Laura Rita Cardoso[1]

                                                                       Isabelle C. Pereira[2]                                                                                                                                                                                                    Viviane de Brito[3]

                                    

 

Sumário: Introdução; 1. O Direito de Propriedade; 2. A Função Social da Propriedade. 3. O Instituto da Usucapião;3.1 Conceito e características; 3.2. Usucapião ordinária e extraordinária; 3.3 Usucapião especial rural e urbana; 3.4 Usucapião indígena; 3.5 Usucapião administrativa; 4. A Usucapião especial urbana coletiva e sua estreita relação com o conceito de função social da propriedade; Considerações Finais; Referências.

 RESUMO

O direito de propriedade ganhou espaço de destaque nos ordenamentos jurídicos principalmente com base nos ideais liberais acerca dos direitos individuais. Contudo, diversas foram as mudanças pelas quais passaram os diversos sistemas legais no mundo, marcadamente em relação às reivindicações de um Direito mais aberto e condizente com a noção crescente de interesse coletivo. Foi com base nessa nova perspectiva que aumentou significativamente seu grau de importância que a ideia de função social foi aliada a diversas garantias. Nesse sentido, o direito de propriedade foi tingido com uma faceta que impõe sua fruição dentro de ditames que levem em consideração a função social e a preocupação com o interesse comum. Introduzindo essa forma de limitação da propriedade, associada com uma espécie de aquisição da mesma (a usucapião)o presente trabalho busca analisar a chamada usucapião especial coletiva urbana como um efetivo mecanismo que alia de forma concreta a propriedade com a necessidade de sua utilização voltada para a coletividade e para o interesse comum, marcadamente relacionada ao direito de uma moradia digna.

Palavras-Chave:Propriedade. Usucapião Urbana Coletiva. Função Social.



[1]Aluna do 5º Período da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco -UNDB

[2] Aluna do 5º Período da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB

[3]Profª Esp. Orientadora

 INTRODUÇÃO

O trabalho se desenvolve a partir da análise de alguns elementos atinentes à usucapião e sua relação com o princípio da função social da propriedade. A análise acerca do instituto da usucapião implica vê-lo como um mecanismo que possibilita a interpretação da propriedade como um direito que deve ser exercido em consonância com a sua vertente coletiva e social e não apenas com uma visão individualista e eminentemente econômica de tal direito

A partir de tal ótica, verificaram-se inúmeras transformações na interpretação acerca do direito de propriedade, que foram resultado de claras viragens no paradigma de muitas garantias, especialmente sociais, e que acabaram exercendo consideráveis influências no entendimento de alguns institutos, sendo que alguns foram alargados e outros sofreram sérias limitações.

A Constituição Federal de 1988, ao trazer a propriedade privada associada ao conceito de função social (artigo 170, II e III) institui os balizamentos pelos quais tal direito deverá ser fruído, estabelecendo alguns elementos necessários para a interpretação deste.

Com base nesses requisitos, impende analisar a ligação efetivada entre o instituto da usucapião com a noção de função social da propriedade presente no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, levando em conta a interpretação constitucional e o tratamento dado pelo Código Civil de 2002, além das regulações provenientes por outros diplomas legais, marcadamente O Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/01).

Tomando como base este último diploma, busca-se analisar a modalidade chamada de usucapião especial urbana coletiva e sua estreita relação com o conceito de função social da propriedade, vendo-a como um instituto que mais alia a ideia de tal direito com a necessidade colocada pela Constituição brasileira de 1988 com relação à sinalização da fruição do direito de propriedade em estreita relação com o ideário coletivo de interpretação dos direitos que antes eram vistos apenas pela ótica privada.

Com base em tais afirmações, o trabalho a ser desenvolvido buscará analisar tal instituto, vendo suas particularidades, requisitos, e elementos constitutivos e sua relação com o conceito geral de usucapião e sua relação com a interpretação privada e pública, eminentemente associada à influência realizada pelo texto de 1988 e os diplomas posteriores tratando do tema.

A partir de planejamento, o trabalho se desenvolverá tomando como base alguns aspectos entendidos como relevantes para a temática aqui proposta. Dessa forma, a estrutura de capítulos abaixo colocada tentará abarcar a temática proposta e os elementos entendidos como relevantes para o citado desenvolvimento.

 1  DIREITO DE PROPRIEDADE

 O direito de propriedade é indubitavelmente uma garantia que teve longa construção doutrinária, aparecendo dentre aquela faixa de direitos de “primeira geração” a partir da conformação jurídica que entendeu a importância da defesa da propriedade privada, contra outros particulares ou a ação do Estado. A força que teve a defesa de tal direito decorreu caracteristicamente do peso que teve o pensamento liberal dos séculos XVIII e XIX.

A Constituição da República de 1988 dispõe no artigo 5º, XXII; “é garantido o direito de propriedade”. Tal dispositivo eleva a propriedade à condição de direito individual, e como tal, entendido como clausula pétrea. A importânciade dessa garantia é bastante significativa, porque seu tratamento decorre do próprio caput do citado dispositivo, como se vê; 

Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (grifos nossos).

 Acerca das características de tal direito é predominante o entendimento que o mesmo tem caráter absoluto, em decorrência de alguns elementos, dentre eles: a sua oponibilidade erga omnes, a sua completude na categoria dos direitos reais, já que do direito de propriedade decorrem vários outros. No que diz respeito a esse aspecto, o art. 1.231 do Código Civil dispõe: “a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”. Dessa forma, para descaracterizar tal direito o opositor deverá provar que a propriedade não é absoluta no caso concreto. (DINIZ, 2010, p.116).

Outra característica da propriedade é sua exclusividade da qual se depreende que duas pessoas não podem ser simultaneamente proprietárias exclusivas de um mesmo bem. Nas palavras de Maria Helena Diniz (2010, p.116): “O direito de um sobre determinado bem exclui o direito de outro sobre o mesmo bem.” Pode-se colocar também como característica do direito de propriedade a sua plenitude, resultante da autonomia que o proprietário tem de usar o bem como melhor convir, respeitando apenas certas limitações legais assim como o dever de que a fruição do direito de propriedade deve atender a sua função social. (DINIZ, 2010, p.116-7).

Segundo Pereira (2006, p.92), as característicasdo direito de propriedade referentes ao uso, gozo e o poder da livre disposição da coisa podem estar reunidos no domínio de um indivíduo, perfazendo o que se denomina de pleno exercício do direito. Acerca desse aspecto e das outras características anteriormente comentadas, Guilherme Calmon da Gama (2011, p.222) assevera:

 O direito de propriedade é em si mesmo uno e, por isso, a condição normal da propriedade é a plenitude, sendo a limitação excepcional. Além disso, a propriedade, como expressão da senhoria de determinado indivíduo sobre a coisa, é excludente de outra senhoria sobre a mesma coisa, daí a exclusividade. Diante de tais circunstancias, a propriedade presume-se plena e exclusiva, eis que livre de restrições e de coparticipação jurídica (CC, art.1.231). trata-se de uma presunção iuris tantum. A reunião de todas as faculdades nas mãos do titular do direito de propriedade implica a noção de propriedade plena. Ao revés, caso tenha havido algum destaque de uma ou várias faculdades do direito de propriedade que possam gerar a formação de direitos reais sobre coisa alheia, haverá propriedade restrita. 

Como adiante se observou o direito de propriedade é aquele entendido como mais completo, do qual resultam outros direitos. A sua importância decorre em grande medida da relevância econômica que a propriedade tem para o direito. Quanto maior for tal importância, mais intensa será a proteção a este direito e menos limitação a sua fruição terá. Ao longo do tempo e das modificações de paradigma com relação a algumas garantias, a propriedade, assim como outros direitos, sofreram consideráveis ressignificações, e sua utilização passou a ser pensada sob outros enfoques, que muitas vezes, acabaram por limitar o efetivo uso do direito. A necessidade de que o direito de propriedade seja gozado atendendo a sua função social foi uma dessas modificações sensíveis, o que se passa a analisar a seguir.

 2  FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

 A necessidade de que a propriedade atenda sua função social é um elemento que se faz presente em várias constituições pelo mundo: Argentina (art. 38); Alemanha (art. 14); França (preâmbulo); México (art. 27, §3º).

A Constituição da República, acerca de tal elemento, dispõe no seu art. 5º, XXIII – “A propriedade atenderá sua função social”. Igualmente no art. 170, III, estipula a necessidade de que a ordem econômica deve observar, dentre outros princípios, a – função social da propriedade. Esta concepção também aparece no art. 182, § 2º do texto maior – “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”

De um modo geral prepondera a importância de tal princípio e cada vez mais se impõe limitações à propriedade em razão da necessidade de que tal direito esteja em conformidade com o interesse coletivo em detrimento da fruição unicamente individual e meramente econômica da garantia ora em análise. Em atenção a essa modificação de interpretação do direito de propriedade, alguns diplomas legais já proporcionaram limitações, de forma direta e indireta, a esta garantia.

Como exemplo dessa mudança é a Lei n.º 6.969/81(tratando da aquisição especial rural) que diminuiu o prazo da posse para prescrição aquisitiva. A Constituição (arts. 183 e 191) institui o prazo de 5 anos na área rural e também na área urbana, quando se discute a usucapião especial. Além disso, outros diplomas possibilitam a desapropriação para fins de reforma agrária em uma nítida direção de relativização da propriedade quando se tem em discussão o interesse coletivo. (RIZZARDO, 2011, p.176).

Acerca da viragem pela qual passa a noção de direito exclusivamente individual Aroldo Moreira afirma:

 Assim, os direitos sociais, como designação genérica, entreabrem novo horizonte na universidade de conceitos, definições, mandamentos e leis político-jurídicas, de ordem pública e privada, cujo desiderato não é outro que a satisfação imediata das necessidades sociais, tendo em vista o bem comum, através do equilíbrio entre ambos os elementos: o individual e o social, enquanto aquele não contraria este. (MOREIRA, p. 95). 

A substituição da noção de indivíduo pela noção de pessoa humana exerceu contribuição relevante no aumento da importância que teve o elemento coletivo para a interpretação do direito de propriedade. Acerca desse aspecto Gama leciona que:

O estágio atual é o de negação ao exacerbado individualismo, marca indelével do período das codificações oitocentistas e, desse modo, o novo modelo, fundado na integração dos valores coletivos nas relações intersubjetivas, se instrumentaliza na noção de função social. A inserção dos valores democráticos no tema da propriedade impõe torná-la mais permeada de valores sociais e culturais de inclusão e efetivo aproveitamento do bem. (2011, p.228).

Com base nessa mudança de perspectiva a propriedade não pode mais ser concebida como direito desprovido de concreta garantia aliada à ideia de coletividade. A função social deve ser pensada como uma faceta de relevância marcadamente importante na análise do direito aqui analisado.

 3. O INSTITUTO DA USUCAPIÃO 

Para o objeto que se busca analisar, o estudo da usucapião torna-se de importância relevante, além de introduzir o elemento específico por meio do qual a relação entre este instituto e a função social da propriedade acaba por ser efetivada. 

3.1 Conceito e características 

Na Era Antiga, o instituto da usucapião já se encontrava vinculado aos direitos das coisas, em especial à área imobiliária (GAMA, 2011, p. 319). Justamente, este tópico tem como finalidade abordar sobre a usucapião, que dentro do direito civil, é uma das formas de aquisição da propriedade. Bem como demonstrar suas espécies no direito civil.

A palavra usucapião, tem origem do latim, usuque significa “pelo uso” e capere“tomar” (RIZZARDO, 2011, p. 245). Ou seja, pela própria junção das palavras, entende-se que a usucapião é a aquisição de algum pelo devido ao seu uso prolongado.

Segundo Clóvis Beviláquia, o mesmo entende que “usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada” (BEVILÁQUA, apud RIZZARDO, 2011, p.245). Já Pedro Nunes complementa a conceituação de usucapião, no qual é um “meio de adquirir o domínio da coisa pela sua posse continuada durante certo lapso de tempo, com o concurso dos requisitos que a lei estabelece para este fim” (NUNES, 2000, p. 11).

É notável que tanto para Beviláquia, quanto para Nunes, a usucapião se dá pelo tempo. Ou seja, a aquisição da propriedade pela usucapião se dará por sua posse contemporizada, bem como deverá observar alguns requisitos que a legislação aborda sobre esta instituição.

No Código Civil brasileiro, a usucapião está regulada nos artigos 1.238 a 1.244. Para aquisição da propriedade, nos artigos 1.239 a 1.242. Para os bens imóveis, nos artigos 1.238 a 1.242. Para os bens móveis, nos artigos 1.260 a 1.262.

Para o direito civil brasileiro, a usucapião tem como finalidade a proteção à função social da propriedade[1], resguardando o direito de propriedade ao seu, àquele que até então era possuidor, passando a ser proprietário sobre àquele bem.

Porém, para aquisição mediante a usucapião, o até então possuidor deve observador alguns requisitos para garantir a propriedade do bem.

O primeiro requisito, a doutrina classifica como pessoal, ou seja, este requisito está direcionado ao possuidor – aquele que deseja ter a propriedade do bem, e àquele que deixa de ser o proprietário.

Sobre a capacidade, o direito civil entende que o relativamente incapaz pode vir a usucapir, porém o mesmo não ocorre com os absolutamente incapazes (GAMA, 2011, P. 323).

O segundo requisito é o chamado real. Só ocorrerá a usucapião das coisas, sobre bens corpóreos, e está não absorverá os bens públicos, conforme artigos 183, § 3º e 191, parágrafo único da Constituição Federal de 1988[2].

Ademais, a usucapião é uma aquisição de outros direitos reais, dentre estes, o usufruto, servidões, o uso e a habitação (GAMA, 2011, p. 324).

O terceiro requisito da usucapião são os formais, que nada mais é as características próprias deste instituto do direito civil. Como características principais da usucapião, encontra-se a posse e o tempo.

É a prolongação da posse que garante ao possuidor o direito à propriedade. Porém, esta posse (para que ocorra a usucapião) deve ser pacífica e mansa, ou seja, não pode haver nenhuma oposição neste caso, bem como esta, deve ser ininterrupta.

Passadas os requisitos preliminares da usucapião, faz-se necessário fazer uma abordagem às espécies deste instituto. No direito civil brasileiro, há quatro espécies de usucapião.

 3.2 Usucapião ordinária e extraordinária

 A usucapião ordinária é destinada aos bens móveis e imóveis, a qual, para sua aquisição o possuidor deve tê-la no prazo ininterrupto de 03 (três) anos para bens móveis e de 10 (dez) anos para bens imóveis, sem nenhuma oposição, bem como possuir justo título e boa-fé. (DINIZ, 2010, p. 325).

O justo título não é um documento, mas um ato jurídico ao qual tem a finalidade de auxiliar a transferência da propriedade, ou seja, é um dado objetivo. Já a boa-fé incide no agir do possuidor, ou seja, de pensar que está agindo corretamente com base no justo título. (GAMA, 2011, p. 327-328)

Já a usucapião extraordinária também destina-se aos bens imóveis e móveis, o decurso de seu prazo é de 05 (cinco) anos para bens moveis e de 1 (quinze)[3] nos para bens imóveis, ambos prazos ininterruptos, porém neste tipo de usucapião não há necessidade de se provar justo título e boa-fé[4]. (DINIZ, 2010, p. 325).

 3.3 Usucapião especial rural e urbana

 Nesta espécie de usucapião, tanto a rural como a urbana possuem o mesmo prazo de 05 (cinco) anos para a obtenção da propriedade. Porém, na usucapião urbana, além do prazo de 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, bem como a área deve compreender 250m², sendo que esta deve ser sua moradia e de sua família. (GAMA, 2011, p. 329).[5]

Ainda no mérito da usucapião urbana, o possuidor não poderá ser proprietário de outro bem imóvel urbano ou rural, conforme a segunda parte do art. 1.240 do Código Civil.

Já usucapião rural está regulamentada no art. 1.239 do Código Civil, esta possui praticamente às mesmas características da usucapião urbana, porém a área rural deve compreender até 50 (cinquenta) hectares, bem como esta deve servir para sua moradia ou produtiva para seu trabalho. (GAMA, 2011, p. 331). 

3.4 Usucapião indígena

 O Estatuto do Índio, a Lei nº 6.001/73, institui a pessoa do índio o direito a usucapião, entretanto, para que este se torne proprietário do bem, deve resguardar alguns requisitos.

Este tipo de usucapião está direcionada a pessoa do índio, que possua pelo prazo de 10 (dez) anos ininterruptos de forma pacífica e mansa área de terra inferior a cinquenta hectares. (GAMA, 2011, p. 333)

Ademais, mesmo havendo uma legislação de proteção à pessoa do índio, também lhe é vedado a usucapião sobre os bens públicos, conforme art. 38, da Lei nº 6.001/73.

 3.5 Usucapião administrativa

 A usucapião administrativa – Lei nº 11.9779, art. 60–, muito se assemelha à usucapião urbana, sua legitimação de posse é regularizada em Cartório de Registro de Imóveis, porém não necessita de uma ação jurisdicional (GAMA, 2011, p. 336).

Ademais, a usucapião administrativa se destina aos bens públicos e particulares, com previa acepção do Plano Diretor do Município onde a área se localiza (GOMES, 2010, p. 48)

Esta usucapião tem como finalidade a desjudicialização da aquisição da propriedade e, assentamentos urbanos (MELO, 2008, p. 148), a exemplo, o projeto do governo federal ‘Minha casa, minha vida’.

Ou seja, a usucapião administrativa foi implantada com a finalidade da regularização fundiária por interesse social, dando sentindo à função social do direito à moradia, bem como será analisado em tópico posterior. 

4.A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA COLETIVA E SUA ESTREITA RELAÇÃO COM O CONCEITO DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

 O Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001) foi elaborado no sentido de regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição da República, dispondo acerca dos direcionamentos da política urbana brasileira. No citado diploma muitos problemas receberam tratamento, marcadamente aqueles relacionados ao desenvolvimento urbano e a importância que o direito de morar tem para o contexto, principalmente atual, consubstanciado em diversos planos e programas em níveis macro, que tratam atual e sério problema da moradia.

Vale mencionar que o estatuto da cidade estabelece normas de ordem pública e interesse social no sentido de regular o uso da propriedade urbana em prol do interesse comum, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, conforme resta estipulado no parágrafo único do art. 1º do citado diploma. Dessa forma, os mecanismos lá desenvolvidos buscam sempre a otimização da utilização do espaço urbano, com vista a adequar o interesse particular ao relevante interesse coletivo.

A introdução do conceito de gestão democrática da cidade é importante sinalizador da ideia de função social aqui trabalhada. O espaço urbano deve ser pensado de forma plural, atendendo as necessidades coletivas e não apenas interesses particulares desvinculados de um entendimento macro dos problemas que assolam os espaços urbanos não somente no Brasil, mas em quase todos os países com grandes nichos urbanos necessitando de tratamento.

Pensar em gestão democrática significa atentar de forma bastante significativa para o problema da população de baixa renda, desprovida de reais condições humanas de moradia.

Torna-se bastante característico a possibilidade trazida por esse diploma legal com relação à chamada usucapião especial urbana coletiva. Pelo estudo aqui concretizado, essa modalidade de aquisição da propriedade está em perfeita harmonia com o conceito de função social da propriedade, por possibilitar a fruição coletiva de um bem em detrimento da anterior inadequação de tal direito pela sub ou inutilização individual do mesmo.

É marcante que tal possiblidade verificada com a utilização de tal instituto seja direcionada ao tratamento de uma séria problemática da população de baixa renda, mesmo que o maior obstáculo seja mesmo o cumprimento de certos requisitos, destacando-se o transcurso de prazo prescricional (5 anos) e a inexistência de outro bem com mesma característica por parte de quem busque auferir a vantagem social e financeira com essa modalidade de usucapião.

O art. 10 da lei n.º 10.257/2001 dispõe:

 As áreas urbanas com mais de 250m², ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por 5 (cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são suscetíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários e outro imóvel urbano ou rural. 

A unidade familiar é certamente um das estruturas sociais que mais podem ser atingida de forma positiva por tal instituto, desde que, por óbvio, cumpram os requisitos previstos na referida lei. Contudo, é indubitável que a aquisição da propriedade por um meio coletivo (a ação de usucapião especial urbana coletiva), direcionada de forma preponderante ao contexto menos favorecido economicamente estabelece uma ressignificação bastante acentuada da ideia de propriedade e de sua ligação com o bem-estar coletivo. É bastante característica essa viragem de posicionamento que acaba por sinalizar positivamente para a mudança de pensamento acerca do engessamento do direito de propriedade, visto equivocadamente sob o viés unicamente individual.

A organização do espaço urbano passa necessariamente pela estruturação de ambientes coletivos de moradia, concebidos sob conceitos que sinalizem a necessidade ocupação regular e inteligente do espaço urbano, este que cada vez mais se torna pequena frente as necessidades postas. O problema da especulação imobiliária é outra dificuldade que deve ser trabalhada nos grandes centros e a usucapião aparece como mais um elemento que vai de encontro a esse sério problema de tais espaços.

Não se busca aqui afirmar que esse problema será resolvido por essa espécie de aquisição de propriedade, mas sim que seu incentivo, embasado em estrita vinculação à lei, proporciona mais um efetivo mecanismo de promoção da cidadania, fincada em um direito caro á todos – o direito de uma moradia digna, atendendo, por conseguinte os balizamentos já trazidos pela carta maior. Acerca dos principais destinatários do mecanismo aqui analisado GAMA assim leciona:

 A usucapião especial urbana, como instituto do direito à moradia, deve ser compreendida nas seguintes vertentes: (a) como instrumento de política urbana, em atendimento ao princípio da função social da cidade...; (b) como instrumento de regularização fundiária (...); (c) como instrumento de reconhecimento do direito à moradia em favor da população de baixa renda que ocupa coletivamente determinada área. (2011, p. 331). 

Fazendo referência à função social e nessa mesma esteira de importância que o coletivo passa a ter com os chamados direitos sociais, a modalidade de usucapião aqui analisada perpassa pela necessidade de que o aplicador do direito tem de interpretar tais institutos com base em valores éticos, econômicos e sociais. (GAMA, 2011, p.236).

Com base nessa concepção plural de direito, Rizzardo (2011, p.176-1770) leciona: 

...evidenciam-se novas concepções no direito de propriedade. Os poderes assegurados ao proprietário cedem antes outros direitos mais preponderantes e vitais, forçosamente reconhecidos em razão do direito natural. Assim, se uma determinada quantidade de pessoas estabeleceu em certa área, lá erguendo suas moradias , e não se lhe proporcionando qualquer outra oportunidade para fixar residência, é de direito que se proclame a função social da propriedade, a merecer tutela estatal, que encontra respaldo no próprio direito à vida... 

É justamente nesse sentido que deve ser pensada a propriedade, resguardada em estreita vinculação à lei, permitindo esta sua relativização quando as condições fáticas se fizerem presentes, ou seja, quando cumpridos os requisitos previstos no art. 10 da lei aqui em estudo. A propriedade deve figurar como meio de garantia da dignidade da pessoa humana, adequada ao fundamental direito de moradia. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A propriedade deve ser pensada como direito que abarque uma concepção plural de dignidade da pessoa humana. O direito à moradia aparece como uma faceta da garantia à propriedade, mas com destinação às camadas menos abastadas. Isso não se dá por diferenciação jurídica, já que a todos são resguardados os dois tipos de garantias, mas o enfoque é diferenciado e isso decorre, em grande medida, da necessidade de mudança para o tratamento da questão.

A função social da propriedade deve ser pensada como elemento norteador da fruição de tal direito e isso não pode ser renegado em toda hipótese, sob pena de se desvirtuar tal garantia. A usucapião especial urbana coletiva associa os elementos configuradores tanto da usucapião quanto da defesa do interesse coletivo, que deve ser adjacente em tal direito. É justamente esse o sentido a ser buscado pelo aplicador do direito:propriedade vinculada à sua destinação social. Para isso impende corroborar a necessidade de que a limitação da propriedade se dê também com a limitação legal da sua relativização, resguardando o direito concreto de usar, gozar e dispor da coisa.

A má utilização de uma garantia ou direito impõe resulta na possibilidade de que tal conduta reverta o efeito positivo que tal direito ou garantia tem para o indivíduo. A usucapião é uma prova disso e a necessidade de que a propriedade seja pensada adequando-se ao interesse comum acaba por influenciar consideravelmente o peso do efeito negativo da má utilização pelo seu proprietário.

  

REFERÊNCIAS

 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva 2010.


  GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da.Direitos Reais. São Paulo: Atlas, 2011.

GOMES, Rosângela Maria de Azevedo. A usucapião administrativa: breves considerações. In: Ferreira, Elaine Garcia (Coord.). Direito notarial e registral: questões polêmicas. Leme: Belo Horizonte, 2010.

 

MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Legitimação de posse dos imóveis urbanos e o direito à moradia. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.

MOREIRA, Aroldo. A propriedade sob diferentes conceitos. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

 NUNES, Pedro. Do usucapião. Rio de Janeiro. Livraria Freitas Bastos S.A., 1953; 5ª ed, atual por Evandro Nunes, Forense, 2000.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

ROCHA, Ibraim José das Mercês. Ação de usucapião especial urbano coletivo. Lei n.º 10.257/2001 (Estatuto da Cidade): enfoque sobre as condições da ação e a tutela. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov 2001. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/2406. Acesso em 29 out 2013.

  

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: Direito das coisas. São Paulo: Saraiva 2003.

 


[1] “No Brasil, em razão da Lei nº 6001, de 18.9.1850 – conhecida como Código de Terras -, houve estímulo à proteção da posse com função social diante do interesse econômico e social da nação com a produção e o povoamento” (GAMA. 2011, p. 319)

[2]“Art. 183 – Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§3º. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Art. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” (BRASIL, 1988).

[3]“...referente a usucapião extraordinária sobre imóvel, o Código Civil de 2002 inova ao estabelecer, no parágrafo único do art. 1.238, a redução do prazo de 15 (quinze) anos para 10 (dez) anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual (posse-moradia) ou nele houver realizado obras e serviços de caráter produtivo (posse-trabalho)”. (GAMA, 2011, p.327).

[4] “P. ex., posse incontestada de veículo furtado por mais de 5 anos pode leva a sua aquisição por usucapião extraordinária”. (DINIZ, 2010, p. 325).

[5] Este tópico será melhor trabalhado no último capítulo do presente estudo já que tem relação direta com o objeto aqui analisado.