A USUCAPIÃO COMO FORMA DE AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE NO DIREITO BRASILEIRO

 

Jânio Ponciano de Oliveira1

 

1 INTRODUÇÃO

 

O desiderato deste trabalho consiste em fazer uma análise sobre uma das formas de aquisição de propriedade imóvel e móvel, a usucapião, em suas diversas modalidades encontradas no atual ordenamento jurídico nacional que correspondem à Constituição Federal de 1988, ao Código Civil de 2002, ao Estatuto da Cidade de 2001 e ao Estatuto do Índio de 1967.

Desse modo, para a consecução de tal fim, percebeu-se a necessidade de discorrer, inicialmente, sobre os direitos reais e uma de suas formas de manifestação denominada de propriedade, haja vista o direito de propriedade ser considerado o mais importante e mais completo dos direitos reais, constituindo o título básico do Livro III do Código Civil Brasileiro.

No tópico subsequente, buscou-se mencionar de forma objetiva os inúmeros modos de aquisição de uma propriedade seja ela imóvel, seja ela móvel.

Em seguida, a definição, o fundamento e a natureza jurídica da usucapião são abordados seguindo orientações de grandes doutrinadores, além de realizar uma breve passagem desse instituto por diversos momentos históricos, desde seu surgimento até sua forma de manifestação atual.

Finalmente, realizou-se uma abordagem mais minuciosa do tema com base nas normas do ordenamento jurídico brasileiro então vigente, onde se procurou detalhar os requisitos imprescindíveis para a conquista da usucapião e, com isso, compreender sua importância para a realização da função social da propriedade.

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1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC, [email protected]

 

2 DOS DIREITOS REAIS

 

O direito das coisas, mormente denominado de direitos reais, constitui o ramo do direito civil mais influenciado pelo direito romano. Carlos Roberto Gonçalves (2012, v.5, p.19) citando definição clássica de Clóvis Beviláqua aduz que “direito das coisas é o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem”, ou seja, interessa ao direito das coisas unicamente aquilo que é passível de apropriação, uma vez que somente sobre ela pode recair um vínculo jurídico, qual seja, o domínio.

A doutrina compactua, ainda, com o entendimento de que todo bem consiste em uma espécie que tem como gênero coisa. Entende-se por bem como sendo tudo aquilo passível de apropriação contendo em si mesmo um valor econômico.

Para melhor precisar e delimitar o objeto dos direitos reais é necessário estabelecer uma distinção entre direitos reais e pessoais. Estes formam uma relação jurídica pela qual o sujeito ativo pode exigir do sujeito passivo certa prestação, logo possui como elementos o sujeito ativo, o sujeito passivo e uma prestação. Por outro lado, aqueles, os direitos reais, são direitos de conteúdo patrimonial, cujas normas estabelecem entre um sujeito ativo e uma coisa determinada uma relação imediata.

Ressalte-se, ainda, que as normas reguladoras dos direitos reais são de natureza cogente, ou seja, impositivas, enquanto que as que disciplinam os direitos pessoais, em regra, são dispositivas ou facultativas, pois permitem às partes exercerem suas vontades como assim as desejarem.

Outra diferença entre estes institutos recai sobre o modo de exercício. Como o direito real exerce-se sem a intervenção de um indivíduo, por conseguinte seu exercício caracteriza-se pela efetivação direta, isto é, não depende ele da colaboração de nenhum sujeito passivo para existir e ser exercido. Enquanto que o direito pessoal supõe necessariamente a intervenção de outro sujeito de direito.

Entre as demais características distintivas, Orlando Gomes (2007, p.16) destaca, ainda, que o objeto do direito real, necessariamente, há de ser uma coisa determinada, enquanto a prestação do devedor, objeto da obrigação que contraiu, pode ser de natureza genérica. Afirma também que o direito real concede ao titular um gozo permanente porque tende à perpetuidade, ao passo que o direito pessoal é eminentemente transitório, já que se extingue no momento em que a obrigação correspondente é cumprida.

Característica valiosa e muito lembrada dos direitos reais consiste naquela em que estes somente encontram um sujeito passivo concreto no momento em que é violado, pois, enquanto não há violação, dirige-se contra todos. Por outro lado, os direitos pessoais dirigem-se, desde o seu nascimento, contra uma pessoa determinada, e somente contra ela.

Com relação à figura cerne desse trabalho, a usucapião, esta somente adquire direitos reais, sendo assim não há que se mencionar em aquisição de direitos obrigacionais pela usucapião.

Os direitos reais, bem como os demais, observam alguns princípios. Dentre outros, destaca-se o princípio da aderência que se caracteriza pelo fato de o direito real permanecer incidindo sobre o bem, ainda que este circule de mão em mão e até mesmo se transmita a terceiros, pois tal direito segue a coisa, jus persequendi.

O princípio do absolutismo encontra-se intimamente relacionado com princípio anterior, uma vez que este gera além do direito de sequela, o direito de preferência ou jus praeferendi. Segundo Orlando Gomes (2007, p.19/20), ambos possuem a característica de:

 seguir a coisa em poder de todo e qualquer detentor ou possuidor. (...) diz-se que o direito real adere à coisa como a lepra ao corpo (uti lepra cuti). Não importam usurpações; acompanhará sempre a coisa. Se grava determinado bem, como no caso de servidão, nenhuma transmissão o afetará, pois, seja qual for o proprietário do prédio serviente, terá de suportar o encargo.

Destaca-se, também, o princípio da publicidade que poderá ser visualizado expressamente no art. 1.227 do atual Código Civil ao mencionar que os direitos reais sobre imóveis somente se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis e sobre os móveis, apenas após a tradição de acordo com os arts. 1.226 e 1.267 do mesmo código.

É indiscutível que o princípio da publicidade é responsável por fazer valer os princípios abordados anteriormente, uma vez que é com a publicidade que o direito real poderá ser oponível sobre terceiros, principalmente, em se tratando de imóveis.

Os direitos reais são criados e enumerados de forma taxativa pela lei. Dessa maneira, a lei limita o número, os tipos e as formas dos direitos reais, não cabendo, portanto, aplicação analógica. Para o direito, tal fato enseja no princípio da taxatividade ou numerus clausus, pois somente os direitos reais elencados pela lei podem ser considerados.

Nos direitos pessoais, não há esse sistema de delimitação legal das figuras. Existe certo número de contratos nominados, previstos no texto legal, podendo as partes criar os chamados inominados. Para isso, basta que sejam capazes e possua objeto lícito. Conclui-se, assim, que no ordenamento jurídico brasileiro, toda limitação do direito de propriedade que não esteja prevista na lei como direito real tem natureza obrigacional, uma vez que as partes não podem criar direitos reais.

Como os direitos reais existem de acordo com os tipos legais, pode-se citar também o princípio da tipicidade. Somente os direitos constituídos e configurados à luz dos tipos rígidos consagrados no texto positivo é que poderão ser tidos como reais. Nos direitos obrigacionais, ao contrário, admitem-se, ao lado dos contratos típicos, os atípicos, em números ilimitados. Por fim, o numerus clausus significa que nem todas as figuras que cabem no conceito de direito real são admitidas, mas tão somente as que forem previstas como tal.

Um princípio que apesar de não ser absoluto sobre os direitos reais, traz mais estabilidade quando comparado ao direito obrigacional é o princípio da perpetuidade. Como exemplo, tem-se a propriedade, abordada em detalhe no tópico seguinte, que é um direito real perpétuo, ou seja, não se perde pelo não uso, mas unicamente pelos meios e formas legais, como a própria usucapião, entre outros.

Os direitos obrigacionais, pela sua natureza, são eminentemente transitórios, ou seja, cumprida a obrigação, extinguem-se e também prescrevem caso não seja exigido o seu cumprimento dentro de certo tempo. É fácil essa percepção quando se verifica a essência de tais direitos, pois obrigações são pactuadas para serem cumpridas, por isso normalmente têm prazo predeterminado e é razoável que assim seja para garantir segurança às partes.

É cediço que não é possível a existência de dois direitos reais, de igual conteúdo, sobre a mesma coisa. Daí se infere o principio da exclusividade. Logo, não é possível instalar-se direito real onde outro já exista. Por exemplo, no condomínio, cada consorte tem direito a proporções ideais, distintas e exclusivas. É certo que, nos direitos reais sobre coisas alheias, há dois sujeitos: o dono e o titular do direito real. Mas em razão do desmembramento da propriedade, cada um deles exerce, direta e imediatamente, sobre a coisa, direitos distintos, sem a intermediação do outro.

Entre os direitos reais e obrigacionais característicos, há uma grande variedade de figuras que, conforme se distanciam dos extremos, tendem a se confundir. Por isso, a doutrina menciona, com efeito, a existência de algumas figuras híbridas, que se situam entre o direito pessoal e o direito real.

Para alguns, a nomenclatura de obrigação real é indevida, preferindo a expressão obrigação mista. Outros, entretanto, reconhecem mais adequada a denominação atribuída pelos jurisconsultos romanos, obligationes ob rem ou propter rem. Além desta, faz-se necessário também citar as obrigações com ônus reais e as obrigações com eficácia real.

Essa denominação, propter rem, alude a uma obrigação em consequência da coisa, ou seja, é a que recai sobre alguém por força de determinado direito real. Só existe em razão da situação jurídica do obrigado, de titular do domínio ou de detentor de determinada coisa. Ela é ambulatória, isto é, acompanha a coisa nas mãos de qualquer novo titular.

Mesmo o Código Civil não tendo isolado e disciplinado essa modalidade de obrigação, pode ela ser identificada em vários dispositivos esparsos e em diversas situações, como, por exemplo, na obrigação imposta ao condômino de concorrer para as despesas de conservação da coisa comum, na obrigação que tem o dono da coisa perdida de recompensar e indenizar o descobridor, na obrigação de indenizar benfeitorias etc.

A doutrina moderna entende que este tipo de obrigação propter rem situa-se em terreno fronteiriço entre os direitos reais e os pessoais, assim, configura-se como direito misto por revelar a existência de direitos que não são puramente reais nem  essencialmente obrigacionais. Tem características de direito obrigacional, por recair sobre uma pessoa que fica adstrita a satisfazer uma prestação, e de direito real, pois vincula sempre o titular da coisa.

Outra figura híbrida é a chamada obrigação de ônus real. Esta se limita ao uso e ao gozo da propriedade, constituindo gravames ou direitos oponíveis erga omnes, como, por exemplo, a renda constituição sobre imóvel. Aderem e acompanham a coisa, por isso se diz que quem deve é esta e não a pessoa.

Essencial é que, para haver efetivamente um ônus real e não um simples direito real de garantia, o titular da coisa seja realmente devedor, sujeito passivo de uma obrigação, e não apenas proprietário ou possuidor de determinado bem cujo valor assegura o cumprimento de dívida alheia.

Entre ônus reais e obrigações propter rem, destaca-se as seguintes diferenças: a responsabilidade pelo ônus real  é limitada ao bem onerado, não respondendo o proprietário além dos limites do respectivo valor, uma vez que é apenas a coisa que se encontra gravada; na obrigação propter rem responde o devedor com todos os seus bens, inclusive de maneira ilimitada, já que agora é o devedor que se encontra vinculado.

O ônus real desaparece, quando o objeto perece, enquanto os efeitos da obrigação propter rem podem permanecer, mesmo havendo perecimento da coisa. Aqueles implicam sempre uma prestação positiva sendo cabível uma ação de natureza real, enquanto estas podem surgir com uma prestação negativa, sendo de índole pessoal.

Por fim, as obrigações com eficácia real são as que, sem perder seu caráter de direito a uma prestação, transmitem-se e são oponíveis a terceiro que adquire direito sobre determinado bem. Certas obrigações resultantes de contratos alcançam, por força de lei, a dimensão de direito real.

Nota-se que quando o legislador entende que determinada relação obrigacional merece tratamento de maior proteção, concede a ela eficácia real, criando uma exceção à regra geral dos efeitos pessoais das relações obrigacionais.

 

2.1 Da propriedade

 

Muitas são as investigações de sociólogos, historiadores, economistas, políticos e juristas para tentar obter com maior precisão o conceito de propriedade. Percebe-se que não existe um conceito inflexível acerca do direito de propriedade.

Segundo Caio Mário da Silva Pereira (2008, v.4, p.81):

muito erra o profissional que põe os olhos no direito positivo e supõe que os lineamentos legais do instituto constitui a cristalização dos princípios em termos permanentes, ou que o estágio atual da propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu desenvolvimento. Ao revés, evolve sempre, modifica-se ao sabor das injunções econômicas, políticas, sociais e religiosas.

A raiz histórica do instituto da propriedade tem origem no direito romano, onde foi ela, desde os primeiros momentos, individual, dotada de caráter místico e contaminada de determinações políticas.

No início, somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade, como também, apenas o solo romano podia ser seu objeto, uma vez que a dominação nacionalizava a terra conquistada. A técnica da aquisição, formalizada por um cerimonial romano, restringia o fenômeno e limitava o domínio.

Depois, devido ao crescimento do império, o instituto expande-se aos estrangeiros, além de ser estendida a aquisição a outros solos. Surgiram, também, com a congregação de outros povos e culturas, diversas formas de uso e de aquisição das terras, fato este que obrigou os jurisconsultos a elaborarem novas técnicas jurídicas.

Com a invasão dos bárbaros, a instabilidade, a insegurança e o receio foram instaurados. Surgiu, então, a ideia de submissão e vassalagem, em troca de proteção e fruição da propriedade. Na medida em que a rede de devotamentos, assistência, auxílio e aliança se estendia, crescia o conceito de poder político ligado à propriedade.

Durante esse período, tinha-se a presença do nobre que, dentro de seus limites, distribuía justiça, cobrava tributos, declarava a guerra, celebrava a paz, bem como cedia o uso da terra ao servo, que a ela era vinculado não tendo o direito de se afastar, além de pagar, em dinheiro ou em frutos, para cultivá-la.

Ao ser instalada a monarquia absolutista, esta manifestação do domínio é afrontada e os poderes dela oriundos são desfeitos. Com a Revolução Francesa, pretendeu-se democratizar a propriedade, abolir privilégios e cancelar direitos perpétuos. Deste movimento surgiu um código, Code Napoléon, que serviu de modelo a todo movimento codificador no século XX e que deu tamanho prestígio a propriedade, que recebeu a denominação de “código da propriedade”, fazendo ressaltar acima de tudo o valor do imóvel como fonte de riqueza e símbolo de estabilidade. Com isso, estabeleceu-se uma concepção nova de aristocracia econômica.

Nos últimos anos, as alterações dos regimes jurídicos e políticos provocaram instabilidades, incertezas e modificações. Por isso, a propriedade, como resultado natural, recebeu permanente impacto. Para muitos, a propriedade individual então vigente não conserva as características idênticas ao de suas origens históricas.

Normalmente, nos dias atuais, visualiza-se uma imposição de restrições e limitações tendentes a coibir abusos e a evitar que o exercício do direito de propriedade se transforme em instrumento de dominação. Como se pode depreender do atual Código Civil, este não oferece uma definição de propriedade, mas tão somente, em seu art. 1.228, limita-se a enunciar os poderes do proprietário. Por isso, para desenvolver o tema, faz-se mister a utilização da doutrina civilista hodierna.

Seguindo as lições de Orlando Gomes (2007, p.109), “a propriedade é um direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto”.

Já para Maria Helena Diniz (2008, p.847), “a propriedade é um direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de uma coisa corpórea ou incorpórea, bem como de reivindicar de quem a injustamente a detenha”.

Quando todos os elementos anteriormente mencionados estiverem reunidos em uma só pessoa, será ela titular da propriedade plena. Se, entretanto, ocorrer o fenômeno do desmembramento, passando alguns deles a serem exercido por outra pessoa, diz-se que a propriedade é limitada.

O primeiro elemento constitutivo da propriedade é o direito de usar, jus utendi, que consiste na faculdade de o dono servir-se da coisa e de utilizá-la da maneira que entender mais conveniente, sem, no entanto, alterar-lhe a substância, podendo excluir terceiro de igual uso. Porém, tal utilização deverá ser realizada dentro dos limites legais e de acordo com a função social da propriedade, como preceituam o atual Código Civil e a Constituição Federal. Esta faculdade em apreço permite também que o proprietário deixe de usar a coisa, mantendo-a simplesmente inerte em seu poder, em condições de servi-lo quando lhe convier.

O direito de gozar ou usufruir, jus fruendi, compreende o poder de perceber os frutos naturais e civis da coisa e de aproveitar economicamente os seus produtos. É, portanto, o direito de explorá-la economicamente. A linguagem corrente, muitas vezes, emprega a expressão em sentido mais abrangente, inserindo no direito de gozar o de usar, tendo em vista a normalidade lógica do emprego da coisa.

Já o direito de dispor da coisa, jus abutendi, consiste no poder de transferir a coisa, de gravá-la de ônus e de aliená-la a outrem sob qualquer título. Não significa, todavia, prerrogativa de abusar da coisa, destruindo-a gratuitamente, pois a própria Constituição Federal prescreve que o uso da propriedade deve ser condicionado ao bem-estar social, ou seja, só poderá o proprietário assim agir, quando tal ato não caracterizar um ato antissocial. Este direito é considerado o mais importante dos três mencionados anteriormente, uma vez que, para a doutrina, mais se revela dono quem dispõe da coisa do que aquele que a usa ou frui.

O último elemento formador do direito de propriedade é o direito de reaver, rei vindicatio, ou seja, o de reivindicá-la das mãos de quem injustamente a possua ou detenha, como corolário de seu direito de sequela que, como visto em tópico anterior, é característico do direito real.

Embora a propriedade plena seja também considerada ilimitada, alguns doutrinadores buscam dar melhor entendimento a esta afirmação ao observarem que, no tocante a coisa móvel, o direito do proprietário estende-se sobre toda a extensão física da coisa. Enquanto que, no que concerne a coisa imóvel, o direito deste proprietário estende-se sobre a totalidade da coisa, ressalvados, todavia, os limites dentro dos quais a ordem jurídica define a própria existência possível do direito de propriedade.

Caio Mário da Silva Pereira (2008, v.4, p.90), citando De Page, assinala também que o vocábulo “absoluto”, com que se costuma designar o direito do proprietário que tem a propriedade plena, “não foi empregado na acepção de ilimitado, mas para significar que a propriedade é liberta dos encargos inumeráveis e vexatórios que a constrangiam desde os tempos feudais”.

Uma característica da propriedade válida de nota é a exclusividade. Assim, uma mesma coisa não pode pertencer exclusivamente e simultaneamente a duas ou mais pessoas, isto é, o direito de um sobre determinada coisa exclui o direito de outro sobre a mesma coisa.

Também se diz que a propriedade é irrevogável ou perpétua, porque não se extingue pelo não uso. Logo, não estará perdida enquanto o proprietário não a alienar ou enquanto não ocorrer nenhum dos modos de perda previstos em lei, como a usucapião, analisada mais adiante. Em suma, as características dos direitos reais, relatadas em tópico passado, aplicam-se normalmente a este instituto, uma vez que este é espécie daquele.

O que é alvo de numerosas discussões, além do conceito de propriedade, é o fundamento jurídico desta. Em todos os tempos, muito se altercou sobre a origem e a legitimidade desse direito. Dentre as inúmeras teorias surgidas, destacam-se as seguintes: teoria da ocupação, teoria da especificação, teoria da lei e a teoria da natureza jurídica.

A mais antiga, pois remonta dos romanos, é a teoria da ocupação. Esta vislumbra o direito de propriedade na ocupação das coisas, quando não pertenciam a ninguém, a chamada res nullius. Entretanto, muitos entendem que a ocupação é apenas modo de aquisição e, por isso, não tem substância para justificar o direito de propriedade. Nos diversos pontos negativos, ressalta-se aquele que atribui à ocupação, que é um fato de mero acaso e às vezes um ato de força, a virtude de criar um direito.

A teoria da especificação apoia-se na ideia de que somente o trabalho humano, transformando a natureza e a matéria bruta, justifica a propriedade. Percebe-se, que, se assim fosse, haveria uma justaposição de múltiplas propriedades sobre o mesmo objeto, fato este vedado pela natureza da propriedade e, ainda, toda a riqueza cairia nas mãos apenas dos homens robustos e aptos para o trabalho, enquanto que crianças, idosos e inválidos, por exemplo, não podendo trabalhar, não poderiam ter propriedade alguma. Além disso, há muitas coisas que, embora sejam objeto da propriedade, não custaram trabalho algum.

A teoria da lei, encabeçada por Montesquieu em seu célebre De’l esprit des lois e por outros, defende a concepção de que a propriedade é instituição do direito positivo, ou seja, existe porque a lei a criou e a garante. No entanto, é cediço que, mesmo antes de ser regulamentada pela lei, tal instituto já se fazia valer.

A teoria que conta com maior número de adepto corresponde aquela em que a propriedade é inerente à natureza humana, sendo uma dádiva de Deus aos homens, para que possam prover as suas necessidade e as de suas famílias, por isso é denominada de teoria da natureza humana.

Carlos Roberto Gonçalves (2012, v.5, p.249), citando Sílvio Rodrigues, esclarece ao elucidar que mesmo nas comunidades primitivas

a noção de domínio se apresenta; apenas o seu titular não é o individuo, mas o agrupamento familiar ou o clã. Todavia, à medida que a sociedade evolui, a propriedade privada vai se caracterizando, sendo mesmo possível afirmar que esta é condição de domínio daquela. Ademais, nos países que tentaram a experiência socialista, a abolição da propriedade privada foi impossível e sua marcha, no sentido de restabelecê-la, ao menos parcialmente, é incontestável.

O direito de propriedade encontra seu fundamento, no direito brasileiro, disposto na Constituição Federal, art. 5­0, XXII e, como mencionado anteriormente, no Código Civil, art. 1228, ao garantir a qualquer proprietário o direito de usar, gozar, dispor de seus bens, além de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.

2.1.1 Das formas de aquisição da propriedade

O Código Civil atual ao tratar dos modos de aquisição da propriedade confere um tratamento diferenciado que resulta na divisão de duas classes de bens. A divisão destes em imóveis e móveis é considerada a mais importante classificação.

Os imóveis são os denominados bens de raiz e desfrutam de maior prestígio, ficando os bens móveis relegados a segundo plano. Entretanto, a importância dos bens móveis tem aumentado nos últimos anos, sobretudo em decorrência do desenvolvimento tecnológico das sociedades.

Taxativamente, dentre os bens imóveis, o Código Civil de 2002, em seu Título III, da propriedade, Capítulo II, da aquisição da propriedade de imóvel, limita as formas de aquisição entre a usucapião, a aquisição pelo registro do título e a acessão. Esta se divide em acessão das ilhas, da aluvião, da avulsão, do álveo abandonado e das construções e plantações.

Também é passível de notificação que o direito hereditário é modo de aquisição da propriedade imóvel porque, segundo disposto no art. 1.784 do Código Civil, aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, sendo o inventário formado em função do princípio da continuidade do registro de imóveis, para que o herdeiro ali figure como titular do direito de propriedade.

Embora tal fato mencionado seja possível, a aquisição desse direito dá-se unicamente em razão do falecimento do de cujus, quando então será considerada aberta a sucessão. O mesmo sucede com a usucapião, como se verá adiante. Presentes os demais pressupostos legais, considera-se adquirido o domínio pelo simples decurso do lapso temporal previsto na lei, sendo a sentença de natureza meramente declaratória.

Tais modos de aquisição da propriedade classificam-se por critérios diversos. Quanto à procedência ou causa da aquisição, esta pode ser originária ou derivada. É da primeira espécie quando não há transmissão de um sujeito para outro, como ocorre na acessão natural. O indivíduo, em dado momento, torna-se dono de uma coisa por fazê-la sua, sem que lhe tenha sido transmitida por alguém, ou porque jamais esteve sob o domínio de outrem.

Já a aquisição é classificada como derivada quando resulta de uma relação negocial entre o proprietário anterior e o adquirente, havendo, pois, uma transmissão do domínio, em razão da manifestação de vontade como na tradição.

Sendo o modo originário, passará a propriedade ao patrimônio do adquirente livre de quaisquer limitações ou vícios que por ventura a maculavam. Mas, se caso for derivada, a transmissão será feita com os mesmos atributos e as eventuais limitações que anteriormente recaíam sobre a propriedade. Deverá, entretanto, para se efetuar a aquisição derivada, o antecessor comprovar a legitimidade de seu direito.

Segue a classificação da aquisição da propriedade quanto ao objeto. Fala-se em título singular quando a aquisição tem por objeto bens individualizados, particularizados. Dá-se a aquisição a título universal quando a transmissão da propriedade recai num patrimônio. O direito reconhece um único caso cabível nesta classificação que consiste na sucessão hereditária.

Os modos de aquisição peculiares aos móveis são: a ocupação, a especificação, a confusão, a comistão, a adjunção e a tradição. Como tais modos não fazem parte do escopo deste trabalho, não carece que sejam analisados em detalhes.


 

3 DA USUCAPIÃO

3.1 Do conceito, fundamento e natureza jurídica

 

O ordenamento jurídico conceitua a usucapião como sendo forma de aquisição da propriedade ou de direito real originada devido ao decurso prolongado do tempo, segundo o preenchimento dos requisitos previstos em lei.

Baseando-se na conceituação de Modestino, Orlando Gomes (2007, p.186), define a usucapião como sendo: “o modo de adquirir a propriedade pela posse continuada durante certo lapso de tempo, com os requisitos estabelecidos na lei: usucapio est adjectio dominii per continuationem possessionis temporis lege definit”.

Também chamada de prescrição aquisitiva, a usucapião confronta-se com a prescrição extintiva. Entretanto, em ambas, existe um elemento imprescindível, o tempo, que influi tanto na aquisição, como também na extinção de direitos.

Recorda Caio Mário da Silva Pereira (2008, v.4, p.137) que para alguns juristas, como Fadda e Bensa, Oertmann, De Page, Planiol, Ripert e Boulanger, tal matéria deve ser tratada como um só instituto, enquanto que para outros, como Clóvis Beviláqua, Orosimbo Nonato e Pugliese, é notória a distinção entre a prescrição aquisitiva e a prescrição extintiva.

Regulada pelo direito das coisas, a prescrição aquisitiva é modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado pela posse prolongada no tempo, acompanhada de certos requisitos exigidos pela lei, como no caso das servidões e do usufruto, por exemplo.

Por outro lado, a prescrição extintiva trata-se da perda da pretensão e, por conseguinte, da ação atribuída a um direito, e de toda sua capacidade defensiva, em consequência do não uso dela durante determinado espaço de tempo.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012, v.5, p.257), a prescrição aquisitiva parece ofender o direito da propriedade, uma vez que permite ao possuidor ocupar o lugar do proprietário ao despojar o seu domínio, favorecendo, assim, o usurpador contra o verdadeiro proprietário. Esta perda, citando Lafayette:

sai fora das regras fundamentais do Direito; mas é determinada por imperiosos motivos de utilidade pública (...) a negligência do proprietário não é propriamente uma razão determinante da prescrição aquisitiva, mas intervém como uma consideração moral de grande valor para pô-la sob uma luz mais favorável, tirando-lhe o caráter espoliativo, que à primeira vista se lhe atribui.

A usucapião tem como fundamento o princípio da utilidade social, na conveniência de se dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como de se consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio, repousando-se, então, na paz social e libertando a propriedade de reivindicações inesperadas.

Costumam os juristas indagar seu fundamento ético, num plano de maior amplitude especulativa, justificando-se para aqueles adeptos das teorias subjetivas no abandono da coisa pelo antigo dono, espécie de renúncia presumida, enquanto que para os seguidores das ideias objetivistas resulta na segurança social aliada ao aproveitamento econômico do bem usucapido.

A tendência moderna, de cunho nitidamente objetivo, considerando a função social da propriedade, inclina-se no sentido de que por ele se prestigia quem trabalha o bem usucapido, reintegrando-o pela vontade e pela ação, no quadro dos valores efetivos de utilidade social que condena o proprietário inerte.

O atual direito brasileiro distingue três espécies de usucapião de bens imóveis: a extraordinária, a ordinária e a especial ou constitucional, dividindo-se a última em rural, pro labore, e urbana, pró-moradia ou pro misero.

Sobre a natureza jurídica da usucapião, a doutrina divide-se entre dois modos de classificação: a originária e a derivada. Existe certa controvérsia a respeito da inclusão da usucapião no rol dos modos originários, uma vez que alguns autores consideram originária a aquisição somente quando o adquirente torna-se dono de uma coisa que jamais esteve sob o domínio de alguém, ou seja, quando o domínio surge pela primeira vez. Baseando-se nesse pensamento, Carlos Roberto Gonçalves (2012, v.5, p.255) relata:

Parece-nos mais adequado, todavia, simplesmente considerar configurado tal modo sempre que não houver relação causal entre a propriedade adquirida e a situação jurídica anterior da coisa. Desse modo podem ser incluídas a acessão natural e a usucapião.

Por outro lado, muitos afirmam que a relação jurídica da usucapião não nasce de um direito novo, independentemente da participação do antigo proprietário. Na derivada a aquisição acontece por um ato de transmissão, ou seja, a propriedade é transferida do proprietário anterior ao adquirente.

Este é o entendimento de Caio Mário da Silva Pereira (2008, v.4, p. 138), que aduz:

levando, pois, em conta a circunstância de ser a aquisição por usucapião relacionada com outra pessoa que já era proprietária da mesma coisa, e que perde a titularidade da relação jurídica dominial em proveito do adquirente, conclui-se ser ele uma forma de aquisição derivada.

Entretanto, a maioria dos doutrinadores entende ser a usucapião um modo de aquisição originária. Salienta, ainda, a doutrina majoritária que a usucapião se completa quando preenchidos os requisitos específicos de cada modalidade de usucapião. Assim, comprovada a posse mansa e pacífica, o tempo e os demais requisitos específicos, o possuidor adquire a propriedade sem se indagar pela transmissão do antigo proprietário.

3.2 Da origem e evolução histórica

Considera-se antiga a origem da usucapião. Os primeiros traços remontam da civilização hebraica que a instituiu no velho testamento no Livro dos Juízes, na passagem da “Tentativa de acordo”.

Posteriormente, o instituto se vislumbrou em Roma no século IV a.C. através da Lei das XII Tábuas, em cuja Tábua VI, item III, constava: “que a aquisição da propriedade pela posse tenha lugar ao fim de dois anos para os imóveis, ao fim de um ano para os demais”.

Em seguida, a usucapião ganhou desenvolvimento com a Lei Atínia, ao proibir a aquisição quando se tratasse de coisas apreendidas por ladrões e receptadores, enquanto que as Leis Júlia e Plaucia vedaram-na quando eram obtidas mediante violência.

Com o tempo, foi-se ampliando o prazo para a consumação da aquisição. Criou-se a “longi temporis praescriptio”, estendendo-se aos peregrinos e aos fundos provinciais, nos apossamentos por dez ou vinte anos, conforme o favorecido residisse ou não na mesma província.

O precedente mais antigo em âmbito nacional encontra-se no dispositivo do art. 5º da Lei 601, de 18 de setembro de 1850, que previa a legitimação da posse pelos posseiros que adquiriam o domínio das glebas devolutas que ocupassem desde que comprovassem cultura efetiva e morada habitual.

O instituto da usucapião não foi abordado nas duas primeiras constituições federais. Somente com o advento da Constituição Federal de 1934 é que tal instituto foi disciplinado sendo abordado em seu art. 125.

Art. 125. Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terras até dez hectares, tornando-se produtivo por seu trabalho e tendo nele sua moradia, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.

Em decorrência de uma maior preocupação social provocada por inúmeros fatores políticos e econômicos, nosso constitucionalismo, a partir da Constituição de 1934, consagrou a figura da usucapião pro labore, destinada a propiciar a melhoria do pequeno produtor rural. 

O preceito foi repetido, sem alterações, pelo art. 148 da Constituição de 1937. Logo após, o Decreto-lei 710/38 aceitou serem as terras do domínio estatal usucapíveis somente na modalidade pro labore, ao dizer, no seu art. 12, §1º, que: “ressalvado o disposto no art. 148, da Constituição de 1937, não corre usucapião contra os bens públicos de qualquer natureza”.

A Constituição Federal de 1946 manteve a usucapião laboral no seu art. 156, §3º. Trouxe-lhe, contudo, duas alterações. Eliminou o vocábulo “brasileiro”, contido no início dos dispositivos anteriores, substituindo-o pela expressão “todo aquele”, bem como elevou para até vinte e cinco hectares a extensão do bem a ser adquirido. Este limite, posteriormente, foi alargado pela Emenda Constitucional 10/64 para uma área não excedente a cem hectares. Em 1964, a usucapião passou a ser disciplinada também em lei ordinária por meio do Estatuto da Terra.

A atual Constituição Federal manteve a usucapião especial rural em seu art. 191 e estendeu a usucapião para as propriedades urbanas, conforme dispõe o art. 183, como tentativa de amenizar o grave problema da habitação, gerado pelo rápido e desordenado crescimento populacional nas cidades. Em ambos os casos, proibiu a possibilidade dos imóveis públicos serem usucapidos.

 

3.3 No Direito Brasileiro

3.3.1 Na Constituição Federal

A Constituição de 1988 cogitou especialmente da usucapião urbana e rural em duas disposições distintas. O art. 183 expõe:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptos e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Nota-se que no artigo em questão, figura no seu § 1º, a expressão “concessão de uso” que relata vagamente o instituto, pois a usucapião transforma uma situação de fato numa de direito, passando de mero possuidor para proprietário e não de possuidor para usuário.

A sentença da usucapião serve apenas para declarar um direito já existente, conquistado no momento em que se cumpriram todos os requisitos, servindo a sentença apenas como título para a transcrição no registro de imóveis, já que, a transferência ocorreu no momento em que o usucapiente reuniu todos os requisitos legais necessários.

Os requisitos para a aquisição da propriedade pela usucapião especial de imóvel urbano, como também das demais formas podem ser classificados, de acordo com Orlando Gomes (2007, p.188), em requisitos pessoais, reais e formais.

Seguindo os requisitos pessoais, para se adquirir a propriedade por usucapião é necessário, de início, que o adquirente seja capaz e tenha qualidade. Por isso, entre ascendentes e descendentes, entre marido e mulher, entre incapazes e seus representantes, não há transferência de propriedade por usucapião.

Também não poderá usucapir quem obteve a posse injustamente, viciada de violência, clandestinidade ou precariedade, bem como quem passou a tê-la de má-fé. Já aquele que sofre os efeitos da usucapião não há exigência, basta que seja proprietário da coisa a ser usucapida.

Quanto aos requisitos reais, somente as coisas prescritíveis podem ser adquiridas por usucapião. Logo, bens que estão fora do comércio não fazem parte desta classe. Os requisitos formais compreendem a posse e o lapso temporal. Sem a posse não há que se falar em usucapião, por isso, dentre todos, este requisito é o mais importante, mas, faz-se necessário que ela seja sem oposição, mansa, pacífica e ininterrupta.

Ressalte-se que o vício da violência continua a subsistir, ainda que a posse torne-se pacífica e, enquanto não for expurgado, impedirá a prescrição, não se transmitindo à posse do terceiro que em boa-fé recebe a coisa do esbulhador, como se percebe do julgado:

Usucapião extraordinário. Admissibilidade. Necessidade de comprovar a posse e o tempo de permanência, sendo a primeira justa e desprovida de violência. Presunção de boa-fé. Comprovação do tempo aquisitivo, constatada a realização de benfeitorias, sendo que não foram contestadas. Posse justa. Caracterização. Procedência da ação (RT, 804/346).

A posse que conduz à usucapião deverá também ser exercida com animus domini, assim, exclui-se os detentores e os que exercem temporariamente posse direta advinda de uma obrigação ou direito como acontece com o usufrutuário, o credor pignoratício e o locatário. Também já se decidiu em tribunal:

Usucapião. Improcedência de demanda. Inexiste animus domini daquele que ingressa no imóvel apenas por força da relação de emprego que possuía com o proprietário da coisa e por autorização deste (TJRS, Ap. 70.015.727.332, 18a Câm. Cível., rel. Des. Pedro Celso Dal Prá,j. 21-9-226). 

Para o art. 183 da Constituição Federal, necessita-se também que o imóvel seja utilizado para moradia do usucapiente ou de sua família e que este não tenha, antes, sido beneficiado com a usucapião especial de imóvel urbano, pois a norma constitucional restringiu o benefício a uma única vez. Entretanto, não impede que o usucapiente adquira a propriedade por outra modalidade de usucapião. Preenchido os requisitos o usucapiente terá direito à propriedade do imóvel pleiteado.

A Constituição Federal ainda traz, em seu art. 191, o suporte técnico da usucapião especial rural ou pro labore, que modificou a Lei 6.969/81, especialmente porque proibiu que as terras devolutas fossem usucapidas, assim preceituando o referido artigo:

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único – Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Quanto ao conceito de imóvel rural e imóvel urbano presentes nos artigos supramencionados, a doutrina traz duas definições: o da destinação e o da localização.

O conceito da destinação leva em consideração o uso do imóvel ou a sua finalidade, sendo urbano aquele que se destina à moradia e rural aquele que se destina para fins agrícolas ou pastoris. Já o da localização, tem-se em vista o local que se encontra o imóvel, sendo urbano aquele que estiver na zona urbana e rural o imóvel situado na zona rural, independentemente do fim a que é destinado.

Ao analisar o art. 183 da Constituição Federal, observa-se que o citado artigo encontra-se elencado no Capítulo da Política Urbana, tratando-se, assim, de imóveis localizados nas cidades. Nota-se deste modo que o prisma adotado pela legislação foi o dá localização.

Importante é mencionar que a atual Constituição abre, a partir do art. 184, todo um capítulo destinado à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Depreende-se que compete à União desapropriar por interesse social, desde que para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, excluindo, contudo, a pequena e média propriedade cujo proprietário não possua outra, bem como a propriedade produtiva.

O art. 186 expõe as características da função social da propriedade, que deixa, assim, de ser um conceito abstrato devendo se compreender um aproveitamento racional adequado, a utilização dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente, como também a observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Em conformidade com o dispositivo legal, a política agrícola será planejada e executada com a participação efetiva do setor de produção, observados os critérios que o preceito discrimina. Deverá, também, se subordinar à política agrícola e ao planejamento nacional de reforma agrária as terras públicas e devolutas, ao mesmo tempo em que a lei regula e limita a aquisição ou arrendamento da propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira além de estabelecer os casos que dependem de autorização do Congresso Nacional, como apregoa o art. 189.

 

3.3.2 No Código Civil

Inicialmente, faz-se necessário um esclarecimento. O Projeto do Código Civil de 1916 trazia a palavra usucapião no feminino. A mudança para o gênero masculino decorreu de emenda apresentada por Rui Barbosa. O Código Civil de 2002 emprega o vocábulo usucapião no gênero feminino, respeitando sua origem, como ocorre no direito francês, espanhol, italiano e inglês.

Menciona Carlos Roberto Gonçalves (2012, v.5, p.258) que consagrados autores como Washington de Barros Monteiro, Caio Mário da Silva Pereira, Carvalho Santos, Serpa Lopes e outros a usam no masculino. Todavia, outros eminentes autores, antigos e modernos, colocam-na no feminino, destacando-se entre eles, Ihering, Lafayette, Orlando Gomes, Pontes de Miranda.

A modalidade de usucapião extraordinária é disciplinada no art. 1.238 do Código Civil de 2002 que assim dispõe:

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

Seus requisitos são primeiramente a posse de quinze anos, que pode reduzir-se a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Em seguida, é necessário que a posse seja exercida com ânimo de dono, de forma contínua, mansa e pacífica. Dispensam-se os requisitos do justo título e da boa-fé.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012, v.5, p.260):

Para que ocorra a redução do prazo não basta comprovar o pagamento de tributos, uma vez que, num país com grandes áreas despovoadas, poderia o fato propiciar direitos a quem não se encontre em situação efetivamente merecedora do amparo legal.

A doutrina majoritária alega ser mais razoável situar o problema em termos de “posse-trabalho”, que se manifesta por meio de obras e serviços realizados pelo possuidor ou de construção, no local, de sua moradia.

A usucapião extraordinária no Código Civil de 1916, em seu art. 550 necessitava de posse por vinte anos. Com o Código Civil de 2002, esse prazo diminuiu e se tornou híbrido, haja vista que o “caput” do art. 1.238, menciona que necessita quinze anos de posse ininterruptos para se adquirir a propriedade por usucapião, enquanto o parágrafo único reduz o prazo para dez anos a fim de se adquirir a propriedade.

A propriedade adquirida por usucapião compreende não só aquela dotada de todos os seus atributos componentes, como também as parcelas que dela se destacam, isto é, os direitos reais sobre coisa alheia, iura in re aliena, como a servidão, a enfiteuse, o usufruto, o uso, a habitação, a anticrese etc.

Percebe-se adiante que o art. 1.239 do Código Civil é praticamente uma reprodução do art. 191 da Constituição Federal:

Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Apenas com a mudança referente à concordância gramatical, alterando a expressão “possua como seu”, pela expressão “possua como sua”. Excluiu-se da reprodução do art. 191 da Constituição Federal, o parágrafo único, haja vista que o Código Civil já menciona como regra geral em seu art. 102 que os bens públicos não estão sujeitos à usucapião e já se julgou que: “Área que se constitui em bem público, subjetivamente indisponível e insuscetível de usucapião. Mera detenção, sendo irrelevante o período que se perdure” (RT, 803/226).

Também é entendimento do Tribunal Superior de Justiça que:

a vedação constitucional e infraconstitucional, quanto ao usucapião, alcança somente os bens públicos, excluídos, pois, os móveis pertencentes ás sociedades de economia mista (REsp 715.764-DF, 3a T., rel. Min. Nancy Andrighi, DJU, 3-5-2005. No mesmo sentido: REsp 120.702/DF, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU, 20-8-2001; REsp 37.906-7-ES, rel. Min. Barros Monteiro, DJU, 15-12-1997).

O art. 1.240 do Código Civil é uma mera adequação constitucional, com a intenção de trazer ao Código Civil a mesma norma contida no art. 183 da Constituição Federal, para que assim não gerasse dúvidas quanto à aplicação dos dois textos, que são praticamente idênticos, apenas com a ressalva de excluir o § 3º do art. 183 da Magna Carta.

Art. 1.240.  Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

Ante ao fato de que o solo urbano não deve ficar sem aproveitamento adequado, reconhece-se, a quem o utilizar, homem ou mulher, qualquer que seja o estado civil, desde que não seja imóvel público e tenha a dimensão de até duzentos e cinquenta metros quadrados, a possibilidade de adquirir-lhe o domínio, se não for proprietário de outro imóvel urbano ou rural e se tiver exercido sua posse, ininterruptamente, por cinco anos, sem oposição, destinando-o para sua moradia ou de sua família.

Se a posse se der em área superior a duzentos e cinquenta metros quadrados, inadmissível será a usucapião, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir. Tal medição abrange tanto a área do terreno quanto a construção, vedado que uma ou outra ultrapasse o limite assinalado, inclusive não se soma a área construída à do terreno.

Em se tratando de condomínio edilício, não se deve computar a extensão compreendida pela fração ideal correspondente à área comum. Esse benefício de usucapião especial individual em imóvel urbano também não será reconhecido à mesma pessoa em mais de uma vez.

Dispõe o art. 1.241:

Art. 1.241. Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel.

Parágrafo único. A declaração obtida na forma deste artigo constituirá título hábil para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Depreende-se desde artigo que o usucapiente, adquirindo o domínio pela posse, deverá requerer ao magistrado que assim o declare por sentença, que, então, constituirá título hábil para o assento no Cartório de Registro de Imóveis.

Novamente vale esclarecer que a sentença declaratória de usucapião e seu registro não têm valor constitutivo e sim meramente probante regularizando a situação do imóvel e permitindo sua livre disposição.

A usucapião ordinária do Código Civil de 2002 inovou. Tal instituto era tratado no art. 551 do Código Civil de 1916. Dispõe, com efeito, o art. 1.242 do código em apreço que para haver usucapião do tipo ordinário faz-se mister a presença de pressupostos que correspondem a posse mansa, pacifica e ininterrupta, exercida com intenção de dono e decurso do tempo de dez anos que, excepcionalmente, reduzir-se-á a cinco anos, se o bem de raiz houver sido adquirido onerosamente e cujo registro foi cancelado, desde que o possuidor tenha nele sua morada ou nele tenha realizado investimentos de interesse social ou econômico.

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

Trata-se mais uma vez da “posse-trabalho”, que, para atender ao princípio da socialidade e dar efeito prático a função social da posse, punindo a inércia do proprietário e prestigiando o possuidor, reduz o prazo de usucapião.

Mesmo exigindo a continuidade da posse, o código em apreço, em seu art. 1.243 preceitua:

Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé. 

Desta feita, poderá o possuidor demonstrar que mantém posse ad usucapionem por si e por seus antecessores. Exigia-se, antes, comprovação por escrito que atestasse a transmissão negocial da posse. Atualmente, tal exigência inexiste sendo admitida também prova oral. “Usucapião. Pedido amparado na accessio possessionis. Obrigatoriedade de os autores provarem o efetivo exercício pelos seus antecessores pelo tempo necessário (RT, 764/212)”.

Já a expressão justo título abrange toda e qualquer ato jurídico hábil em tese, a transferir a propriedade independentemente de registro. Assim, é necessário que o usucapiente apresente título idôneo para operar a transferência da propriedade, por escritura pública, cessão de direito, formal de partilha etc.

Muitos consideram que o justo título deve ser revestido de formalidades e ser registrado no cartório de registro imobiliário. Para outros, esta requisição não deve ser considerada ao extremo, como salienta Caio Mário da Silva Pereira (2008, v.4, p.149):

A conceituação do justo título leva, pois, em consideração a faculdade abstrata de transferir a propriedade, e é neste sentido que se diz justo qualquer fato jurídico que tenha o poder em tese de efetuar a transmissão, embora na hipótese lhe faltem os requisitos para realizá-la.

A usucapião também é modo originário de aquisição de bem móvel corpóreo, dando juridicidade a situações fáticas que se alongarem no tempo. A corrente jurisprudencial majoritária nega a possibilidade de usucapião de bens imateriais como direito de marca e nome empresarial ou ações de sociedade anônima.

Como se pode entender pelo art.1.260, haverá usucapião ordinária de bem móvel quando alguém o possuir como seu, exercido com animus domini, ininterruptamente e sem oposição, durante três anos. Esta, além de ser contínua e pacífica, deverá ser baseada em justo título e boa-fé.

Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á propriedade.

Por outro lado, ter-se-á usucapião extraordinária de bem móvel, como estabelece o art. 1261, quando houver posse ininterrupta e pacífica, pelo decurso do prazo de cinco anos, mas agora sem que tenha que provar justo título e boa-fé.

Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.

Poderá, ainda, o possuidor de bem móvel, obter o reconhecimento da usucapião, unir a sua posse a de seu antecessor, desde que ambas sejam contínuas e pacíficas. Aplicam-se também à usucapião de móveis as causas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, como determina os arts. 197 a 204 do Código em análise.

A usucapião, de acordo com o art. 1.379 do Código no tocante à servidão, abrange, tão somente, a servidão aparente.

Art. 1.379. O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião.

Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos.

Logo, conceder-se-á ação de usucapião apenas ao possuidor de servidão que, após preencher os requisitos legais, assentar a sentença no registro Imobiliário. Apenas as servidão aparentes poderão ser adquiridas por usucapião ordinária, pela posse contínua e incontestada por dez anos, ou extraordinária, pela posse de vinte anos ante a ausência de justo título porque  só estas são suscetíveis de posse.

Segundo Caio Mário da Silva Pereira (2008, v.4, p.277), servidão aparente é aquela:

que se manifesta por obras exteriores, e por isto mesmo visíveis e permanentes; não aparente, aquela que não se materializa desta forma, como por exemplo a de caminho (servitus ittineris), que consiste meramente no transitar por prédio alheio.

Com efeito, o Código Civil de 2002 adotou o enfoque da predominância da função social e do interesse coletivo em face do direito individual, conferindo assim, modalidades com menor período para a aquisição da propriedade, como se observou após a análise das usucapiões supramencionadas.

 

3.3.3 No Estatuto da Cidade

Conhecida como Estatuto da Cidade, a Lei 10.257/01 prevê no Capítulo II “Dos Instrumentos da Política Urbana”, Seção V “Da Usucapião Especial de Imóvel Urbano”, a aquisição de imóvel urbano através do instituto da usucapião.

A referida lei regulamenta dois tipos de usucapião; no art. 9º, relata sobre a usucapião individual de imóvel urbano, modalidade que também se apresenta insculpida no art. 183 da Constituição Federal já desenvolvido em tópico anterior. Já no artigo 10, traz inovação quanto ao instituto, prevendo a usucapião especial coletiva.

O art. 9º do Estatuto da Cidade que trata da usucapião especial individual apresenta algumas modificações em relação à norma constitucional. Percebe-se que o novo dispositivo que também regula a usucapião especial de imóveis urbanos, além de mencionar sobre a área, solo urbano, também relata sobre a edificação, o que não constava na norma constitucional.

Art. 9oAquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

Com a referida inovação, a lei que trata do Estatuto da Cidade, além de resolver a questão da aquisição da terra, também solucionou o ponto relacionado com a obtenção da edificação contida no terreno. Assim, com esta medida, o usucapiente além de receber a declaração da aquisição da propriedade sobre o terreno, ao mesmo tempo, terá reconhecido o direito de aquisição da edificação. Criou-se, assim, um mecanismo ágil e de economia processual, possibilitando incluir na sentença declaratória da usucapião a edificação existente na área usucapida.

Observa-se que um dos requisitos para a obtenção desta modalidade de usucapião é que o terreno não ultrapasse o limite de duzentos e cinquenta metros quadrados, não importando que a soma da área do terreno e da edificação ultrapasse a referida medida.

Nota-se, também, que o § 3º do art. 9º do Estatuto da Cidade inovou em relação à norma constitucional, haja vista que previu que o herdeiro legítimo continue, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

O Estatuto da Cidade criou, ainda, uma nova modalidade de usucapião, disciplinada em seu art.10, conhecida como usucapião especial coletiva urbana, também chamada de usucapião favelada. A inovação visa à regularização de áreas faveladas ou de aglomerados residenciais sem condição de legalização de domínio.

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.

§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.

A usucapião coletiva atinge áreas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados e onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor. Fala-se, ainda, em áreas ocupadas por população de baixa renda, para sua moradia, sem que possam adquirir o imóvel por usucapião, haja vista que estará adquirida gleba em condomínio.

O art. 10 do Estatuto da Cidade não se trata de composse, em que um terreno é ocupado por várias pessoas, que exercem sobre ele posse em comum. A expressão foi usada em referência ao núcleo habitacional desorganizado como uma unidade, na impossibilidade de destacar parcelas individuais. Nos aludidos núcleos habitacionais não há propriamente terrenos identificados, mas sim espaços que não seriam passíveis de regularização pela via de usucapião individual.

Dentre as diretrizes da política urbana que têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana encontra-se a norma do inciso XIV do art. 2o do referido estatuto. Como se percebe abaixo, essa modalidade veio, assim, possibilitar a regularização de favelas ou de aglomerados residenciais sem condições de legalização do domínio.

Art. 2.  A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais.

Como parte legítima para a propositura da ação de usucapião especial urbana, prevê o art.12 do estatuto em análise: “como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados”. Trata-se de inovação permitindo legitimação para a ocupação do polo ativo da ação de usucapião coletiva.

O intuito é que deva preponderar o uso do imóvel para fins residenciais. As favelas constituem um todo orgânico e devem ser consideradas como unidades, daí por que alguns imóveis comerciais não podem, desde que exista predominância da residência, impedir futura urbanização. Porém, não fica afastada a via usucapitória do Código Civil aos possuidores que explorem comércio, desde que atendido um mínimo de urbanização que permita perfeita localização dos imóveis para a abertura da matrícula.

Com relação à existência de ruas, vielas, caminhos e espaços reservados para pequenas praças, creches e escolas, na área objeto de usucapião, se tiverem as vias contidas na descrição do imóvel, automaticamente passarão para o domínio do município, como bem de uso comum do povo.

Depreende-se que o Estatuto da Cidade foi elaborado com a finalidade de reconhecer direitos aos favelados ou grupos desprovidos de um teto para morarem, ou ainda moradores em habitações precárias, sem infraestrutura e sem condições viárias. Por isso, instituiu condomínio especial passível de extinção, desde que haja aprovação de dois terços dos condôminos e seja feita a regularização necessária, como abertura de ruas ou passagens, implementação de infraestrutura, entre outros melhoramentos.

Não há que se confundir tal modalidade de condomínio com os elencados no Código Civil, que o denomina condomínio edilício, nem do condomínio comum ou tradicional. Esta forma de condomínio especial criada pelo estatuto poderá ser extinto somente no caso de execução de urbanização exterior à constituição do condomínio, ou seja, mesmo a unanimidade dos condôminos não consegue extinguir a comunhão. Ainda vale ressaltar que as formas de condomínio comum e edilício não se referem à coletividade, uma vez que ambos disciplinam a propriedade individual, não coletiva.

A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para registro no Cartório de Registro de Imóveis. Na pendência da ação, ficarão sobrestadas quaisquer outras ações que venham a ser propostas relativamente ao imóvel usucapiendo.

Segundo o estatuto em seu art. 14, o rito processual a ser observado, nessas ações, é o sumário, cabendo ao juiz, na sentença, atribuir igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, exceto no caso de acordo escrito entre os condôminos, onde deverá estabelecer frações ideais diferenciadas.

Percebe-se, assim, que através das diretrizes gerais e dos instrumentos de política urbana, o Estatuto da Cidade forma um complexo de normas que permitem o racional aproveitamento do solo urbano, planificando a vida em comunidade. Com isso, dá à propriedade sua função social, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida em todas as suas dimensões.

3.3.4 No Estatuto do Índio

Por fim, resta mencionar tema advindo de ordenamento diverso dos abordados anteriormente, mas que complementam o instituto agora desenvolvido. Trata-se da usucapião indígena.

Extrai-se do Estatuto do Índio, disposto no art. 32, que “são de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena (...) as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil”.

Preceitua, também, o art. 33:

Art. 33. O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal.

A ocupação a que alude o mencionado art. 33 do estatuto tem o significado de posse, que deve ser exercida por dez anos seguidos com animus domini, ou seja, com a intenção de ter a coisa para si, na condição de verdadeiro proprietário. Daí a expressão “como próprio”, empregada no dispositivo em apreço.

Assim, os habitantes das selvas, não integrados à civilização, como também aqueles já integrados poderão usucapir. Segundo dispõe o art. 3o do mesmo diploma, índio ou silvícola “é todo individuo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distingam da sociedade nacional”.

Caso o índio possua plena capacidade civil, poderá este propor diretamente ação de usucapião. Entretanto, não a tendo, deverá ser representado pela Fundação Nacional do Índio criada pela Lei n. 5.371/67 para exercer a tutela dos índios, em nome da União.

 

 

 

 

 

 

4 CONCLUSÕES

Observou-se, aqui, que os direitos reais são aqueles que regulam as relações jurídicas referentes a tudo que for passível de apropriação pelo homem e que se diferencia dos direitos pessoais, principalmente, por este apresentar uma relação pessoa a pessoa, enquanto aquele trata do poder da pessoa sobre a coisa.

A origem e as transformações que sofreu a propriedade, bem como o direito que a regula, também foram alvo de análise. Visualizou-se a necessidade de uma imposição de restrições e limitações tendentes a coibir abusos e a evitar que o exercício desse direito se transformasse em instrumento de dominação como fora no passado.

Percebeu-se, outrossim,  que a  aquisição da propriedade pela usucapião independe da vontade de seu titular anterior  e que  ocorre  quando se tem a posse de uma coisa com ânimo de dono, por determinado período, sem interrupção ou oposição. Mas, para que isso aconteça, são imprescindíveis que sejam respeitados os prazos prescricionais, para que possa existir o exercício pleno do direito de usucapir.

Em suma, o instituto da usucapião tornou-se uma importante forma de aquisição da propriedade e que sua finalidade consiste, principalmente, em promover a segurança e a estabilidade à propriedade e, assim, realizar a pacificação e a justiça social. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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