A tridimensionalidade do direito e crise dos sistemas legais

 

            Um dos temas jurídicos pouco enfrentados na literatura acadêmica ou em salas de aula nos cursos de Direito é a Tridimensionalidade do Direito. Se fato, valor e norma são elementos fundamentais da compreensão da experiência jurídica nos ordenamentos, porque não considerar que o Direito uma Ciência Tridimensional?.

           

Miguel Reale, cultor no Brasil do Direito Tridimensional, faleceu recentemente, e, muitos poucos juristas tentaram seguir adiante na compreensão da experiência jurídica a partir da Teoria Tridimensional, na sua tríade: fato, valor e norma.

 

            O Direito é um produto da cultura, e possui o dinamismo da evolução humana em todos os sentidos e áreas, daí, estar sempre dicotomizado em duas partes: o estudo do ordenamento jurídico ou sistema jurídico de normas; e, através da Ciência do Direito, para explicar a variedade de conteúdo social e estudo da Jurisprudência.

 

Li, não faz muitos anos, um artigo de um professor Oliveiros Litrentos, da Universidade Estácio de Sá, que partindo da compreensão do Direito e experiência, propunha não um direito tridimensional, mas, pentadimensional, acrescentando aos conceitos de Reale, Espaço e Tempo.

 

Disto tratarei muito adiante neste trabalho, por enquanto, vou preferir analisar a teoria do ilustre mestre do nosso Direito, Reale, na visão de busca de um paradigma, que permita avançar sobre o sistema “Direito e Experiência”, suas lutas e meios de solução dos atuais conflitos, deixando de lado, o sistema  puramente tradicionalista de solução por decisões judiciais muitas vezes afastadas da realidade das pessoas, a quem a norma se dirige.

 

Em sua obra clássica “Lições Preliminares de Direito”, edição de 2002, Reale traça uma relação de convivência entre a Ciência do Direito e a História, dizendo ali que embora sejam campos distintos do conhecimento humano, se reúnem sobre uma base única da experiência humana, e em síntese afirmava ali, que estudar o Direito era compreender os fundamentos dos fenômenos sociais, históricos-culturais e morais da sociedade e seus grupos, suas questões, sempre baseadas no fenômeno cultural que molda o modelo e sistemas de regras.

 

Sintetizou assim, o citado mestre: “Direito, significa, por conseguinte, tanto o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas ou regras jurídicas que traça aos homens determinadas formas de comportamento, conferindo-lhes possibilidades de agir, como o tipo de ciência que estuda a Ciência do Direito e a Jurisprudência” v. p. 62, ob. Cit.

 

O direito em sua evolução, diremos sempre, é produto primeiro dos elementos multiculturais de um povo, mas, em segundo lugar, produto da experiência vivida por esse mesmo povo.

 

Nesse caminhar pensou o jurista ARTEMIO ZANON, que afirmou : “Organizados, os homens se submetem ou são submetidos a regras de conduta, de responsabilidades – deveres e direitos - , regras providas de sanções mais ou menos efetivas visando assegurar um comportamento individual e coletivo: são as regras ou as normas éticas. Tais normas não são arbitrárias ou artificiais. São parâmetros seguidos da observação e da experiência e que visam regular a atividade humana”. V. p. 23, in Introdução à  Ciência do Direito Penal, OAB-SC, 2ª. Ed. 2000.

 

E não adianta a arbitrariedade normativa, inspirada na falta de apoio social, moral e ético ou mesmo histórico, pois se assim o for, a norma pode não ter efetividade. Como dizia Maria Helena Diniz, escrevendo a respeito em uma de suas obras sobre o tema, que a falta de efetividade normativa dá-se pela resistência social à mesma, de forma que faltando-lhe respaldo social, por exemplo, ela não possui fundo prático ou aplicação. Todo conteúdo normativo necessita para a sua implementação no mundo jurídico de respaldo social sob pena de não ter efetividade.

 

Prova disso, quando a Constituição prefigurou a repartição dos lucros das empresas com seus empregados. O dilema aqui é a repartição dos lucros do capitalista com os trabalhadores, como fazer?

 

A regra constitucional é sempre extensiva, pela inaplicação em face a resistência de empresários e empregadores, surgiu a necessidade de interpretar o que viria a ser lucros para esse fim.

 

A saída foi entender possível a repartição daquilo que pudesse o empresário ou empregador abater na receita operacional junto ao Imposto de Renda, sua obrigatoriedade foi mitigada e sua conseqüência abrandada.

 

É o contexto social e cultural que manteve a norma acima destituída de respaldo moral para efetivar-se.

 

Outro exemplo, que pode servir de indicação de falta de força efetiva na aplicação da norma, é a resistência moral e cultural. Nós caímos de cara no chão com os princípios ensinados pelo jurista alemão Konrad Hesse, segundo que toda regra constitucional em si tem uma efetividade normativa própria.

 

Hesse contrariava o pensamento de Ferdinand La Salle, para quem a Constituição não passava de uma folha de papel, necessitando de uma força política para dar-lhe força efetiva.

 

No Brasil nosso de cada dia, temos o caso da lei Maria da Penha, criada a partir de um fato indicador de violência gratuita sobre contra as mulheres, e, tendo a sociedade o desejo de ver essa situação resolvida, assim reclamando o amparo de soluções reais e morais para impedir a continuidade dessa violência, é que os legisladores resolveram editar uma lei impondo punições aos maridos e parceiros, ou companheiros violentos, o que gerou a reação de não mais bater ou violentar, porém matar.

 

Ou seja, os agressores passaram a entender que já que teriam de ser punidos o seriam pela maior violência possível, os agressores contrapondo-se à lei, mandaram um recado, não adianta essa lei, agora vamos fazer o que sempre fizemos, e ao final, mataremos.

 

Embora, os tribunais digam que há o combate a essa violência, em várias situações pouco podem fazer para evitar o trágico desfecho, razão por que as medidas impositivas não deram ou não dão resultado satisfatório à sociedade e ao combate a essa violência. E sabe por quê? Porque o Direito Penal não tem base pedagógica para educar, apenas para punir.

 

Assim como os outros ramos do Direito, precisa de conteúdo social, moral e racional para indicar o caminhar no sentido correto da cultura de um povo.

 

A democracia ou o sistema de democracia normativa não serve de simples emblema, pois, não é suficiente explicar conflitos e alternar soluções reais, se não houver consenso e desejo de submissão.

 

Isto é assim, continuará como tal, pois nenhuma norma de alcance é discutida pelas comunidades e populações atingidas. As normas são criadas e aditadas ao sistema complexo de ordem jurídico onde há outro enfeixe de normas de variadas situações em contradição, ou reguladas por submissão e subjugamento, e algumas dessas situações e direitos são deixados de lado na prática.

 

O nosso STF ao julgar casos com base na proposta de razoabilidade e proporcionalidade pratica alguns absurdos que são pouco compreendidos, sujeitos a interpretações sobre o comportamento judicante do próprio Supremo, que, às vezes, apresenta o famoso fundamento da “Katchanga”, ou seja um decisionismo de “achados”.

 

Depois, não nos assiste ao brasileiro o direito de arena, e outros meios típicos de sistemas democráticos podem visualizar.

 

Então, porque isso é assim. Embora queiramos nos imaginar diferentes, não somos, por exemplo, dos nossos vizinhos hispânicos. Nosso sistema é legislado e puro, e os modelos são impostos de cima para baixo.

 

A nossa cultura é essa. Ibérica. Formalista. A nossa história é essa, porque o nosso mundo é esse.

 

Muitos dos que se voltam contra a teoria da tridimensionalidade do direito, imaginam apenas um sistema juspositivista hermético, a impor uma ordem ou situação jurídica onde as pessoas sofrem o influxo da predeterminação normativista. Mas não é isso.

 

Numa análise criteriosa, RONALD DWORKIN, revela-nos essa distância entre os positivistas e o dinamismo jurídico efetivo que se envolve nas reais condições morais, sociais, econômicas e até políticas nas sociedades modernas.

 

Diz esse autor, aduzindo a nova roupagem juspositivista dos seguidores de BENTHAM:

 

A teoria dominante é contestada, por exemplo, por diversas formas de coletivismo. O positivismo jurídico pressupõe que o direito é criado por práticas sociais e decisões institucionais explícitas; rejeita a idéia mais obscura e romântica de que a legislação é produto de uma vontade geral ou da vontade de uma pessoa jurídica” – v. pág. 119, da obra Levando os direitos a sério, Martins Fontes ( editora).

 

Dworkim seguindo em sua análise, se posiciona sobre as decisões judiciais em si, dizendo: “O meu ponto de vista não é que o direito contenha um número fixo de padrões, alguns dos quais são regras e outros, princípios. Na verdade, quero opor-me à idéia de que o direito é um conjunto de padrões fixo de algum tipo”.  – idem, idem.

 

Isto significa não um mundo jurídico estático, ou estaríamos negando o dinamismo afirmado, mas um direito dependente dos valores, cultura e condições sociais de um povo. As leis se determinam pela necessidade de encontrar um equilíbrio moral e ético, que possam enfeixar as situações muticulturais.

 

Mas, o Direito não é norma pura, mas um conhecimento humano que informa a necessidade de estruturação de uma realidade concreta, como aprendemos com Reale, linhas abaixo:

 

a) que toda interpretação é de natureza teleológica (finalística) fundada na consistência axiológica ( valores) do Direito; b) que toda interpretação jurídica dá-se numa estrutura de significações, ou seja, visa “penetrar nas suas significações particulares”, busca um fim próprio dos seus termos; e, c) que cada preceito significa algo situado no todo do ordenamento jurídico ( algo sistêmico).”

 

            Trabalhando a questão da aplicação justa da lei, Reale, cuidadosamente exprime a necessidade de fundamento sociológico da regra, onde a aplicação hermenêutica deve levar em conta a finalidade social da lei, dizendo:

 

 “se amenizam as condições esquemáticas da regra genérica, tendo em vista a necessidade de ajustá-la às particularidades que cercam certas hipóteses da vida socialv. pág. 295, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 1993, 20ª edição.

 

 Na verdade, os puros positivistas são seguidores de esquemas legais, prontos, repassados, e muitas vezes repetidos em decisões judiciais, numa pura opressão ao destinatário da aplicação da justiça, seja para um benefício seja para sentenciar.

 

Os elementos ou fatores fato, valor e norma, não existem isoladamente, fazem parte e integram o processo cultural da experiência jurídica e humana. Eles funcionam reunidos como sistema integrado devido a realidade histórico-cultural que os determina.

 

Ora, explica-nos mais uma vez Reale: o fato é subjacente como fenômeno jurídico, pois é um contexto econômico, geográfico, de ordem técnica; o valor é o que confere significação a esse fato, logo está integrado ao momento e ao contexto, inclinando ou determinando o agir humano numa dada finalidade;  e,  a norma, é a expressão ou medida que vai orientar e integrar os demais elementos, dando-lhes dimensão.

 

É que o Direito, segundo o citado mestre, como toda área de estudo e compreensão, precisa de um fundamento, e eis fundamento, diz o mestre:

 

Em resumo, são três os aspectos essenciais de validade do Direito, três requisitos para que uma regra jurídica seja legitimamente obrigatória: o fundamento, a vigência e a eficácia, que correspondem, respectivamente, à validade ética, à validade formal ou técnico-jurídica e à validade social. Fácil perceber que a apreciação ora feita sobre vigência, eficácia e fundamento vem comprovar a já assinalada estrutura tridimensional do Direito” – v. pág. 115, obra e autor citados.

 

Assim, notamos uma distância enorme das decisões atuais, em razão do dano moral, por exemplo, quando a pessoa sofre ofensa que lhe é irreparável, mesmo quando somente  prejudicial, e embora reconhecido, os magistrados preferem arbitrar coerções, sanções ou indenizações que não enquadram os condenados, e ainda, informam a possibilidade de que novas ofensas possam resultar em nada.

 

Ou ainda decisões de limitação de conduta aos agressores de mulheres, mas que na prática o Estado não tem meios nem formas de impedir que a vingança dos ofensores sejam ainda mais violentas.

 

Nesse ponto, essas questionáveis decisões não trazem justiça, não traduzem qualquer ideal de justiça, ainda que juspositivo, e criam uma descrença na validade delas, pois, velam uma proteção sutil ao ofensor, deixando as vítimas sem amparo, já que o agressor segue no incentivo de praticar novas ofensas porque compensa o comportamento e conduta escolhida. Geram, estas decisões, insatisfações que, de alguma forma estão a indicar que procurar o Judiciário não vale muito a pena.

 

E são mesmos questionáveis. Conforme explicava Maria Helena Diniz, faltando à norma respaldo social, sua eficácia carece de validade, e, para o homem comum, a decisão judicial é um sentido de norma, embora de fato não o seja.

 

O fracasso do Judiciário, moroso, lento, ineficaz, solve a confiança em suas decisões, dissolve a crença de busca de justiça estatal, aliás, recentemente, em uma entrevista a uma emissora de TV, o Ministro Cesar Peluzo do STF, admitiu que a crença em soluções via Judiciário diminui cada vez mais, face ao modelo e sistema que temos no momento.

 

E Reale expressou bem isso, ao tratar do fundamento da regra no tempo e no espaço, que variam conforme a cultura, não se opondo ao pensamento de Dworkim, posto que para este, o direito não segue padrões específicos, depende antes de tudo, da cultura que lhe empresta o valor de norma capaz de reger o mundo do direito e a vida dos direitos.

 

Portanto, padrões multiculturais em evolução no tempo e espaço, como os juristas da Estácio, e fato, valor e norma, demonstrados pelo saudoso mestre autor entre nós da tridimensionalidade.