A UNIFICAÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO COM O CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR E A REDUÇÃO DE PENA ORIUNDA DA VIGÊNCIA DA LEI 12.015, DE 07/08/09. NOVATIO LEGIS IN MELLIUS! – LEX MITIOR – O DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA

Por Francisco Deliane e Silva[1]

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A recente Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, que alterou o Título VI da Parte Especial do Código Penal e o artigo 1º da Lei nº 8.072/90 que dispõe sobre os crimes hediondos e revogou a Lei nº 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata da corrupção de menores, nascida no seio do denominado "Direito Penal de Emergência", no afã de elevar as penas e proteger os vulneráveis, deu nova redação ao artigo 213 do Código Penal, fundindo neste dispositivo a conduta tipificada no extinto artigo 214 do mesmo Código, ou seja, o crime de atentado violento ao pudor, e, com isto, possibilitou a redução do quantitativo das penas aplicadas em casos de concurso de crimes e deu azo a adequação, revisão das penas na forma preconizada propostos no artigo 66, inciso I, da Lei de Execuções Penais[2].

Sem delongas, o artigo 213 do Código Penal, penalizava, em sua antiga redação a seguinte conduta: "Constranger mulher, mediante violência ou grave ameaça, à conjunção carnal", cominando ao infrator da referida norma à pena de 6 a 10 anos, de reclusão.

Agora, com o advento da Lei 12.015/2009, o mencionado artigo 213 passou a ter a seguinte redação:

"Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".

Com efeito, a sanção imposta, restou estatuída como: Pena de 6 a 10 anos de reclusão, para a conduta tipificada no Caput; 8 a 12 anos de reclusão, prevista em seu parágrafo primeiro, aplicável nas hipóteses em que a vítima for maior de 14 anos e menor de 18 anos de idade. E, finalmente em seu parágrafo segundo estabeleceu a pena de reclusão de 12 a 30 anos, nos casos que resultarem em morte.

Ao leigo pode parecer que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor foram reunidos em um único dispositivo, e suas penas agravadas, contudo a visão do operador do direito, não pode ser tão simplista tendo em vista o nosso ordenamento jurídico adotar institutos como o concurso de crimes, quer em sua modalidade formal, quer material. E, por medida de política criminal, adotar, também a ficção jurídica do crime continuado.

Com efeito, o Legislador sistematizou estes institutos no Capitulo III, do Código Penal, que, conforme é cediço trata da aplicação da pena. E, houve por bem definir, tais institutos nos artigos, 69,70 e 71, redigindo-os da seguinte forma:

Concurso material - Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido.

Concurso formal – Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Crime continuado – Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Neste sentir, chega-se a conclusão de ser imperativa a revisão das penas aplicadas àqueles condenados pela prática de estupro e atentado violento ao pudor, em quaisquer das modalidades de concurso de crimes, em virtude do princípio da retroatividade da Lei mais benigna. Lex mitior.

A jurisprudência brasileira mais antiga sempre se pautou pela aplicação da pena em concurso material, apesar de que mais recentemente, vinha encampando a aplicabilidade das regras do crime continuado, consoante se pode ilustrar com os julgados a seguir transcritos, agora tudo isto é passado. Vide verbis:

CONCURSO MATERIAL - Estupro e atentado violento ao pudor – Caracterização. EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ACÓRDÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. QUESTÕES NOVAS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONCURSO MATERIAL E NÃO CRIME CONTINUADO. I. - Por conter questões novas, não apreciadas pelo Superior Tribunal de Justiça, o HABEAS CORPUS não pode ser conhecido. II. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que estupro e atentado violento ao pudor praticados contra a mesma vítima caracterizam hipótese de concurso material de delitos e não de crime continuado. III. - H.C. conhecido em parte e, nessa parte, indeferido. (STF, HC 83453/SP, HABEAS CORPUS, Relator: Ministro CARLOS VELLOSO, Órgão Julgador: Segunda Turma, Julgamento: 07/10/2003, Publicação/Fonte: DJ 24-10-2003 PP-00028 EMENT VOL-02129-02 PP-00541).

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONTINUIDADE DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. CONCURSO MATERIAL. CRIME HEDIONDO. REGIME INTEGRALMENTE FECHADO. INCONSTITUCIONALIDADE. HC CONCEDIDO DE OFÍCIO. A jurisprudência desta Corte está sedimentada no sentido de que estupro e atentado violento ao pudor configuram concurso material e não crime continuado. O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei n. 8.072/90, assegurando aos condenados por crimes hediondos a progressão do regime prisional. Habeas corpus indeferido; ordem concedida, de ofício, para assegurar a progressão do regime de cumprimento da pena. (STF, HC 89770/SP, Relator: Min. Eros Grau, Órgão Julgador: Segunda Turma, Julgamento: 10/10/2006, Publicação/Fonte: DJ 06.11.2006 p. 51).

Com efeito, o Legislador, no afogadilho do conhecido Direito Penal de Emergência, cujo desiderato eleitoreiro do legislador impulsionado pela mídia é tipificar e agravar pena, desta feita errou o alvo, e no que pertine a nova redação do artigo 213 do CP, crime de estupro, acabou por dar "um tiro no pé" quando "fundiu" as condutas outrora tipificadas no artigo 213 e no artigo 214 do Código Penal.

Ora, por força da nova redação dada ao artigo 213 do CP, por força das modificações introduzidas pela Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, caso o agente no mesmo contexto fático pratique conjunção carnal e outro ato libidinoso qualquer, responderá apenas pelo crime de estupro, tendo em vista a aplicação do princípio da alternatividade, diretriz essa inerente aos tipos alternativos mistos, também conhecidos como crimes de conduta variada, ou mesmo tipo de conteúdo variado.

Cumpre lembrar que tipos alternativos mistos são aqueles em que a norma descreve várias formas de execução de um mesmo delito: Ex. tráfico de drogas aquele que transporta, vende ou expõe a venda comete um único crime

Saliente-se que conforme já foi demonstrado, até a vigência da nova lei, na hipótese do agente praticar, coito vaginal (conjunção carnal) e anal com a mesma vítima, em que pese à doutrina permitisse diversos entendimentos, prevalecia na jurisprudência, conforme acima ilustrado, o acolhimento da ocorrência do concurso material entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, submetendo o autor dos mesmos a uma pena mínima de 12 (doze) anos, haja vista que antes da alteração os dois delitos tinham a pena mínima de 6 (seis) anos.

Agora, a mesma situação acima mencionada – coito vaginal e anal, demanda entendimento distinto eis que, ambas as condutas estão subsumidas no mesmo tipo, competindo, pois se analisar o contexto criminoso apenas sobe o pálio das circunstâncias judiciais. E mesmo, para a hipótese, daqueles que entendem que a pena, neste caso deva ser majorada, não poderá ultrapassar o máximo legal que atualmente é de 10 (dez) anos de reclusão o que implica em uma redução da pena outrora cominada.

Por outro lado, não obstante o desiderato modificador, o exame comparativo entre a antiga redação do delito de estupro e a nova tipificação, agora positivada pela Lei, tem-se por forçoso admitir que:

Apesar da objetividade jurídica continuar sendo a liberdade da dignidade sexual, no que pertine aos sujeitos da conduta criminosa, agora, trata-se de crime comum, pois tanto pode ser praticado por homem, mulher, ou mesmo hermafrodita e, ter como vítima, qualquer ser humano. É cediço que, no regime anterior se a mulher constrangesse o homem a manter com ela conjunção carnal a mesma não responderia por estupro, nem atentado violento ao pudor, pois este tratava de ato libidinoso diverso da conjunção carnal e a antiga conceituação do estupro só previa a mulher como sendo sujeito passivo do tipo. Restava, apenas, adotar-se, como enquadramento legal o artigo 146 do Código Penal, que tipifica o crime de constrangimento ilegal, cuja pena, como se sabe é bem inferior a pena cominada ao crime de estupro.

Outrossim, no que tange aos elementos objetivos do tipo, nada mudou, vez que o núcleo do tipo permanece representado pelo verbo "constranger" que se sabe implicar em coagir, forçar, fazer agir mediante violência ou grave ameaça, alguém (homem, mulher, ou mesmo hermafrodita - agora), a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

De igual forma, o elemento subjetivo, permanece inalterado, ou seja, continua sendo, ao nosso viso, o dolo específico (fim da prática sexual, ainda que na forma tentada, ou da realização do ato libidinoso), em que pese parte da doutrina, sustentar a necessidade do dolo genérico.

Saliente-se, como já dito, o fato do crime admitir a forma tentada, vez que via de regra, enquadra-se na categoria dos crimes plurissubistentesonde a consumação se dá de duas formas distintas, uma: na hipótese de conjunção carnal, com a introdução, ainda que parcial, do órgão sexual masculino no feminino, sem a necessidade de ejaculação; a outra, na hipótese de ato libidinoso diverso, com a satisfação da lascívia.

Dispõe a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XL que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", preceito este ecoado, também, no Código Penal, artigo 2º, parágrafo único.

Por tudo isto, chega-se imperiosamente a conclusão de que aos condenados pela prática das condutas descritas nos artigos 213 e 214 do Código Penal em concurso de crimes, cabe a adequação de suas respectivas, e que desta adequação resultará, efetivamente, a redução da pena aplicada.

Importa gizar, finalmente que por força de tal redução, devolver-se ao convívio social, colocando-se na rua, em algumas das situações revisadas, estupradores e "atentadores" violentos do pudor, e isto, a nós, nos parece não ter sido a intenção do Legislador reformista, portanto, neste aspecto, vale a aplicação do jargão popular de que "o tiro saiu pela culatra".



[1] Advogado. Consultor Jurídico. Professor e Conferencista.

[2] Art. 66. Compete ao Juiz da execução:

I - aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;