A TECNOLOGIA NO AMOR - (Um conto inter-racial)

Raquel Pereira Bittencourt

 O bate papo na sala do “chat[1]” estava animado aquele dia. Pierre era um moço louro, alto e bonito, que vivia conversando nestas salas de bate-papo. Não que ele tivesse problema de relacionamento, pelo contrário, era bastante popular no meio acadêmico e tinha muitos amigos. Mas ele queria conhecer outras pessoas, que fossem de outros paises, acessando sites de comunidades do exterior e se possível, mantendo conversação com estes povos, para poder trocar informações nos idiomas os quais estava aprendendo. Entrava sempre nas salas em que as pessoas falavam inglês e tentava ficar o mais tempo possível e usar a língua, porque seu pai prometera que somente lhe ajudaria a  financiar parte de um período nos Estados Unidos, quando ele tivesse dominado as quatro habilidades da língua, que são escrita, leitura, a fala e a audição.  Ficava feliz em saber, que ele fazia parte de uma classe privilegiada no país, pois estudava em uma universidade particular, estava aprendendo mais três idiomas importantes além do inglês, e trabalhava apenas meio período, coisa que era muito rara nas outras camadas da sociedade menos favorecidas. O Sr. Jean, seu pai, era um militar de carreira, que gostaria muito que o filho fizesse o mesmo, mas Pierre queria ser diplomata e não queria seguir uma carreira militar.

Ficava admirado com a tecnologia que havia e imaginando como existiam cérebros fantásticos no mundo, para criar uma máquina tão poderosa quanto ao computador. Em questão de segundos enviava palavras, sons, imagens e as recebia da mesma forma. Agradecia aos pais da computação, por colocar este instrumento de comunicação em suas mãos, sem contar que, era uma ferramenta maravilhosa para pesquisas e informações que necessitava para seus trabalhos acadêmicos. Pierre estava tão fascinado por isso, que a maior parte do seu tempo, dedicava-se a mexer e a remexer nos programas que encontrava. Era muito gratificante ficar trocando experiências com outras pessoas e ao mesmo tempo, interagir com a tecnologia. Isto era ótimo e se pudesse ficaria apenas fazendo isso, mas não era o que ocorria, porque sabia que essa máquina como qualquer outra coisa, tem seu lado bom e o seu lado mal. Ele já havia conversado com várias pessoas que se diziam viciadas em jogos e sala de papos. Não era isso que ele queria.

Assim, Pierre passava suas horas vagas sempre que podia, conversando com pessoas da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Austrália e ultimamente até mesmo da África ele havia conversado. Aliás, mais especificamente, havia feito amizade com um grupo de angolanos que sempre frequentava a sala e as experiências eram fantásticas. Alguns deles tinha muita curiosidade em saber, como os africanos eram tratados em um país, cuja maioria é branca. Ele sempre garantia a eles, que neste país, não havia racismo. Que todos toleravam as diferenças com tranqüilidade e igualdade e que se um dia eles resolvessem visitar o país, ele teria certeza, os seus pais não se importariam, em hospedar alguns deles. Eles perguntavam sobre a questão da escravidão que ocorrera séculos antes, se isso não impedia as pessoas conviverem com outras, sem inferiorizá-las. E ele sempre demonstrava ser aqui, o País da solidariedade e da confraternização dos povos, haja vista, o próprio povo ser uma miscigenação completa de muitas raças, credos e diferenças enfim, que foram se misturando e tornando as pessoas mais tolerantes uns com os outros.

Pierre na realidade, nunca pensou na questão de raça, como um problema, mas sim como uma solução. Quando estava na aula de história, ficava sempre imaginando de onde havia vindo e para onde iria. Sempre falavam que o berço da humanidade estava na África e ficava imaginando de que forma houve essa variação da pigmentação da pele e quais foram os fatores que detonaram essa mudança. Pensava com ele, que todos nós somos irmãos de uma maneira ou de outra, e que não haveria mesmo na atualidade quando se faz teste de DNA, para saber com certeza como separar uma raça da outra. Era praticamente impossível de se separar de alguém, a descendência de determinado povo ou cultura.

Então, com o passar do tempo, e de tanto freqüentar a mesma sala, as pessoas começavam a fazer a tal “amizade virtual”, que muitos levavam a sério. Elas usavam apelidos na maior parte do tempo. Isso não as impedia de usar o nome verdadeiro se quisessem, mas para ficarem anônimas,  usavam pseudônimos. Pierre se divertia muito, porque tinham pessoas que eram realmente fanáticas naquilo, de uma maneira tão “real”, que chegavam a namorar e a ter filhos virtualmente, o que para Pierre era muito engraçado. Ele pensava consigo mesmo “Pena que meu curso, não é Psicologia porque essas salas de bate-papo, dariam uma dissertação e tanto de mestrado, só de ficar analisando o comportamento das pessoas dentro delas”.  As pessoas que freqüentam a sala, na maioria eram solitárias, tinham problema de saúde e algumas ainda, apresentavam distúrbios psicológicos. Coisas que mesmo um leigo conseguiria analisar.

Mas no meio destas pessoas, uma em especial começou a se destacar, pela inteligência e pelas respostas agudas e desafiadoras que lançava na sala, fazendo com que muitos dos participantes prestassem atenção nas palavras digitadas e se sentissem obrigados a pesquisar e a tentar resolver os problemas que eram levantados. O apelido que usava na sala era “Ariel” e isso o destacava dos demais, por não era qualquer pessoa que sabia que este personagem fazia parte da peça “A tempestade” de Shakespeare. Apenas pessoas com certo grau de cultura, saberiam disso. Quem tivesse lido sabia que Ariel era um espírito, que se transformava até em ninfa, conforme mandasse seu amo. Portanto, Pierre se sentia em casa quando conversava com “Ariel”. Ela conversava apenas em inglês, mas para ele era mais que o suficiente. Não haveria necessidade de conversar nas outras línguas que estava aprendendo, porque havia outras pessoas que conversavam com ela normalmente. Porém, com o passar do tempo, o diálogo entre Pierre e Ariel, começou a se aprofundar e não mais a se restringir sobre questões de linguagem. Ele achava pouco convencional, mas agora tinha uma amiga virtual.  “Será que estou ficando doente como àqueles compulsivos que analisei?” – refletia ele de vez em quando. Não! Ele sabia separar bem o “real” do “virtual”.  Era uma máquina apenas, letras. Letras são frias mortas e quando não há a sensação de humanidade do outro lado do monitor, não há resquício de sentimentalismos. Deveria apenas saber separar as coisas. Jamais em tempo algum, tentar trazer para o “real” o que era virtual. Já havia ouvido falar de barbaridades que aconteceram com pessoas que freqüentavam estas salas, e que depois resolveram se conhecer. Muitas delas eram psicopatas, tinha que tomar cuidado com quem conversava.

Os acessos começaram a ficar mais freqüentes.  “Ariel” estava na sala todos os dias e mais intensamente a noite, quando além de digitar, podiam falar no “viva voz” que suas salas forneciam. Assim, podiam ficar horas e horas conversando pelo computador, trocando idéias sobre diversos assuntos e conversando em inglês, que era uma das línguas objeto de desejo de Pierre, para aprendizado. Algumas vezes até, o próprio pai de Pierre, trocava algumas palavras em inglês com a jovem, que se dizia portuguesa e que de fato, tinha um sotaque bem peculiar. A comunidade portuguesa na África não é desconhecida, pois muitos países deste continente foram colonizados por Portugal e outros paises europeus, como a Inglaterra por exemplo. Assim, não era de se admirar encontrar tantas pessoas que falavam bem o inglês e também o português.

Um dia, algo começou a mudar na amizade dos dois. Ariel agora tinha novas amizades virtuais que como Pierre, tinham sido cativadas pela inteligência da jovem. Pierre achava que as pessoas se envolviam demais na rede, e nunca havia levado a sério essa bobagem de sentimento. No entanto, algo estava mudando dentro dele. Estava com ciúmes dos outros rapazes que conversavam com Ariel.  Era uma coisa estranha, que jamais ele havia sentido antes. Repartir a atenção dela com mais algumas pessoas, não estava mais agradando. Ele queria mais do que apenas ser uma letra. Decidiu perguntar:

- Ariel, qual seu nome verdadeiro? Faz uns seis meses que sempre trocamos idéia pelo bate-papo, mas você nunca me disse seu nome – Falou Pierre, tentando interromper a conversação das outras pessoas.

- Meu nome verdadeiro é Núbia .  O Seu é “Próspero” mesmo? – Respondeu

- Meu nome é Pierre. Minha família é toda da França – disse ele.

- Que bacana! Nome de pessoa importante! – brincou Núbia.

- É... somos todos franceses por aqui ! – Respondeu Pierre.

- Pierre... entrarei em férias o mês que vem! e meu pai tem negócios para concretizar em São Paulo.

- Que ótimo. Por acaso pretende passar por perto de Cubatão?

- Não sei se é perto de São Paulo, se for, quem sabe  meu pai e eu possamos dar um passeio por ai. Faremos um cruzeiro e chegaremos no Porto de Santos – respondeu Núbia.

 De repente, Pierre se deu conta, de que poderiam se conhecer e desta simples interação na Internet, poderia nascer uma grande amizade.

- Nós poderíamos marcar para nos encontrar, o que você acha?

- Acho perfeito. Na realidade minha ida até o Brasil, não tem outra finalidade, a não ser conhecê-lo – disse Núbia.

- Ainda temos uns dias para trocar idéias sobre isso – respondeu Pierre.

 II

 E assim, foram se passando os dias, sempre os dois trocando idéia pela rede e combinando como fariam para se encontrar. Pierre sabia que o navio atracaria no Porto de Santos, mas limitou-se em saber qual hotel ficariam hospedados, uma vez que o pai de Núbia talvez tivesse compromissos marcados e ele não queria ser inconveniente. Ficariam em torno de um mês para acertar os negócios do pai de Núbia, que era apenas para finalizar detalhes de exportação de alguns produtos para a África e antes de retornar a cidade de origem, teriam algum tempo para conhecer a cidade. O Transatlântico “CARIBE”, desembarcou no Porto de Santos pontualmente as 09h00 horas da manhã de uma quarta feira. Dentre os muitos passageiros que desembarcavam no Porto, estava uma jovem negra, alta, com dentes perfeitos e sorriso aberto, acompanhada de um senhor de meia idade, igualmente negro e simpático. Ambos vestidos com trajes típicos da região em que viviam, se dirigiram para o local de táxis e foram direto para o hotel contratado.

O telefone tocou exatamente as 15h00 horas, conforme o combinado. Pierre não conseguia disfarçar a inquietação da espera e da curiosidade. Do outro lado da linha, a africana lhe passava o endereço e horário que deveria encontrá-la. Pierre estava muito feliz. Afinal de contas... não é sempre que se tem oportunidade de vivenciar uma coisa tão nova e ao mesmo tempo, tão esperada. Agora era “real” e, a realidade às vezes prega peças, e essa realmente era a sensação do estar vivo, do olho no olho, era o momento da verdade. Pierre se dirigiu imediatamente para o hotel em que se encontravam os visitantes. Havia comprado um buquê de flores para Núbia e um vinho para o pai da amiga. No entanto, Sr. Chinua estava atarefado demais com os negócios, de forma que nem mesmo desceu do seu quarto para cumprimentar o anfitrião. Na verdade, o interesse em conhecer Pierre era apenas de Núbia.

Pierre tremia ao apertar a mão daquela africana tão simpática. Não era linda, podia-se até dizer que para muitas pessoas, Núbia seria considerada feia. Mas ele se sentiu imediatamente atraído por ela, como um imã. Depois de cumprimentos desajeitados e nervosos, nem de longe pareciam aqueles que comodamente se sentavam em frente aos seus monitores e ficavam trocando gentilezas, sem a menor preocupação ou mesmo timidez. Depois de um certo embaraço, Núbia fala com seu português bem acentuado para Pierre:

- Então, amado, conseguimos agora consolidar nossa amizade de tanto tempo.

- Há muitas coisas para serem ditas e vistas – disse Pierre, ainda se refazendo da emoção – pena que são poucos dias que ficarão por aqui.

- Meu pai tem muitos negócios com outros africanos , que se instalaram aqui no Brasil. Na realidade, quem deverá fazer um “tour” pela cidade com você – disse Núbia – serei somente eu. Papai tem negócios a tratar.

 Pierre a levou para conhecer primeiramente os locais turísticos de Santos. Como sabe-se no tempo do império, Santos era uma das cidades preferidas de D. Pedro I , chegando a conferir o título a sua amante de “Marquesa de Santos”. Além de possuir o maior Porto do Brasil, ainda é rodeada de praias maravilhosas. O restante do dia foi muito bom para ambos. Núbia chamava a atenção de muitos na cidade, pois seu traje tipicamente africano, a evidenciava no meio das pessoas. Pierre escutava comentários dos mais variados sobre a moça, mas não os levou a sério. Ao retornar para o hotel, teve uma surpresa das menos felizes possíveis. O  Sr. Chinua pai de Núbia, os aguardava na recepção do hotel. Assim que Núbia os apresentou, o Sr. Chinua imediatamente fuzilou Pierre com o olhar. Núbia esquecera de mencionar ao pai, que Pierre era branco. Nem mesmo o cumprimento tradicional de apertar as mãos, o pai de Núbia fez questão de retribuir. Disse um boa noite contrariado, falando em português arrastado, disse a filha para que não demorasse muito a subir. Rodopiou em seus calcanhares, entrou no elevador, sem olhar pra trás. Núbia sem graça, despediu-se do amigo, combinando para se encontrarem no dia seguinte. Pierre saiu do hotel, pensando no que não o agradara.

No quarto de hotel, Núbia enfrenta a indignação do pai:

- Você está louca?  – vociferou o Sr. Chinua

- Como assim Papai? Louca por que?

- Você me disse tudo... menos que ele era um branco! Qual é a sua pretensão?

- Mas pai....o que tem demais?

- O que tem demais? – rosnou Sr. Chinua – esses brancos miseráveis, em épocas remotas de nosso passado glorioso, invadiram nossas terras, destruíram nossas famílias, quase acabaram com nossa cultura e você ainda me pergunta o que tem demais?

- Mas papai, agora é outra situação. As pessoas neste país são livres. Não ligam de enriquecer sua cultura, misturando-a com outra... além do mais...  

- Não tem papai, nem mais papai – falou entre os dentes Sr. Chinua – Se soubesse que era pra isso que queria vir, a teria deixado em casa com sua mãe e seus irmãos. Enquanto mantiver esse jovem apenas como seu “amiguinho”, não intervirei, mas se disso resultar coisas que podem mudar meu planejamento de futuro pra você, então terei que tomar outras precauções.

- Mas, pai... você sempre me falou de respeitar as outras raças. De tentar conviver com todos.... de não dar importância a questões de cor ... de...

- Não tem mais nem menos. Eu não quero saber disso aqui.  Trate de deixar esse moço, bem no lugar dele. O de filho de povos colonizadores que,  quase arrasaram com nosso povo.

 Assim, o passeio que Pierre e Núbia haviam planejado tantos meses atrás, que deveria ser uma coisa boa na vida de ambos, começou aos poucos se tornar um pesadelo. Jamais Núbia pensou que seu pai era tão preconceituoso. Era lindo ele ser defensor ferrenho da cultura africana, mas estavam no século XXI.  Não havia comentado sobre a etnia de Pierre, porque não achou que isso seria relevante. Afinal de contas, o mundo estava globalizado, todos (ao menos pensava ela), tentavam manter relações amistosas de trabalho e de pesquisas. Foi surpreendente descobrir que, nem sempre o que os pais dizem era realmente o que aplicam em suas vidas cotidianas. Decididamente não iria estragar sua estada  pensando nisso. Ligou para Pierre e marcou o passeio do dia.

Pierre tentou ser delicado, não tentando entrar no mérito da questão. Procurou deixar o passeio o mais agradável possível, fazendo com que Núbia esquecesse por algumas horas, a decepção que seu pai havia proporcionado. Mas a hora de conversar sobre isso chegaria a qualquer momento, e os dois não poderiam mais fugir disso. Sentados vendo o pôr-do-sol e tomando um “sunday” de morango, os dois na lanchonete começaram a expor seus pensamentos sobre isso:

- Núbia, não quis entrar em detalhes para não ser inconveniente – começou Pierre – mas seu pai não se agradou de mim.

- Olha, Pierre isso não estava nos meus planos, de fato saiu fora deles totalmente.

- Percebi no olhar de seu pai e não entendi muito bem. O que não o agradou? – insistiu Pierre.

- Bem Pierre , acho que esta foi a amizade mais curta que já tive até hoje. Não é você que não o agrada, mas o que você representa, entende? – respondeu Núbia – os meus avós vieram para cá como escravos e antes deles os pais deles. Meu pai odeia gente branca. Diz que são homens “sem pele”, que destroem todos e tudo de onde estão. Apesar de sermos cultos e aprendermos tudo o que há de mais moderno, meu pai ainda acha que não devemos nos misturar com o mundo branco.

- Mas seus avós não se misturaram? Todos são africanos na sua casa?

- Os que puderam voltaram para a África, e por isso meu pai nasceu africano. Mas ele odeia tocar neste assunto. Apesar de sermos colonizados por portugueses e não falarmos quase nada do nosso idioma materno, meu pai insiste nesta baboseira de raízes.

- E você? O que acha? –perguntou Pierre.

- Já disse a você, não fico pensando nisso, porque até a nossa língua materna, já não é mais a mesma. O que temos conservado é apenas a cor da pele. Mas ele vai lutar até o final. Não desiste. Acha que a raça negra é superior e não se dá por vencido. Nem que tenha que armar a terceira guerra mundial, mas não admite que um branco lhe diga qualquer coisa!

- E quanto a nós? – Pierre pergunta apreensivo

- Como assim Pierre. Continuaremos amigos pra sempre! – Respondeu Núbia sorridente.

- Não quero só ser só seu amigo Núbia. Aliás, desde a primeira vez que conversamos no chat, pressenti que seu cérebro é valiosíssimo pra eu deixar escapar – respondeu Pierre, segurando a mão de Núbia.

- Então Pierre – sorriu novamente Núbia – prepare-se para a terceira guerra mundial.

 III

 O Sr. Chinua estava esbravejando ao telefone com o funcionário da Alfândega que  dizia faltar papéis de seus fornecedores “Idiotas, imbecis tão cheios de burocracia? Por que não conseguiram liberar a documentação em uma semana? Precisavam de quanto? A vida inteira?”.  Fora os que estavam aguardando para falar com ele na sala de convenções do hotel. Os negócios iam de vento em polpa, mas com todas as mudanças governamentais que os paises estavam implementando nas questões de exportação, estavam deixando o estrangeiro exasperado. Ainda bem que sua empresa era bem administrada por africanos apenas. “Se aqui as empresas fossem administradas por africanos” pensava ele “jamais estaria esta desorganização instalada”.  Na África ele estava cercado dos melhores colaboradores que podia pagar. Mesmo assim, decidiu trazer Núbia junto com ele, porque quase não tinha tempo de ficar com sua única filha, entre cinco filhos. “Falar nisso, onde se meteu essa menina?” – Sr. Chinua falou alto no meio de toda aquela agitação. Desceu até a recepção do hotel, onde foi informado de um telefone que estava a sua disposição, deixado por sua filha.  Ela havia acabado de sair para almoçar com Pierre.

            O clima para passear a tarde, estava ótimo. Núbia e Pierre foram depois do almoço, passear na praia e conversar. O mar estava calmo e o céu totalmente sem nuvem. Não fosse pelo mau humor do Sr. Chinua, tudo estava muito bem. O medo começou a se instalar em ambos, na hipótese de acontecer o mesmo que aconteceu com o Sr.Chinua, na recepção  com os pais de Pierre. O jantar na casa de Pierre já estava confirmado as oito e meia da noite. Como reagiriam? Núbia começou a sentir um certo desconforto. Porém, mais cedo ou mais tarde teria de enfrentar essa situação, afinal de contas estava mais do que certo que, os dois haviam nascido um para o outro. Eram oito horas da noite em ponto, quando Pierre estacionou seu carro na frente ao hotel. Núbia já estava quase pronta, quando foi interpelada por seu pai:

- Onde pensa que vai, mocinha?

- Apenas indo jantar com Pierre, papai.

- Quer dizer que nossos antepassados foram estraçalhados, humilhados e martirizados para que a minha filha, que tem o mesmo sangue deles, se junte anos depois com esses branquelos para me afrontar? – praguejou Sr. Chinua.

- Não se trata disso, papai é que....

- Você está proibida de sair deste quarto. Está ouvindo? Proibida.

 Núbia ficou triste, mas não a ponto de desistir. Telefonou para Pierre e explicou o que estava acontecendo. Pierre queria falar com o pai de Núbia, mas ela decidiu não contrariá-lo e pediu para visitar a família de Pierre no outro dia. No dia seguinte, Sr. Chinua estava atarefado demais para montar guarda no quarto da filha. Núbia se apressou depois do café da manhã para encontrar Pierre.

- Como estão as coisas? – Perguntou Pierre.

- Do mesmo jeito. Tive que sair as escondidas do meu pai. Ele está ficando realmente bravo. Disse que assim que resolver os problemas com os fornecedores, voltaremos não mais com um dos navios de cruzeiro como havíamos planejado. Voltaremos de avião imediatamente para a África. Quanto antes – frisou o pai.

 Passaram o resto do dia passeando pelas praias. Pensando em como poderiam contornar esta situação, sem causar aborrecimentos tanto para uma família, quanto pra outra. Não iam abrir mão de estarem juntos. Ainda tinham uns dias pela frente para poder pensar no que fazer. Ao voltar para casa, Pierre conversou com seu pai a respeito de seu namoro com Núbia. A recepção de sua madrasta não o constrangeu nem um pouco. A mãe de Pierre havia falecido, quando ele era ainda pequeno. A madrasta o havia criado desde a idade de três anos, portanto para Pierre a sua mãe era Dona Isabel. Mas o Sr. Jean, não se mostrou muito interessado neste assunto. Diferentemente do pai de Núbia, o Sr. Jean, não era de se incomodar com os problemas do filho, assim tão profundamente. Mas quando Pierre disse a ele, que se tratava daquela moça africana com quem ele conversava na rede, que era negra, e de como foi recepcionado pelo Sr. Chinua, o pai de Pierre não procurou disfarçar o mau humor

- Com tanta mulher afro-descendente aqui no Brasil, você tem que se engraçar logo com uma lá da África? – Disse o pai.

- Pai, aconteceu. Como é que vou mandar em meus sentimentos? Aqui na Rússia, na África... não tenho como controlar.

- Não o estou condenando por gostar desta moça, meu filho. Apesar de  termos tradição militar, seu bisavô foi Capitão, seu avô Coronel e eu Tenente-coronel, não vou te prender por isso – continuou sorridente o Sr. Jean -  mas , lembre-se, já abri mão de você não gostar da carreira militar e ficar enfiado na frente do computador, criando programas e outras coisas. Mas daí, você não ser aceito pelas pessoas que possam vir a fazer parte da nossa família? Isso eu não gostei nem um pouco. Gente preconceituosa.

- Pai, eu queria apenas um pouco de lucidez de sua parte – disse Pierre – custa receber a Núbia apenas pra me agradar?

- Melhor não trazê-la aqui meu filho, ao menos por enquanto. Evitará inúmeros aborrecimentos aos seus pais.

 Mas, Sr. Jean não gostou nada intimamente dessa atitude do Sr. Chinua, ficou pensando na possibilidade de ajudar seu filho contra o preconceito do pai de Núbia. Os meios de comunicação faziam a todo o momento campanhas contra racismo, preconceito e tantas coisas mais. Decididamente ele teria que tomar providências em relação a isso. Viviam num país livre, onde todos eram iguais perante a lei. Será que a vida do Sr. Chinua tinha sido sempre impecável, sem nenhuma nódoa que manchasse sua atitude ilibada e altiva? O Sr. Jean começou a analisar quais os contatos que poderia lançar mão na África, pois era um militar influente e nunca usava isso para conseguir benefícios, mas seu filho não seria atingido dessa forma por uma pessoa preconceituosa como Sr. Chinua. Sempre se orgulharam de ser uma família tradicional militar. Condecorados por várias honrarias. Não ia admitir que seu filho fosse ultrajado dessa forma.

- Interurbano do Brasil...posso completar a ligação – falou a telefonista em um português arrastado

- Pode -  respondeu uma voz rouca do outro lado da linha

- Alô , aqui quem fala é Jean Michel, seu amigo de tantos anos.

- Que maravilha escutar sua voz amigo – novamente a voz rouca – quanto tempo que não nos falamos.

- Preciso de um favor seu, meu companheiro. Vou te passar o nome de uma pessoa que está no ramo do comércio exterior, aí na África e que tenho certeza, não será problema para você investigá-lo. Por favor, faça um levantamento completo da vida dessa pessoa e me envie com a máxima urgência.

- Mas é claro Jean. Sabe que pode contar comigo sempre que necessitar.

 Pierre e Núbia estavam parecendo um casal de adolescentes, encontrando-se  escondidos do Sr. Chinua, para que ele não os fizesse passar por mais inconvenientes. Assim mesmo, quanto mais os problemas apareciam, mais o desejo de ambos de ficar juntos crescia. Igualmente a atração entre ambos ia aumentando. Se o Sr. Chinua não concordasse em deixá-los ter um relacionamento normal, eles estavam determinados a dar um jeito por si mesmos. Já era tarde da noite quando retornaram ao hotel. Pierre foi até a recepção do hotel para deixar Núbia, devido ao avanço da hora. O Sr. Chinua a estava esperando, de braços cruzados, numa atitude de aparente contrariedade e falou ríspido para Pierre:

- Que raios de cretino és tu? – trovejou furioso

- Sr. Chinua, eu amo a sua filha... minhas intenções são...

- Amo a sua filha... amo a sua filha. Que mais podia me acontecer nesta terra miserável? Um boçal sorrateiramente entra nos meios eletrônicos do outro lado do mundo e fica a sondar por uma brecha que dê para ele se infiltrar como um rato sorrateiro que és. Fique o senhor sabendo que minha filha não deve se misturar a uma raça infame como a sua. Seu branquelo nojento e atrevido. Não deixarei minha filha desonrar a raça negra a qual pertencemos e lutamos tanto para conservá-la pura e longe dessa farsa toda que vocês brancos querem nos fazer acreditar. Reles. Repugnantes que mancham nossa cultura e nosso passado.

- Mas Sr. Chinua... o senhor está usando a língua de um branco para falar comigo! – respondeu Pierre.

- E com ela eu te amaldiçôo e te coloco no teu lugar. Que a peste vermelha te domine para sempre[2]. Mas minha filha tu não terás. Não deixarei que joguem o nome honrado de nossa família na lama, fazendo-nos parecer inferiores e desalmados. A muito que acompanho os afro-descendentes nesta terra, e sei que sofrem demais e ficam a baixar a cabeça para os euro-descendentes. Aproveite a olhar bem o rosto de minha filha agora, porque a partir de amanhã, ela estará sob guarda de uma pessoa que contratei exclusivamente para isso.

- Mas papai...  – interrompeu Núbia

- Não comece chorar, até a data em que iremos embora, a senhorita está proibida de sair do hotel sozinha. E o senhor, Sr. Pierre, não se atreva a chegar perto de minha filha, senão trará grandes conseqüências desfavoráveis para o senhor.

- Isso é uma ameaça – falou Pierre.

- Não ... isso é um conselho – respondeu Sr. Chinua, levando Núbia pelo braço – não me apareça mais aqui Sr. Pierre, ou serei obrigado a tomar outras providências mais severas.

Os dias estavam longos para Pierre. Sua alegria havia sido arrancada. Não se sentia assim tão triste fazia tempo. Conseguiu conversar com Núbia algumas vezes por telefone, e o tempo estava passando. Pierre já estava com sentimentos de perda. Não poderia enfrentar o pai de Núbia e não podia impedi-lo de levá-la. Se fosse sua mulher, poderia guerrear, mas nem mesmo para casar rapidamente havia tempo hábil. E mesmo que tivesse, ela era estrangeira. Havia uma série de trâmites legais que eles teriam que passar, para finalmente conseguirem ficar juntos.  Pierre achava sempre algumas palavras de ânimo vindas de seu pai. Isso lhe dava forças para persistir e não desistir.  Essa aflição já durava sete dias. Via Núbia de longe, andando sempre solitária, com aqueles idiotas sempre por perto. O que mais irritava Pierre era ser tratado como marginal. Não precisava de tanta gente tomando conta de Núbia desse jeito. Ele não iria fazer nada que prejudicasse a mulher que amava. No entanto, não podia fazer nada. O que lhe dava forças era lembrar quantas vezes a teve em seus braços e trocaram carícias de amor. Este pensamento lhe renovava as forças.

Núbia se sentia fraca de uns dias pra cá. Sentia náuseas e meio tonta. Acho que eram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, que seu corpo estava se ressentindo. Sentia-se triste sem Pierre. Jamais na vida pensou que iria passar por uma provação dessas. Prometeu para si mesma que nunca mais entraria em salas de bate-papo. Seu pai adentrou quarto adentro, interrompendo seu pensamento

- Arrume suas coisas!

- Como assim papai?

- Arrume suas coisas que vamos embora agora mesmo desse país imundo. Estou farto de tanta burocracia e complicação. Vou arranjar um representante legal e não vou mais tratar disso pessoalmente – retrucou Sr. Chinua – o avião sai daqui a três horas. Apronte suas coisas.

 Nem bem seu pai saiu de seu quarto, Núbia ligou para Pierre, falando que estavam de retorno a África. Pierre ficou apreensivo sem saber o que fazer. Perguntou a horas que seria o vôo e qual era o portão de embarque. Precisava tomar alguma providência, mas qual? Ligou imediatamente para o Sr. Jean, que se mostrou estranhamente calmo. Parecia que até seu pai não estava mais se importando com o que estava ocorrendo

- Não se aflija filho. Iremos todos nos despedir do Sr. Chinua e de Núbia no aeroporto – disse Sr. Jean, desligando o telefone.

 “Iremos todos?” – pensou Pierre consigo mesmo. “O que será que papai está tramando?” Os visitantes ficaram mais de um mês  no Brasil e o Sr. Jean não fez questão de conhecer Núbia, agora que estavam indo embora, resolve conhecê-los.

- Ultima chamada para os passageiros do vôo 765 para África, atenção senhores passageiros se dirijam para o portão de embarque X.

Sr. Chinua já estava pronto para se dirigir ao portão de embarque, quando foi forçado a parar abruptamente. Pierre se colocou entre ele e Núbia e imediatamente após ele, o Sr. Jean , Dona Isabel e mais um irmão

- O que é isso? – esbravejou Sr. Chinua – complô internacional?

- Sr. Chinua, por gentileza queira se dirigir a sala vip “Diamond” deste aeroporto para podermos conversar. Caso o senhor se recuse, serei forçado a revelar o conteúdo deste dossiê na frente de todas as pessoas que aqui estão. Inclusive para sua filha – disse Sr. Jean em companhia de mais três militares – não vai querer causar mais transtorno a ela, do que já tem causado não é Sr. Chinua?

Núbia olhou para a madrasta de Pierre. “Que mulata mais linda”, pensou. “Nunca Pierre havia me contado que a madrasta era afro-descendente”

- E meu vôo? Não vou perder meu horário assim... – ainda tentou dissimular o Sr. Chinua

- O senhor acha que estou blefando? – Disse Sr. Jean.

Sr. Chinua os seguiu contrariado. “O que poderia ele ter feito de tão grave?”. Se sentiu arrependido de ter colocado pessoas para cuidar de Núbia. Agora, sendo detido por três militares, se sentiu um pouco negligente com sua filha. Olhou para ela com pesar. Quando chegaram a sala vip, Sr. Jean dispensou os três soldados. Pegou o dossiê e o folheando calmamente,  falou para Núbia

- Minha filha, é completamente compreensível o porquê da amargura de seu pai  contra os brancos, uma vez que já foi traído por uma delas.

Sr. Chinua sentiu o chão fugir de seus pés.

- Sabia que você tem dois irmãos euro-descendentes,  filhos de seu pai com uma européia? E que sua mãe jamais ficou sabendo desta outra mulher que seu pai manteve até ela o deixar para ir morar em Paris, com um branco?

- Não pode provar isso, eu não admito... – interrompeu Sr. Chinua.

- Tem certeza? – Disse Sr. Jean divertido – estou com as certidões de nascimento, fotos e tudo mais que preciso bem aqui, neste dossiê.

Sr. Chinua tentou pegar Núbia pelo braço e fazê-la sair da sala. Não conseguiu. Ela amava o pai, mas infelizmente hoje ele teria que ser forte, muito mais forte do que esperava

- Papai também tenho algo a lhe dizer – falou calmamente Núbia – o senhor vai ser avô de um euro-descendente. Hoje cedo fiz o teste de gravidez e deu positivo. Estou grávida de duas semanas.

Pierre se desmanchou em sorrisos. Sr. Chinua desabou a chorar,  dizendo

- Tanto que cuidei de minha filha, para não ter a mesma infelicidade que tive ao me envolver com uma branca. Agora as duras penas, terei que aceitar todo esse perjúrio contra mim. Passei anos a fio tentando mostrar que gente branca é traidora , que nos deixam na primeira oportunidade que tiverem.  E agora? Três vezes amaldiçoado fui. Três brancos entraram na minha vida sem que eu os possa tirar.

- Sr. Chinua , três brancos não.  Além da sua mulher e filhos,  do seu futuro genro e do seu neto que está para nascer, não está esquecendo de ninguém?  Do sogro, da sogra afro-descendente e do irmão de Pierre, é claro? – completou Sr. Jean às gargalhadas.

 Capítulo final  - IV

 Parabéns pra você...

Nesta data querida....

 A festa estava ótima,  vieram todas as crianças do bairro para o aniversário da filha de Pierre e de Núbia. O avô veio especialmente da África, para participar da festa da neta. Esta neta era o xodó do vovô. Sr. Chinua recordou como três anos atrás a noticia do nascimento da menina, o havia deixado frustrado e magoado. Agora, com os avanços do mercado de exportação sob a direção do seu genro Pierre, as coisas ficariam melhores ainda. Conseguira convencer Pierre a assumir a administração dos negócios de família e ir morar na Argélia com os irmãos de Núbia , enquanto o Sr. Jean ficaria responsável pelos negócios no Brasil.

-                           Vovô, vovô – Emanuelle interrompe o pensamento do avô, sentando-se apressada em seu colo – conta uma história!

-                           Conta ! Conta – gritaram todas as crianças em coro.

-                           Ta bem o vovô conta, mas uma história só viu?

-                           Oba! – todos gritaram.

-                           Sentem-se todos em circulo em volta do vovô que tem sotaque diferente – mandou Sr. Chinua – era uma vez uma ilha, num lugar bem longe.

-                           Oba! História de pirata – gritou um menino.

-                           Não criança! – disse Sr. Chinua

 Era uma vez uma ilha, onde morava um espírito muito lindo chamado Ariel e um monstro terrível chamado Calibã...

  E todos cresciam com a sabedoria de respeitar todas as raças, religiões, direcionamento sexual e classes sociais, graças ao vovô Chinua.

 http://nomesafricanos.ubbihp.com.br/



[1] Chat = bate-papo

[2] Comentário de Calibã, personagem de Shakespeare em “A Tempestade”