A SUSPENSÃO E A REVOGAÇÃO DO LIVRAMENTO CONDICIONAL: A APARENTE ANTINOMIA ENTRE AS NORMAS DOS ARTIGOS 89 E 90 DO CÓDIGO PENAL

1. INTRODUÇÃO

Embora a Lei de Execução Penal (LEP) - Lei 7210 de 1984 - seja contemporânea à reforma realizada no Código Penal (CP), ambas em 1984, as disciplinas correlatas aos respectivos diplomas legislativos tiveram sorte diversa no campo da produção científica.
Enquanto no Direito Penal se abriram terrenos para fecundas e profícuas construções teóricas e científicas, capitaneadas por renomados juristas, a Execução Penal restou adstrita a uma tímida e pequena fatia da literatura jurídica nacional, o que, aliado a questões políticas e culturais, decerto contribuiu para a crise que assola a execução da pena, exteriorizada por soluções jurídicas imperfeitas e inacabadas, adotadas pelos juízes e tribunais locais e superiores.
O instituto do livramento condicional não restou imune a essas consequências, inserindo-se nessas lacunas, a toda evidência, de modo constrangedor e tormentoso, o que pode ser verificado pela simples leitura da legislação, que enseja interpretações conflitantes sobre o mesmo direito.
Será objeto deste estudo a análise da disciplina normativa relativa à execução da pena cumprida sob forma de livramento condicional, em particular sua suspensão, revogação e extinção, consubstanciada nas normas previstas nos arts. 86, inciso I, 89 e 90 do CP conjugados com os arts. 145 e 146 da LEP, de modo a se identificar as falhas do equipamento legislativo correlato ao instituto.
O estudo se justifica pela carência de literatura específica sobre a matéria, tratada pela doutrina de modo superficial e insuficiente e pela jurisprudência de maneira casuística. Não obstante, um ponto é comum a essas abordagens: o anticientificismo dos seus enunciados.
Sobre isso serão tecidas algumas observações.
Pretende-se ao final, sem ignorar as questões infensas a tal posicionamento, demonstrar que a antinomia entre as normas dos arts. 89 e 90 do CP é aparente, tal como anunciada no título deste artigo, sendo este o seu principal objetivo. A afirmação da tese tem por finalidade: i) comprovar que a jurisprudência majoritária se firmou sob fundamentos equivocados; ii) relegitimar a interpretação jurídica que entende ser lícita a suspensão e a revogação do livramento condicional por crime praticado na vigência do período de prova, ainda que a decisão revocatória venha a ser prolatada após o seu vencimento; e iii) afirmar a possibilidade e necessidade de mudança na jurisprudência.
Para tanto, são analisadas separadamente as questões afetas à problemática sob os aspectos legislativo, doutrinário, jurisprudencial e do Direito Comparado, sugerindo-se ainda uma releitura do leading case paradigma da controvérsia.
A revogação, suspensão e extinção do livramento condicional são tratadas conjuntamente, haja vista que seu estudo em separado encontra barreiras de ordem sistemática e metodológica, ao menos sob os limites fixados para este trabalho.

2. LIVRAMENTO CONDICIONAL: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E PREVISÃO NORMATIVA

O objetivo deste artigo é circunscrito ao exame, em particular, das disposições normativas que cuidam da suspensão e revogação do livramento condicional, assim como sua extinção. Isso impede, por consequência, abordagens de maior amplitude, como por exemplo, as relativas à evolução histórica e legislativa do instituto. Confiamos tal tarefa aos manuais.
Para a compreensão do tema parece-nos recomendável sejam definidos o conceito e a natureza jurídica do livramento condicional, bem como seja informada sua base normativa, o que será feito sem maiores delongas pelas razões já assentadas.
Elegemos algumas definições na melhor doutrina, como na de Álvaro Mayrink, segundo à qual o livramento condicional, "Modernamente, é a antecipação limitada da liberdade do resto da pena a ser cumprida, em caráter provisório e sob certas condições judiciais, submetida à prova." 2 Para José Frederico Marques o livramento condicional "é a liberdade provisória concedida, sob certas condições, ao condenado que não revele periculosidade, depois de cumprida uma parte da pena que lhe foi imposta."3 No que diz respeito à natureza jurídica do livramento condicional, Há quem advogue, em contraposição aos que o consideram um benefício, tratar-se de um direito público subjetivo do apenado, pois, atendidos os requisitos para a concessão, o Estado torna-se devedor da prestação jurisdicional de liberdade, não consistindo, portanto, em qualquer dádiva estatal4
.
Sua previsão legal e disciplina se encontram nos arts. 83 a 90 do CP, sendo oportuna a transcrição das hipóteses de cabimento ou requisitos, contidas no art. 83 e incisos do CP, in verbis:
Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que:
I - cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes;
II - cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso;
III - comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto;
IV - tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração;
V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.
2
 Álvaro Mayrink da Costa, Direito Penal, 7ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2007, v. 3, p. 536.
3 José Frederico Marques, Tratado de direito penal, 2ª Ed., São Paulo, Saraiva, 1966, v. 3, p. 274, apud Renato Marcão, Lei de Execução Penal Anotada e Interpretada, 2ª ed., Rio de Janeiro, 2006, p. 366.
4 Leonardo Silva Pinto, Livramento Condicional: questões controvertidas na execução da pena, Rio de Janeiro, 2011, p. 15. Monografia (Graduação em Direito). Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro. Neste sentido, Celso Delmanto, Roberto Delmanto e Roberto Delmanto Junior, Código Penal comentado, 4ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 143, apud Renato Marcão, opus cit., p. 366.
Parágrafo único. Para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir.
Estabelecidas essas orientações liminares, passa-se à análise mesma do objeto deste estudo.

3. DA LEGISLAÇÃO

Os dispositivos legais que serão adiante estudados cuidam de duas figuras jurídicas distintas, quais sejam, a suspensão e a revogação do livramento condicional, bem como sua extinção.
A legislação correlata nos permite afirmar que a suspensão do livramento condicional é uma tutela penal de urgência, uma medida de natureza cautelar cujo objetivo é impedir que corra sem óbice o prazo do período de prova do livramento condicional, prevista no art. 89 do Código Penal c/c o art. 145 da Lei 7210/84 - LEP, cuja redação traz as seguintes letras, verbis:
Art. 89 do CP. O juiz não poderá declarar extinta a pena, enquanto não passar em julgado a sentença em processo a que responde o liberado, por crime cometido na vigência do livramento.
Art. 145 da LEP. Praticada pelo liberado outra infração penal, o juiz poderá ordenar a sua prisão, ouvidos o Conselho Penitenciário e o Ministério Público, suspendendo o curso do livramento condicional, cuja revogação, entretanto, ficará dependendo da decisão final.
A revogação do livramento condicional, a seu turno, é consequência, ex vi legis, das hipóteses previstas nos arts. 86 e 87 do Código Penal, que tratam da revogação obrigatória e facultativa do benefício, referidas na LEP no seu art. 140.
Dessa forma preconiza o art. 86 do Código Penal, que trata da revogação obrigatória:
Art. 86. Revoga-se o livramento, se o liberado vem a ser condenado a pena privativa de liberdade, em sentença irrecorrível:
I - por crime cometido durante a vigência do benefício;
II - por crime anterior, observado o disposto no art. 84 deste Código.
A revogação facultativa é prevista no art. 87 do Código Penal, nos termos seguintes:
"Ar. 87. O juiz poderá, também, revogar o livramento, se o liberado deixar de cumprir qualquer das obrigações constantes da sentença, ou for irrecorrivelmente condenado, por crime ou contravenção, a pena que não seja privativa de liberdade." A dificuldade surge quando do cotejo dessas normas, em especial a do art. 89, com a do art. 90 do Código Penal, que lhes sucede e estabelece que:
"Art. 90. Se até o seu término o livramento não é revogado, considera-se extinta a pena privativa de liberdade." A legislação apresenta uma aparente antinomia entre as normas dos arts. 89 e 90 do Código Penal. Enquanto aquela impede o juiz de declarar extinta a pena enquanto não passar em julgado a sentença em processo a que responde o liberado por crime praticado na vigência do livramento, esta importa na extinção da pena se até o seu término o livramento não é revogado. A redação, assevera a doutrina, é um tanto quanto nebulosa.
Paradoxalmente, o legislador foi mais zeloso no trato da suspensão condicional da pena - sursis -, tendo fornecido ao intérprete, sob a rubrica prorrogação do período de prova, o mecanismo previsto no art. 81, §2º, do Código Penal, verbis: "Se o beneficiário está sendo processado por outro crime ou contravenção, considera-se prorrogado o prazo da suspensão até o julgamento definitivo." A doutrina, ainda que de modo reticente - consequência já avisada das limitações dos estudos científicos em matéria de execução penal - engendrou soluções um pouco mais coerentes, embora carentes de maior rigor teórico-científico, ao passo que a jurisprudência criou soluções libertárias, porém desprovidas de suporte científico mínimo, ao argumento - e aí reside a perigosa panacéia da jurisdição penal - da melhor interpretação ao apenado.
Tais e quais posições serão tratadas em campo próprio, mais adiante.

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