Este trabalho tem como objetivo apresentar a Análise do Discurso presente na letra da música Tropicália, de Caetano Veloso, cantor, compositor e um dos principais ícones do movimento definido como Tropicalismo, sendo definido por ele mesmo, um movimento “avesso à Bossa Nova”

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Foi um movimento polêmico, duramente criticado, principalmente por estudantes da época, que viam aquilo como uma afronta, algo vindo dos Estados Unidos para impor dominação aos brasileiros, por isso os movimentos estudantis atacavam os tropicalistas por todos os lados. Pretendemos analisar discursivamente a letra dessa música, composta no final dos anos 60, durante a Ditadura Militar, e perceber a sua ideologia, sua história, sua linguagem, os seus sentidos possíveis, a relação entre a língua e o discurso, a materialidade lingüística, a construção do texto quanto à sintaxe, sua formação discursiva e suas condições de produção 

Caetano Veloso é considerado um dos fundadores do movimento do Tropicalismo, que, em 1967, revolucionou a Música Popular Brasileira. Esse movimento pretendia instaurar uma nova atitude: sua intervenção na cena cultural do país foi, antes de tudo, uma crítica. Vivíamos em plena Ditadura Militar, do então presidente Costa e Silva. Caetano Veloso mostra uma contundente necessidade de liberdade de expressão, para criar e criticar, porém via-se impedido pelas regras impostas pelo regime vigente.

Nessa época, as interferências do Departamento de Censura Federal, nas canções, já haviam se tornado costumeiras, algumas delas tinham versos cortados ou eram vetadas integralmente. Com o Ato Institucional nº 5, o AI5, de 13 de dezembro de 1968, a repressão política contra ativistas e intelectuais foi oficializada. Isso chegou até a levar Caetano Veloso à prisão, em 27 de dezembro.

Devido a todo esse clima repreensivo criado na época, Caetano Veloso, ao criar a canção Tropicália procurou esconder sua ideologia e sua crítica atrás de metáforas, marcas constantes em seu texto. Percebe-se, inicialmente, uma crítica à política brasileira, quando afirma, logo no início, eu oriento o carnaval (...) no planalto central do país. Ele faz uma referência a Brasília, capital do Brasil, situada no planalto central, e ao carnaval, como sinônimo de festa anárquica.

O sujeito aparece na primeira pessoa do singular, como ativo no processo de construção desse cenário: os meus pés, eu oriento, eu organizo, eu inauguro, dando a entender que seu posicionamento é bem próximo dos acontecimentos políticos de então. Logo no primeiro verso, sobre a cabeça os aviões, o sujeito autor, aqui colocado como ativo no processo, afirma que nada há acima dele a não ser aviões, é um ser supremo, inquestionável, inabalável, senhor de suas atitudes. No segundo verso, sob os meus pés os caminhões, entende-se que os caminhões citados são uma metáfora que se refere ao povo, pisado e humilhado.

Esse posicionamento deixa clara a materialidade lingüística utilizada pelo autor, já que não fala em povo, mas em caminhões, aparentemente desconexo semanticamente. É um disfarce lingüístico muito bem utilizado pelo sujeito-autor. Vem, então, o primeiro refrão: Viva a bossa, sa, sa,viva a palhoça, ça, ça, ça, ça. Nota-se uma associação fonética entre “palhoça” e “palhaço”, simbolizando, este, o povo brasileiro, “feito de bobo” pelo todo poderoso governo. A escolha pelo termo “palhoça” disfarça a crítica. E a repetição do fonema /s/ pode simbolizar a gargalhada irônica de quem está por cima.

Na segunda estrofe, é preciso prestar muita atenção nas metáforas, pois vão manifestar sobremaneira o sujeito interpelado pela ideologia: criticar de forma obscura. O “monumento” a que ele faz referência é o Palácio do Planalto, sede do governo federal em Brasília. Vejamos: é de papel crepom e prata, referência as cores e a beleza; não tem porta, por isso ninguém pode entrar, ninguém pode protestar; a entrada é uma rua estreita e torta, é difícil chegar até lá, o caminho é tortuoso, cheio de obstáculos. A mulata de olhos verdes é o símbolo das belezas naturais do país, escondidas pela cabeleira, atrás da verde mata, apodrecidas pelo sistema governamental.

Ainda nessa estrofe, teremos a crítica mais severa, a metáfora mais bem trabalhada pelo sujeito-autor, indiscutível, imperceptível, livre de quaisquer punições pela censura: e no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão. O “joelho” é o Nordeste brasileiro. Tomando-se por base o mapa do Brasil, é exatamente no Nordeste que temos uma forma parecida com um joelho dobrado, é lá que as crianças passam fome, estão abandonadas a toda sorte, são feias, maltratadas, e estendem a mão, pedindo ajuda, sorridentes, procurando ser simpáticas, mas esquecidas pelo governo, que atende a seus interesses e preocupa-se em calar a boca dos intelectuais e dos ativistas. E para associar esse fato à morte, vem o segundo refrão.

Viva a mata ta, ta, viva a mulata ta, ta, ta, ta. Nota-se um interessante jogo fonético: a repetição da sílaba “ta” nos remete ao som das metralhadoras, símbolo contundente da morte através do genocídio. É evidente a presença de um interdiscurso, um resgate da memória, retornando ao período de mortes, provocadas pelas duas primeiras grandes guerras mundiais, simplesmente porque os interesses de alguém falavam mais alto que os interesses de todo um povo.

As metáforas da terceira estrofe confirmam a ideologia do sujeito-autor e seu posicionamento crítico em relação ao governo federal. No pátio interno há uma piscina, é assim mesmo que se forma o Palácio do Planalto: na praça dos Três Poderes há uma imensa piscina, onde não se pode tomar banho. A água é azul, cristalina, exaltando as belezas naturais. Na mão direita tem uma roseira, autenticando eterna primavera: nesse fragmento nota-se a metáfora da rosa, lá sempre é primavera, sempre é tudo belo, todos vivem felizes. E no jardim os urubus passeiam (...) entre os girassóis, é evidente que o termo “urubus” é referência aos políticos, que passeiam, aproveitam o poder que têm nas mãos.

No próximo refrão, novamente um jogo sonoro de efeito surpreendente: Viva Maria, ia, ia, viva a Bahia, ia, ia, ia, ia. Maria e Bahia simbolizam o povo sofrido. E a repetição da sílaba “ia” tem efeito sonoro exatamente oposto. Esse repetição oral altera a posição das vogais e percebe-se um grito de dor: ai, ai, ai, ai. Se Caetano Veloso tivesse optado por repetir, na escrita, a sílaba “ai”, a censura cortaria esse trecho, por ficar evidente a crítica ao governo através da dor do povo. Mas ele, magistralmente, inverteu as vogais, e o grito de dor só é perceptível aos nossos ouvidos, não aos nossos olhos.

A quarta estrofe tem condições amplas de produção. É um momento complexo de interligação entre o texto e o discurso do sujeito-autor. Ideologicamente, ele nos mostra que a crítica acentuada é feita diretamente ao alvo: o presidente da República, o militar ditador. No pulso esquerdo o bang-bang, simboliza o poder; em suas veias corre muito pouco sangue, percebe-se a crítica à falta de sensibilidade do governante aqui criticado, que não se emociona ao ver a situação em que está seu país. Mas seu coração balança um samba de tamborim, mostra que, apesar dos problemas, o governante comemora sua posição, seu poder, sem se preocupar com o povo sofrido. No final dessa estrofe, ele põe os olhos grandes em mim, o sujeito-autor muda o foco da primeira pessoa que inicia o discurso. De poderoso a combatido, essa pessoa denuncia ser o alvo das perseguições, ele se coloca como um perseguido, um sujeito que deve se calar, que não tem o direito de abrir a boca para criticar, pois estão de olho nele.

No refrão, o suieito-autor faz nova brincadeira fonética. Aproveita dois “ícones” nacionais, Iracema de Alencar e Ipanema de Vinícius, para repetir a última sílaba, formando, assim, o adjetivo má. Esse adjetivo nos remete à administração pública, ao governante tirano, à sua índole, à sua alma, à sua visão egocêntrica, poderosa, dona de si. Ao mesmo tempo, é possível notar que a sílaba “ma”, pode nos remeter a um alguém que invocamos em caso de necessidade e que temos certeza de que vai nos amparar: “ma” de mamãe. É ela que nos protege, nos acode, nos ajuda quando precisamos. É ela que estende o braço, que não nos abandona quando precisamos. Diferentemente do governante público, que aproveita seu poder em benefício próprio e se esquece do povo, objeto de seu governo. 

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