INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 trouxe diversas inovações, quando analisadas as conquistas nela presentes, no âmbito dos direitos humanos. Quer em relação aos direitos individuais, ou aos coletivos, sejam eles sociais, previdenciários ou de qualquer outra natureza, o esforço para garantir a sua concretização é notório. Há ainda outro diferencial, em relação às Constituições pretéritas: Não basta apenas a materialização desses direitos. Eles devem ser respeitados ? pelo Estado e por todos os cidadãos e estrangeiros que se encontrem no país ? igualmente. Isso quer dizer que independe de quem seja seu titular. Não deve haver distinção de sexo ou opção sexual, de origem, cor ou raça, de idade, do tipo de atividade profissional, de credo ou religião, ou de qualquer outra referência discriminatória.
Essa mudança significativa tem como uma de suas diretrizes o Princípio da Isonomia. Todavia, o grande desafio da atual Constituição, e do Direito, assim como de todos os seus operadores, é a transcendência da isonomia, da norma para a realidade. Observa-se, e não de hoje, que existem minorias cujos direitos não são respeitados ou, quando muito, o são de forma insatisfatória. É dizer: Há uma igualdade formal, onde todos são iguais, mas apenas perante a lei. São exemplos disso os homossexuais.
Esse trabalho busca demonstrar a distância a ser ainda percorrida pelo Direito, de forma a assegurar uma igualdade material aos homossexuais, tendo como base o Princípio da Isonomia. A ênfase será dada às relações homoafetivas, por ser, a nosso ver, uma das áreas mais fragilizadas, pela completa ausência de legislação para regulamentá-la. Por último, será feita uma discussão da jurisprudência existente, mostrando as decisões tomadas pelos juízes a respeito dessa matéria, para tentar dirimir os conflitos que inevitavelmente têm chegado aos tribunais.

1 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA E AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

Os princípios são direcionadores do Direito. "São verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade" . Assim, os princípios presentes em dado ordenamento jurídico são direcionadores da atividade legislativa. São orientações e diretivas de caráter geral. Mais que isso, os princípios são a principal fonte hermenêutica para a interpretação das normas e a comatação das lacunas. Assim, a interpretação das leis, para que seja possível sua aplicação ao caso concreto, passa pela análise dos princípios relacionados à matéria em questão. "Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo" .
Não se pode olvidar da força normativa dos princípios. Com efeito, eles são normas jurídicas, gerais, a determinarem a existência de outras normas, a eles subordinadas, que possuem caráter mais particular. Os princípios constitucionais, por esse âmbito, determinam um macrossistema, do qual fazem parte as normas ordinárias, não podendo elas se rebelar das diretrizes determinadas por eles. Alguns autores os consideram como sendo normas programáticas. Por isso, seus efeitos devem ser concretizados ao longo do tempo, à medida que as normas a eles subordinadas são produzidas, conferindo-lhes cada vez mais efetividade. Para nós, todavia, os princípios, sobretudo os constitucionais, têm eficácia plena. A partir do momento em que começam a existir, já produzem seus efeitos, jurídicos e fáticos. Com efeito, os princípios, embora sejam diretrizes para a produção de normas, não precisam destas para se concretizar. Sua concreção ocorre na interpretação/aplicação das leis já existentes. Entendimento diverso desse seria correr o risco de retirar dos princípios constitucionais sua força cogente, sua eficácia normativa.
Dentro da questão da homossexualidade, existem diversos princípios constitucionais que apresentam sua eficácia restrita, ou mesmo inexistente, dentre eles o da isonomia. Esse princípio fundamenta o direito à igualdade. Para alguns constitucionalistas, a Carta Magna recepciona apenas a igualdade formal. "As Constituições só têm reconhecido a igualdade no seu sentido jurídico-formal: igualdade perante a lei" . A Constituição de 1988 dá mostras disso em diversas passagens: Art. 3º, III e IV; Art. 5º, caput, e I; Art. 7º, XXX e XXXI. Todavia, não se pode esquecer de que para algumas pessoas não existe nem mesmo a igualdade formal. A própria Constituição de 1988 veda o casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Com efeito, o § 3º, do Art. 226, CF, determina: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento." Para não deixar qualquer sombra de dúvida, o § 5º do mesmo artigo complementa: "Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". Ora, é impossível a interpretação do texto constitucional de forma a possibilitar a união conjugal entre homossexuais. Para tanto, seria preciso entender, com base no § 3º do Art. 226, que a união estável entre pessoas do mesmo sexo não poderia ser convertida em casamento, sendo possível apenas o casamento civil entre elas. Além disso, de acordo com o § 5º, os direitos e deveres advindos dessa união jamais poderiam ser exercidos igualmente entre essas pessoas, mas apenas entre pessoas de sexos diferentes. Ambas as interpretações seriam equivocadas e inaplicáveis. Assim, a primeira providência a ser tomada, nesse sentido, seria uma Emenda Constitucional que modificasse o Art. 226, excluindo a diferenciação entre os sexos. Curiosamente, a mesma Constituição "[...] acrescenta vedações a distinção de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação" .
Nossa Constituição fez grande progresso, ao reconhecer a igualdade entre os sexos. De fato, a mulher sempre teve uma condição inferiorizada na sociedade e no Direito brasileiro, como se observa atualmente, mas gradualmente as diferenças vão diminuindo e o tratamento isonômico vai se impondo. O mesmo não se observa em relação à igualdade, sem distinção de orientação sexual. Até o presente momento, nenhuma modificação foi feita a nível constitucional, no sentido de assegurar um tratamento mais isonômico dos homossexuais. A PEC 66/2003, que dá nova redação aos Arts. 3º e 7º, CF/88, incluindo entre os objetivos fundantes do Estado a promoção do bem de todos, independentemente da opção sexual, encontra-se arquivada. Semelhantemente, a PEC 70/2003, que modifica o § 3º, do Art. 226, CF/88. Essa segunda exclui a expressão "entre um homem e uma mulher", assegurando o reconhecimento, pelo Estado, da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
A nível infraconstitucional, existem vários projetos de lei tramitando no legislativo. Buscam regulamentar diversas áreas que, até o presente momento, têm ficado à margem do Direito. São referências disso a regulamentação da união estável, a admissibilidade de cirurgia para mudança de sexo dos transexuais, permissão para que os travestis possam utilizar o nome social ao lado do prenome e nome oficiais, a substituição definitiva do prenome de transexual, a criminalização da homofobia, dentre outras. Alguns projetos de lei encontram-se já encaminhados ao Senado, após sua aprovação pela comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Outros, contudo, apesar de terem sido elaborados há muitos anos, permanecem estacionados nas casas do Senado.

2 ALGUNS PROBLEMAS NÃO SOLUCIONADOS PELO DIREITO NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

Mesmo que presente desde as mais antigas sociedades (nas civilizações da Grécia e Roma antigas, era considerado estágio de evolução da sexualidade), o tema da homossexualidade ainda hoje é tratado de forma preconceituosa e discriminadora.
Não há dúvida de que o processo de aceitação da questão é gradativo e demorado. Pode-se dizer que importante passo na evolução, e início de uma nova compreensão a respeito da homossexualidade deu-se em 1973, com a retirada do rol das perturbações mentais pela Sociedade Americana de Psiquiatria, e logo depois, em 1975, a mesma declarou que a homossexualidade não era uma patologia.
No âmbito nacional, somente em 1985, após grande pressão do Grupo Gay da Bahia, houve a retirada do enquadramento do homossexualismo como desvio de transtorno sexual. Somente em março de 1999, o Conselho Federal de Psicologia afirmou, através de uma resolução, a deliberação de que os psicólogos atuarão, dentro dos princípios éticos, com vistas a não discriminação, proibindo-os de qualquer ação que favoreça a patologização da homossexualidade.
Não se deve considerar a orientação sexual como elemento depreciativo da conduta do sujeito, uma vez que tal fator é determinante de sua personalidade. [...] os avanços da ciência estão a informar um novo horizonte de conhecimento sobre a temática, colocando-a em outro patamar de compreensão. (MATOS, 2006, p. 84)

Diversas questões podem ser suscitadas quando se trata de relações que envolvem pessoas com orientação sexual diferente daquela aceita como normal na sociedade, tanto no campo da legalização das relações homoafetivas, quanto nos motes que dizem respeito à filiação, aos direitos sucessórios, entre outros.
Mas diante da realidade que nos rodeia, é justo que se prive alguém de exercer seus direitos, pelos fundamentos baseados na sua preferência sexual? Que mesmo após anos de convivência, o parceiro venha a falecer e lhe couber qualquer parte no seguro de previdência? Ou que uma criança veja tolhido seu direito de crescer no seio de uma família, por esta não estar dentro do padrão social exigido? Ainda, aquele que apoiou e exerceu o papel durante anos seu companheiro, tenha que dividir ou entregar inteiramente (caso não reste comprovado o esforço comum) os bens adquiridos neste tempo (para efeitos de direitos sucessórios) com parentes que discriminaram aquele ou o excluíram da convivência familiar, por conta dar revelação de sua sexualidade?
O fato é que problemas assim existem, e o Direito parece fechar os olhos no sentido de dispor de soluções mais equitativas para esses casos. Quando muito, apresentam soluções tão discriminatórias quanto os fatos que geraram a lide trazida a juízo.

3 JURISPRUDÊNCIAS

Em 2008, o governador do estado do Rio de Janeiro entrou com a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº132, com o fim de incluir as uniões homoafetivas no regime jurídico da união estável.
O descumprimento de preceito fundamental se baseou em julgados que negam o reconhecimento de união estável entre homossexuais , sob o fundamento de que a Constituição, ao dar status de família à união estável, restringiu tal conceito às relações estabelecidas entre homem e mulher. Assim, conforme essa linha de entendimento, a relação existente entre parceiros homossexuais é caracterizada como sociedade de fato .
Tal fundamento não parece razoável, pois, como se sabe o art. 226, §3º, CF, foi inserido no ordenamento jurídico com o objetivo de afastar as discriminações feitas à companheira. Assim, a conotação dada a ele, nesses julgamentos, contradiz os preceitos estabelecidos na CF (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana), ao interpretá-lo de forma extensiva, fazendo dele norma de exclusão.
Além disso, o conceito de família é fluido e mutável, variando conforme a evolução cultural da sociedade, assim, não cabe à lei defini-lo de forma a excluir qualquer parcela da sociedade. "[...] a família deve progredir na medida em que progrida a sociedade, modificar-se na medida em que a sociedade se modifique. Ela é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema." (ENGELS, 1997, p.91)
Outros julgados já concederam benefícios previdenciários ao companheiro homossexual supérstite . E em maio de 2010, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) determinou às empresas prestadoras de serviços de seguro e plano de saúde que aceitem como dependentes parceiros homossexuais estáveis.
No direito comparado, já podem ser verificadas legislações que protegem os interesses dos homossexuais. Como o caso da Argentina, primeiro país da América Latina a permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo. O projeto encaminhado pelo Senado argentino e aprovado pela Câmara dos Deputados (vencendo com 126 votos sobre 109 contrários) prevê, ainda, o direito a esses casais adotarem crianças.
O tema gerou diversas polêmicas principalmente no âmbito das instituições religiosas, que se posicionaram contra a aprovação do projeto: "Os bispos como um todo reafirmam não concordar com este projeto, pois não prevê para o bem comum ou favorável ao fortalecimento da família na Argentina." (Jorge Oesterheld - porta- voz de imprensa do Episcopado argentino)
Os posicionamentos das confissões religiosas, no sentido de contrariarem o reconhecimento de uniões homoafetivas, são aceitáveis. Uma vez que lhes é lícito expor suas crenças e ideologias (por força da liberdade de consciência e crença), desde que manifestadas de forma pacífica. Porém, se mostra inconcebível que um Estado considerado laico, como o Brasil, deixe de prever normas que protejam essa relação ou tome posições discriminatórias em seus julgamentos.
A ordem jurídica conta com normas e instrumentos para coibir condutas prejudiciais a teceiros. Saindo desse campo, é preciso reconhecer que o estabelecimento de standards de moralidade já justificou, ao longo da história, variadas formas de exclusão social e política, valendo-se do discurso médico, religioso ou da repressão direta do poder. (ADPF 132, p.21)
CONCLUSÃO

Os conflitos advindos das relações homoafetivas, no Brasil, carecem de regulamentação legislativa. Como resultado disso, diversos direitos de cidadãos são inobservados, ferindo, assim, frontalmente a Constituição. As crises nas relações entre os homossexuais, não raro, levam ao término da união. Ocorre que esses vínculos não são reconhecidos pelo Direito. Assim, após a separação, não raro existem pendências que não podem ser resolvidas, ficando frustrados os titulares dos direitos desrespeitados.
Há também o problema da inexistência de direitos, como o de adoção ? pelo casal, como uma família, e não por apenas um dos parceiros -, assistência previdenciária, o de ser herdeiro necessário, dentre outros. Esse problema advém de outro maior: O não reconhecimento, pelo Direito, de vínculo matrimonial nas relações homoafetivas.


REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. trad . Leandro Konder. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Filiação e homossexualidade. In: Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 2005.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e dignidade humana: V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thomson, 2006.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132 ? 3/800, proposta em 27 de fevereiro de 2008. Disponível em: < http://www.stf.jus.br >. Acesso em: 07 abr. 2010.