelecido no país um mercado limitado, elevando o preço dos imóveis, fomentando a segregação social e a informalidade, haja vista os indivíduos com menor poder aquisitivo não possuir condições de adquirir a moradia própria diante dos elevados custos (CARVALHO, 2010).

Diante dessa situação, alguns doutrinadores têm afirmado que o Estado tem permitido a realização de ocupações irregulares por não encontrar outra forma de garantir a moradia. Como este é um direito de todos os indivíduos, a moradia irregular passa a funcionar como “uma válvula de escape para a flexibilização de regras”. Contudo, alerta-se que essa concessão só existe em regiões com valor depreciado, pois o que se tem visto é que o “mercado mais do que a lei – norma jurídica – é que define onde os pobres podem morar ou invadir terras para morar. Há uma lógica que relaciona mercado e aplicação da lei” (CARVALHO, 2010, p. 9).

Saule Júnior (2004, p. 23) diz que o direito a moradia não é garantido à população brasileira, pois

“As cidades estão longe de oferecer condições e oportunidades eqüitativas a seus habitantes. A maior parte da população urbana está privada ou limitada – em virtude de suas características econômicas, sociais, culturais, étnicas, de gênero e idade – nas possibilidades de satisfazer suas mais elementares necessidades. Diante de tal realidade, nosso desafio é construirmos cidades justas e democrática, baseado nos princípios da solidariedade, liberdade, equidade, dignidade e justiça social”.

Diante do contexto de grande desigualdade social enfrentado no país, foi criada a Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade, que foi obtida graças aos esforços de diversos segmentos sociais, como: ONGs, movimentos sociais, entidades profissionais, parlamentares, dentre outros. A lei tem como objetivo criar possibilidades para a resolução dos problemas ora enfrentados e é hoje considerada uma conquista da sociedade.

Esta lei busca regular a propriedade de forma que venha possibilitar à grande maioria da população brasileira o direito a moradia, buscando dirimir a exclusão territorial, a segregação social e visando obter o melhor aproveitamento da propriedade urbana, inserindo o cidadão em um ambiente urbano eficiente, garantindo a sua vida e de sua família de forma sustentável. Busca ainda assegurar a “construção de cidades mais justas e ambientalmente equilibradas” (CARVALHO, 2010, p. 6). No mais, traz normatizações quanto ao planejamento urbano, do solo urbano, regularização de propriedade informal, participação social nos planos, orçamentos, gestão urbana, entre outros (CARVALHO, 2010).

Para Venosa (2007, p. 150) esse Estatuto tem por objetivo “regulamentar os artigos constitucionais estabelecendo diretrizes gerais de política urbana”, e ainda beneficiar os indivíduos e promover o desenvolvimento sustentável da população de baixa renda, atendendo aos reclames sociais, pois tem cunho eminentemente social, sendo enxergado por muitos como um instrumento que restringe o direito individual à propriedade em face do interesse coletivo (VENOSA, 2007).

Saule Júnior (2005) afirma que esse Estatuto busca realizar uma integração entre os direitos humanos e o direito a moradia, passando este direito a também ser visto sob uma perspectiva econômica, social, cultural e ambiental. Contudo, ainda não se conseguiu assegurar a todos os indivíduos o direito garantido constitucionalmente à moradia e à cidade, pois apesar dos grandes benefícios trazidos por esta lei, há ainda inúmeras dificuldades a serem superadas no país.

4 A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA E O CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A propriedade foi uma instituição que sofreu modificações diversas ao longo do tempo. Na antiguidade, já teve grande relação com a religião, pois se entendia que a família deveria fixar-se ao solo como o próprio altar religioso. Acreditava-se que a família deveria nascer e morrer naquele solo, onde seria a sua residência permanente, não podendo deixá-lo, salvo sob motivo de ‘força superior’. Os gregos chegaram a afirmar que a religião foi quem ensinou o homem a construir sua primeira casa. Desta forma, o homem da antiguidade tinha menos problemas quanto à questão de propriedade, pois, em virtude de sua religião, este direito “era superior e inviolável a qualquer outro direito” (COULANGES, p. 80-91, 2011).

Contudo, com a evolução social, o homem passou a ter concepção diversa de propriedade, pois se passou a entender que não se tratava de uma questão absoluta e individual, mas esta deveria ser utilizada respeitando a coletividade. Nesse contexto, diversos doutrinadores passaram a entender que não é o título de proprietário que garante ao indivíduo o solo, mas a utilização que é dada a esta terra, fazendo com que esta exerça a sua função social e garantindo ao cidadão a propriedade (HOLZ, 2008).

Neste sentido, Venosa (2007, p. 150) afirma que “a propriedade atualmente não é vista somente como um direito, mas também como uma função e como um bem coletivo de adequação social e jurídica”. São estabelecidas na sociedade formulações acerca da função social da propriedade, vindo ordenamentos diversos a buscarem se adequar a essa nova realidade vivida, tendo-se no ordenamento jurídico brasileiro sua previsão na Constituição Federal, artigo 182 e ainda no artigo 39 do Estatuto da Cidade (VENOSA, 2007).

 No Brasil, nessa busca por garantir a moradia e promover a função social da propriedade, foi criada uma forma nova de aquisição da propriedade com caráter social que é o usucapião especial urbana, sendo também reconhecido como usucapião constitucional ou pró-moradia, vindo a ser consagrado na Constituição Federal Brasileira, artigo 183 que diz:

“aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

Além do texto constitucional, encontra-se ainda a reafirmação no artigo 1240 do Código Civil, e principalmente a sua implementação no Estatuto da Cidade que traz nos artigos 9º e 10º a normatização quanto às duas modalidades existentes para esta forma de usucapir que são: a individual e a coletiva.

Para Gonçalves (2013), esta forma de usucapião deve ser utilizada como instrumento para promoção da função social da propriedade, tornando assim possível a coexistência de inúmeros proprietários garantindo seus direitos, pois sua criação se deu em decorrência das inúmeras ocupações irregulares que passaram a existir nos centros urbanos (GONÇALVES, p. 266, 2013).

Com o advento desta lei houve a preocupação quanto às situações anteriormente formadas, vindo a ser atribuído um prazo que foi contado desde a publicação da lei até que corressem cinco anos. Portanto, só a partir de cinco de outubro de 1993 é que puderam ser formulados os primeiros pedidos de usucapião especial urbana, buscando-se a proteção das posses anteriores, tendo este prazo efeitos ex nunc, isto é, não retroagiria a situações anteriores (GONÇALVES, 2013).

Alguns requisitos foram atribuídos para que haja a concessão desta modalidade de usucapião, quais sejam: que a área urbana ocupada não seja superior a 250m², a posse seja mansa e pacífica de cinco anos ininterruptos, sem oposição e com animus domini, isto é, além de utilizar a terra para morar deverá comportar-se como se proprietário fosse. Essa moradia será do possuidor (tanto homem quanto a mulher) ou de sua família, independente do estado civil. Não há necessidade de comprovação do justo título e boa fé, pois há uma presunção relativa da existência destes requisitos (TARTUCE, 2011).

Esta modalidade de usucapião só poderá ser reconhecida uma única vez ao indivíduo, conforme previsão no parágrafo 2º do artigo 9º desta lei, pois segundo Tartuce (2011, p. 187) essa medida visa garantir o “direito mínimo de moradia (pro misero)”, e para essa comprovação bastará que o possuidor declare em seu pedido que não é proprietário de outro imóvel urbano ou rural, cabendo ao réu contradizer através de provas os fatos alegados pelo autor. Caso o cidadão venha a ser contemplado, ele não poderá utilizar novamente esta modalidade para adquirir uma nova propriedade, ainda que seja em local diverso do primeiro.

Segundo Greco (2008), objetivando a preservação da moradia familiar, o parágrafo 3º do mesmo artigo instituiu a possibilidade de somar-se a posse do herdeiro com a de seu antecessor desde que já resida no imóvel quando ocorrer à abertura da sucessão.

A ação de usucapião especial urbana coletivo encontra sua previsão no artigo 10 da Lei 10.257/01, vindo o legislador a criar a possibilidade de famílias com baixa renda e que ocupam áreas de forma irregular tenham a possibilidade de unirem-se e conjuntamente usucapirem, para que se tornem proprietários da área, desde que não se consiga identificar individualmente cada um dos terrenos (SILVA, 2012).

Esta modalidade tem como requisitos para sua aquisição a necessidade de que a área ocupada seja de propriedade particular, urbana e superior a 250 m2, devendo haver posse de no mínimo cinco anos ininterruptos, sem oposição e com ânimo de dono, devendo esse imóvel ser utilizado para moradia. Contudo, ressalta-se que há entendimentos de que este requisito poderá ser encarado como a utilização do imóvel para comércios tais como: botecos, quitandas, etc. Porém, deve haver na localidade a predominância de moradias (SILVA, 2012).

Nesta modalidade assim como na usucapião individual não poderá ser o indivíduo proprietário de outro imóvel (rural ou urbano), e somente poderá ser concedida a usucapião especial uma única vez ao indivíduo, e não sendo possível ação de usucapião coletiva à propriedade pública (GRECO, 2011).

Essa ação não poderá ter interesses em conflitos, pois ninguém pode ser obrigado a litigar. Quanto à formação de litisconsortes, se a moradia for possível de ser desmembrada da área, poderão ser formados litisconsortes facultativos; contudo, há de se observar a existência de situações que não existe a possibilidade de desmembramento assim, o cidadão deverá concordar em participar da ação em virtude da necessidade de formar-se litisconsórcio necessário, caso contrário, poderá os demais litisconsortes ingressar com ação e realizarem a citação da parte omissa para que figure no pólo ativo. Se esta aceitar, ingressará na ação; caso contrário, deverá o juiz analisar o fato, verificando a procedência da ação, ou se a recusa do indivíduo configura abuso de direito (SILVA, 2012).

A sentença que será declarada pelo juiz servirá como título para realização do registro no cartório de imóveis. Ressalta-se que deverá o juiz distribuir de forma igualitária a fração do terreno a cada um dos ocupantes, salvo se houver acordo escrito de outra forma. Por fim, deverá existir o estabelecimento de um condomínio especial tendo suas deliberações tomadas por maioria dos votos dos presentes e que após sua constituição se tornará indivisível ou extinto, salvo se houver deliberação de pelo menos dois terços dos condôminos (TARTUCE, 2011).

Esta modalidade de usucapião tem sido vista como uma forma de regularizar a situação fundiária nas grandes cidades, haja vista a comprovação do prazo de ocupação ocorrer de forma coletiva, devendo assim ser comprovada pela comunidade o prazo de existência da ocupação e não o prazo de cada morador individualmente.

Ressalta-se que apesar de sua promulgação do Estatuto da Cidade há doze anos, ainda existe a concepção da propriedade como direito absoluto e não relativizado em razão da sua função social, dificultando assim, o acesso de uma grande parcela da população à moradia digna. Nesse sentido, para que seja efetivada a função social da propriedade, é imperioso que os municípios regulamentem e utilizem os instrumentos dispostos no Estatuto da Cidade, para que seja garantida moradia digna resolvendo um dos principais problemas que afligem grande parte da população brasileira que vive em condições irregulares (HOLZ, 2008). 

CONCLUSÃO

Desde os primórdios, o homem sempre conferiu grande importância à propriedade.  Inicialmente, esta era pensada por uma ênfase comunitária, onde o domínio sobre as coisas dificilmente era relativizado. Na era romana, o papel da propriedade passou a ser desenhado de uma forma mais individualista, e o que era coletivo gradativamente tornou-se privado. Passado o tempo e advindas às transformações sociais, os modelos de propriedade foram se adequando e tornando-se cada vez mais flexíveis.

Passou-se a ter a noção de propriedade como direito absoluto e inalienável, contudo diante da evolução social o conceito de propriedade foi além desta fundamentação vindo a ocorrer à flexibilização do direito de propriedade que ganhou ênfase no cenário brasileiro com a configuração da Constituição Federal de 1988 e a prerrogativa da função social.

 Nesse sentido, além da inserção no texto constitucional e no Código Civil veio a ocorrer posteriormente a criação e promulgação do Estatuto da Cidade que trouxe de forma mais ampla e pormenorizada a usucapião especial urbana, ficando evidente a crescente preocupação com as questões relacionadas à inclusão social, meio ambiente e relações fundiárias.

Através desta pesquisa bibliográfica, pôde-se perceber explicitamente o grave problema que acomete os centros urbanos brasileiros no que tange às grandes ocupações irregulares, em decorrência do abuso existente pelo mercado imobiliário e pela falta de políticas públicas que cumpram efetiva e eficazmente seu papel na sociedade brasileira. Vivendo um grande número de pessoas de forma marginalizada e irregular, não lhes sendo garantido o direito fundamental à moradia e, sobretudo a uma vida digna.

Desta forma, é necessário que se observe a ação de usucapião urbana especial como um instrumento que possibilita o exercício da função social da propriedade, devendo os municípios lançar mão à sua utilização para que as cidades proporcionem uma vida justa, segura e digna a todos os cidadãos.

REFERÊNCIAS

ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. A função social da propriedade na Constituição Federal de 1988 [artigo científico]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2010.

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra.  Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990. v. 7.

BESSONE, Darcy. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

CARVALHO, Celson Santos; ROSSBACH, Ana Cláudia. O Estatuto da Cidade comentado. São Paulo: Ministério das Cidades/Aliança das Cidades, 2010.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma, 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 4.

GIANCOLI, BrunnoPandori. Direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.   

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 5.

GRECO, Leonardo. A Ação de Usucapião Urbana do Estatuto da Cidade, Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, ano 2, volume II, Jan-Dez, 2008

HOLZ, Scheila. Política de habitacão social e o direito a moradia no Brasil. X Coloquio Internacional de Geocrítica 2008.

LUCIANO, Nelson Rangel. A função social da propriedade e a ação de usucapião. Âmbito Jurídico 2012, v. 15, n. 98.

NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Perfil da usucapião constitucional [artigo]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

PEREIRA, Wander; MARCONDES, Suzana Kássia Borges. A transformação da concepção de propriedade na ordem constitucional brasileira. Revista Âmbito Jurídico 2011, v. 14, n. 94.

RICCITELLI, Antonio. A propriedade como garantia constitucional. Revista do Curso de Direito do Centro Universitário FMU 2009, v. 22, n. 31.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das coisas. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 5.

SAULE JÚNIOR, Nelson; CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil, São Paulo: Instituto Pólis, 2005. 160p.

SILVA, Julian Gonçalves da. As modalidades de usucapião e seus requisitos processuais. Conteúdo Jurídico 2012.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das coisas. 3. ed.São Paulo: Método, 2011. v. 4.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 7. ed. São Paulo: Atlas Jurídico, 2007. v. 5.