A teoria dos ‘mensalões’


Que tal brincarmos um pouco de esconde-esconde? Vou dizer uma palavra, e convidá-los a descobrir o que se oculta atrás dela.  Proponho a palavra ‘mensalão’.

 

Antes de sairmos à cata do escondido, no entanto, conversemos um pouco a respeito do que ela mesma, enquanto signo linguístico, tem a nos dizer. A palavra é nova, ainda não consta dos dicionários, mas já transita livre e desenvolta pelos terrenos da semântica. À superfície, significa pagamento mensal feito a parlamentares, em troca de apoio político.

 

Prestaram bem atenção? É isto mesmo: pagamento mensal feito a parlamentares, em troca de apoio político. Vale dizer, significa compra de consciência.

 

Ora, se levarmos em conta o fato de que a língua portuguesa oferece recursos mais capacitados a definir o negócio, como sejam as predicações da infâmia, da torpeza, da vilania, da abjeção, da degradação,  facilmente se percebe o caráter eufemístico, brando e complacente do termo ‘mensalão’, escolhido para designá-lo.

 

Chega a parecer sarcástica  a flagrante desproporção entre o peso esmagador do conceito,  e a leveza simplificadora da palavra, posto que, do monturo conceitual percebido,  ‘mensalão’ pinça tão somente a periodicidade mensal do asqueroso escambo.

 

E como se essa frouxidão lexical não bastasse, ‘mensalão’ se insinua na categoria dos aumentativos amistosos, que nomeiam de bom humor pessoas, figuras, espaços e ocasiões  familiares.  Assim enturmado, em pouco tempo, sob o efeito da química social,  ‘mensalão’ veste a camisa do time e circula com naturalidade entre parceiros como ‘paizão’, ‘vôzão’, ‘amigão’, ‘maridão’, ‘brasileirão’, ‘domingão’, ‘ricardão’, e outros rebentos da criatividade popular. 

 

Dali em diante,  ‘mensalão’ esquece as origens, ganha autonomia discursiva, isto é, transforma-se em mito, e se instala em terreno folclórico, tão livre quanto inimputável.

 

Não demora muito, começam a surgir os achincalhes do dinheiro na cueca, da bagagem que embarcou como uísque em Brasília e desembarcou como dólares em Campinas, do numerário escondido nas meias, nos sutiãs, do mordomo assessor, ou do assessor mordomo, se preferirem, e, mais recentemente, da multiplicação dos panetones.

 

A muitos pode parecer contingente essa transição do torpe ao ridículo. Para evitar choques e sobressaltos a quem pensar assim, estimo lembrar desde logo que a aludida  transição  do torpe ao ridículo não constitui  nenhuma novidade histórica.

 

Com efeito, Michel Foucault lembra que o fenômeno se observa sempre que as leis conferem poderes a quem não está intrinsecamente habilitado a exercê-los.  É o que ele  chama de “poder grotesco”. De Nero a Mussolini encontram-se variados exemplos de investiduras grotescas, exercidas por autoridades ridículas.  

 

Nesse caso, o ridículo do ‘mensalão’ integraria um ritual previsível, dentro da categoria histórico-política do “poder grotesco”. Isto posto, se o poder  é grotesco, será necessariamente ridículo, e vice-versa, não sendo  necessário mencionar a sua vocação autoritária.

 

E o mais interessante, assinala o mestre francês, acaba sendo que o ridículo não ameaça,  nem mesmo  enfraquece os governantes grotescos, mas apenas facilita a assimilação da incontornabilidade e da inevitabilidade do poder, que segue em frente, a despeito da desqualificação intrínseca dos seus detentores.

 

No universo dos ‘mensalões’ brasileiros, apenas o hemisfério do ridículo aparece com toda nitidez. De modo que a outra face, a face do poder grotesco, que seguramente lá está,  terá de ser deduzida nos termos da equação de Foucault.   

No mais,  só nos resta arrematar a brincadeira do esconde-esconde, revelando   o que de material  encobre o complacente rótulo de ‘mensalão’. 

 

Bem, a miséria legada pelos ‘mensalões’ está por toda parte. No entorpecimento de crianças, na prostituição de adolescentes, na má qualidade do ensino, na falta de segurança  e, por fim,  na fila  dos hospitais, onde  cada centavo desviado ecoa um gemido de dor.