A técnica da lei “ainda constitucional” à luz jurisprudencial do STF

"Ce qui se conçoit bien s'énonce clairement, et les mots pour le dire arrivent aisément. "

Nicolas Boileau

 

Fabiana Augusta de Araújo Pereira. Advogada, pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET; pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Bacharela em Administração, pela Universidade de Pernambuco.

 

Introdução

Há muito, no controle de constitucionalidade, a simples declaração de inconstitucionalidade de lei não se mostra hígida à validade do sistema normativo. É preciso ir além e, sobretudo, analisar os efeitos extrajurídicos da decisão.

Em épico julgamento oportunizado pela ADI 3022 em 2004, o Supremo Tribunal Federal obtemperou a necessidade de modulação dos efeitos pro futuro da decisão de declaração de inconstitucionalidade de lei em virtude do princípio da proporcionalidade. O julgamento desta ADI tornou-se um marco divisor, alargando a compreensão jurisprudencial acerca do controle de constitucionalidade. A partir de então, cada vez mais decisões vêm sendo proferidas tendo em vista a eficácia retrospectiva da declaração de inconstitucionalidade no plano social, político e econômico.

O objeto da referida ADI recaiu sobre a alínea a do Anexo II da Lei Complementar do Estado do Rio Grande do Sul nº 10.194, de 30 de maio de 1994. O dispositivo conferia aos defensores públicos estaduais o dever de patrocínio dos servidores públicos que fossem processados civil ou penalmente em razão de ato praticado no exercício regular das suas funções, atribuição tal que excederia os limites da função do defensor público, insculpidos no art. 134 da Constituição Federal. Por tal razão, em votação majoritária, a Corte Suprema decretou inconstitucional a alínea a do Anexo II da LC-RS 10.194/94, restringindo os efeitos da decisão para depois de 31 de dezembro de 2004.

A inovação da Corte Suprema, ao decretar a lei inconstitucional, mas ainda constitucional até 31 de dezembro de 2004, surpreendeu: não se tratava de situação em que estivesse em jogo a segurança jurídica ou excepcionalidade, mas prejuízos extranormativos injustificados e desproporcionais causados aos servidores em decorrência de declaração de inconstitucionalidade com efeitos “ex tunc”.

Tendo em vista a relevância do tema consubstanciado no âmago da do controle de constitucionalidade, o presente estudo visa a apresentar em breves pinceladas as inovações intelectivas acerca da declaração de inconstitucionalidade à luz do crescente ativismo judicial.

 

A técnica da lei “ainda constitucional” à luz jurisprudencial do STF

 

A declaração de inconstitucionalidade da lei gera um problema essencial de dificílima solução: se é inconstitucional, a lei é nula; se é nula, é inexistente; como ser lei?

A dúvida, inobstante sua aparente incipiência, consubstancia a contradição do sistema normativo contemporâneo em si mesmo e impõe ao operador do direito o dever de reflexão acerca dos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade da lei.

O direito comparado propõe respostas diversas: enquanto no direito norte-americano a lei declarada inconstitucional é nula e incapaz de produzir qualquer efeito, no direito Austríaco a declaração de inconstitucionalidade tem, necessariamente, efeitos para o futuro. Já o modelo alemão propõe solução um tanto mais sofisticada: a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Bundesverfassungsgericht é acompanhada de uma decisão de apelo, conferindo àquela corte o poder de demandar do Legislativo providências para integração da situação legislada pela lei em processo de inconstitucionalização. É dizer: a lei é ainda constitucional (es ist noch verfassungsgemäss), devendo o legislador exercer sua função no sentido de impedir os efeitos da lei em estado de inconstitucionalização.

No direito pátrio, a Lei 9.869/99 foi confeccionada à luz do direito alemão[1] e austríaco, tendo em seu corpo relevante instrumento de modulação dos efeitos da decisão de declaração de inconstitucionalidade:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

 

É de notável percepção, portanto, a possibilidade (quando dois terços dos ministros votarem nesse sentido) de declaração de inconstitucionalidade da lei, mesmo que esta continue ainda constitucional por tempo a ser definido pela Suprema Corte – ou a declaração de inconstitucionalidade operará efeitos após o trânsito em julgado ou em outro momento que venha a ser fixado.

Impende por oportuno trazer salientar que a crescente aplicação pelo STF da teoria da inconstitucionalidade progressiva, como pode ser trazido à baila o RE 341.717:

 

E M E N T A: MINISTÉRIO PÚBLICO - AÇÃO CIVIL EX DELICTO - CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ART. 68 - NORMA AINDA CONSTITUCIONAL - ESTÁGIO INTERMEDIÁRIO, DE CARÁTER TRANSITÓRIO, ENTRE A SITUAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE E O ESTADO DE INCONSTITUCIONALIDADE - A QUESTÃO DAS SITUAÇÕES CONSTITUCIONAIS IMPERFEITAS - SUBSISTÊNCIA, NO ESTADO DE SÃO PAULO, DO ART. 68 DO CPP, ATÉ QUE SEJA INSTITUÍDA E REGULARMENTE ORGANIZADA A DEFENSORIA PÚBLICA LOCAL - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (grifo nosso)
(RE 341717 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 05/08/2003, DJe-040 DIVULG 04-03-2010 PUBLIC 05-03-2010 EMENT VOL-02392-03 PP-00653 RSJADV mar., 2010, p. 40-41)

 

No caso em tela, a Corte Suprema entendeu que enquanto o estado de São Paulo não organizasse a Defensoria Pública local em conformidade ao disposto no art. 134, CR/88, o art. 68 subsistiria integralmente como norma ainda constitucional, consubstanciando verdadeiro estágio intermediário entre estado de plena constitucionalidade e absoluta inconstitucionalidade. A referida norma estaria em verdadeiro processo de progressiva inconstitucionalização[2]. Em outras palavras, ficaria ao cargo do Ministério Público a defesa dos hipossuficientes enquanto o estado de São Paulo não institua órgão próprio para o desempenho de tal função.

O entendimento esposado é que, inobstante a inconstitucionalidade, a norma ainda será constitucional até que sobrevenha a circunstância que a torne inconstitucional.

Em outros casos de aplicação da inconstitucionalidade imperfeita podem ser trazidos à guisa de exemplificação, como o RE-AgR 228339, RE 147776, HC 70514, MI 58.

Além de evidenciar a sofisticação das técnicas de controle constitucional, a crescente aplicação da teoria da progressão do processo de inconstitucionalização torna insofismável a ascendência do ativismo judicial[3].

Com efeito, é notório o condão do controle de constitucionalidade de inserir a magistratura no processo de decisões políticas do Estado, através da participação do judiciário no processo de modernização do Estado e supressão das lacunas legislativas à luz da CF.

 

Conclusão

 

O controle de constitucionalidade é instrumento que visa a adequar integralmente o ordenamento infraconstitucional à Carta Magna, expurgando, através da declaração de inconstitucionalidade, as leis inconstitucionais.

Nesse mister, é indispensável que na oportunidade da declaração de inconstitucionalidade seja ponderada a eficácia retroativa da decisão que retira a lei do ordenamento. Exatamente nessa senda, a modelação dos efeitos da decisão se torna instrumento de alto valor, pois permite ao STF a ponderação das repercussões extranormativas acarretadas pela declaração de inconstitucionalidade, possibilitando a conjugação perfeita entre a teoria da progressão da inconstitucionalidade e o ativismo jurídico.

Bibliografia

 

BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994.

 

BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Sistema Brasileiro de Controle de Constitucionalidade. 4ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009 .

 

MARTINS, Ives Gandra da Silva & MENDES, Gilmar Ferreira (coordenadores). Ação Declaratória de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1.994.

 

NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva.

 

POLETTI, Ronaldo. Controle de Constitucionalidade das Leis. Os Casos Americanos e a História da Suprema Corte. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.



[1] O Min. Gilmar Ferreira Mendes, de notória influência alemã – haja vista o doutorado realizado em Münster – participou ativamente da elaboração do anteprojeto da Lei 9.868/99.

[2] FELIPETO, Rogério. Reparação do Dano Causado por Crime. São Paulo: Editora Del Rey, p. 58, 2001.

[3] Fala-se, inclusive que o Poder Judiciário desempenha verdadeiro poder moderador, visando a equilibrar a tripartição dos três poderes. Carlos Brasil. Disponível em: <http://www.carlosbrasil.com.br/?q=node/148>. Acesso em 28/11/2011.