A SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA AOS USUÁRIOS INADIMPLENTES A LUZ DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL 

Nelson Fontinhas Nogueira da Cruz  [1]

Sumário: Introdução. – 1. O liberalismo econômico e as relações de consumo; 2. Serviços públicos essenciais e princípios constitucionais: 2.1 Serviços essenciais; 2.2. Princípios constitucionais;3. A Inconstitucionalidade da interrupção do fornecimento de energia elétrica. Conclusão.

RESUMO

De um modo geral, o presente trabalho pretende analisar a (im)possibilidade de as empresas-concessionárias de serviços públicos, mais especificamente energia elétrica, interromperem a prestação do referido serviço sob o fundamento  de que o usuário se tornou inadimplente, ou seja, de que ele não cumpriu a contraprestação. Intuímos colocar em xeque essa prática tão comum no nosso meio social, pondo esta, frente a nossa Carta Política de 1988.

PALAVRAS – CHAVE

Constituição Federal – Serviços Públicos Essenciais – Interrupção do Fornecimento de Energia Elétrica – Violação dos Princípios Constitucionais

INTRODUÇÃO

 No presente trabalho, nos propomos a analisar a constitucionalidade da interrupção das prestações dos serviços públicos essenciais, pondo em destaque o de energia elétrica, como forma de punição àquele usuário que não cumpriu a contraprestação, ou seja, não pagou a conta de energia elétrica. É de se ressaltar que temos de um lado a necessidade de contraprestação e do outro a essencialidade e continuidade do serviço. Não intuímos com este trabalho esgotar as discussões acerca desse tema, mas apenas tecer nossas considerações em torno de uma possível resposta, dentre as muitas possíveis.

1. O LIBERALISMO ECONÔMICO E AS RELAÇÕES DE CONSUMO

O Liberalismo Econômico lança suas bases no processo de auto-regulação do mercado, o que por se só já aponta para uma certa tendência ao distanciamento da normativa do sistema jurídico. O Capitalismo caracterizou-se, ao longo de sua história, por uma ordem auto-suficiente que rejeita os institutos normativos voltados aos freios às lógicas exploratórias deste modo de produção hegemônico no mundo.

O mercado passou a ser palco onde observa-se práticas monopolistas características do abuso do poder econômico, o que torna como necessidade premente uma ordem jurídica que contemple regras específicas das relações econômicas em um processo de “Constitucionalização da Economia”.

O liberalismo desmedido que experimentamos nas últimas décadas do século passado “embalado” pelo modelo do chamado Estado Mínimo deflagrou um intenso processo de privatizações das empresas-concessionárias dos serviços públicos essenciais, dentre outros, o de energia elétrica. A lógica liberal da busca inconseqüente pelo lucro passou a provocar imensas injustiças sociais com a violação de princípios constitucionais basilares do nosso ordenamento jurídico.

A Constituição Federal de 1988, respondendo aos anseios da sociedade brasileira, sufragou como pilares da ordem jurídica, os ideais de igualdade, de dignidade, de liberdade, de propriedade, de segurança e de justiça, na medida em que estabelece limites e proteções às relações de consumo freando o ímpeto do “Estado Liberal” em privilégio do “Estado Social”.

Obedecendo a essa lógica é que o Estado passa a intervir, cada vez mais nas relações entre consumidores e fornecedores, relativizando o paradigma da “autonomia da vontade” e estabelecendo que o instrumento dessa relação contratual de consumo tem como base o chamado “princípio da boa-fé”. Os negócios passam, então, a ser regulados e limitados pelo Direito sob a égide da sua função de promover o bem estar social do indivíduo enquanto cidadão.

O Direito, enquanto elemento coercitivo e pacificador dos conflitos sociais, tende a intervir nos embates provenientes das relações de consumo para impedir o uso de práticas abusivas que possam ferir os princípios constitucionais, lesando com isso, quase sempre o flanco econômica e socialmente vulnerável, e hipossuficiente representado pelo consumidor. Tal instrumento de justiça e inclusão social, cada vez mais permite a realização de novos direitos fundamentais.

2. SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

        2.1 SERVIÇOS ESSENCIAIS

Antes de mais nada, se mostra necessário que saibamos o venha a ser um serviço público. Hely Lopes Meirelles preleciona que serviço público é “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniência do Estado” (NAMBA apud Meirelles, 2000, p. 131). Sendo este classificado em uti universi ou geral e uti singuli ou individuais.

Os serviços uti universi ou gerais são aqueles prestados a coletividade como um todo, ou seja, não tem usuários determinados, como por exemplo, a iluminação pública. Estes são também considerados como indivisíveis, haja vista, a impossibilidade de mensuração individual de sua utilização, sendo mantidos por imposto. Já os serviços uti singuli ou individuais são aqueles prestados a usuários determinados, sendo possível a sua mensuração para cada indivíduo, como é o caso da energia elétrica. Estes ao contrário daqueles são remunerados por taxa ou tarifa, no qual são cobradas de maneira individual proporcional a utilização do serviço (LAZARI apud Meirelles, 2010, p. 246).

Assim sendo, no que concerne aos serviços públicos individuais, se mostra necessário que entendamos o que seja um serviço público essencial. Este está relacionado com aqueles serviços que a sociedade não pode abrir mão, mesmo que de forma parcial sem sofrer perda na sua qualidade de vida, ou seja, são aqueles de fundamental importância para sociedade, estando por vezes ligados à saúde, a liberdade, a vida da população (LAZARI, 2010, p.247-248).

A Constituição elenca expressamente alguns serviços como sendo de alçada do Poder Público Federal como é o caso do serviço postal e o Correio Aéreo Nacional (art. 21, X, CF); dos serviços de telecomunicações, de rádio difusão sonora e de sons e imagens, dos serviços e instalações de energia elétrica, de navegação aérea, aeroespacial, infraestrutura aeroportuária (art. 21, XII, CF) do serviço de seguridade social (art. 194, CF) e dos serviço de educação (art. 205 e 208, CF), dentre outros. Em face desses artigos, fica claro se tratar de serviços essenciais fornecidos para atender os interesses sociais públicos. Devendo o prestador do serviço público, ao contrário do prestador do serviço privado, desempenhar sua atividade dentro da disciplina trazida pelos princípios de direito público e somente podendo direcionar sua intenção na satisfação de seus interesses de lucro na medida que cumpra a satisfação do interesse público da sociedade.

Dito isto, se mostra oportuno que tomemos nota de alguns princípios aplicáveis aos serviços públicos.

2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

É de suma importância a observância dos princípios, pois são estes os encarregados de trazer uma maior coesão ao ordenamento jurídico, funcionando na maioria das vezes como vetor de interpretação das normas. Os princípios são a base do ordenamento jurídico, e por conseguinte, não é aceitável que uma norma legal disponha de maneira contrária ao mandado irradiado por um princípio. Sendo mais grave violar um princípio do que uma norma, pois quando violamos um princípio a ofensa não se restringe a apenas um mandamento específico, mas, ofende a todo sistema de comandos (SEGALLA apud Mello, 2001, 131-132).

A Constituição não explicitou textualmente os princípios que informam a prestação de serviços públicos, como é o caso do serviço fornecimento de energia elétrica, passemos então à extraí-los do texto constitucional. Dentre os princípios que compõe o quadro dos princípios relativos à prestação de serviços públicos estão o da: adequação, generalidade, segurança e continuidade.

Pelo princípio da adequação entende-se que não basta que o Poder Público ofereça e mantenha o serviço, mas este também deve ser adequado. Sendo assim, este deverá satisfazer tanto do ponto de vista técnico quanto, a necessidade que motivou a sua instituição (MARTINS apud Justen Filho, 2006, p. 1).

O princípio da generalidade diz respeito ao alcance da prestação, ou seja, que esta deve abranger o maior número de indivíduos possível. Devendo ser prestado sem qualquer forma de discriminação, o que nos remete ao princípio da isonomia, isto é, não deverá haver privilégios na escolha dos usuários que serão beneficiados (MARTINS apud Carvalho Filho, 2006, p. 1).

O princípio da segurança traz que a atividade deverá ser desenvolvida sem por em risco a integridade física e emocional de seus usuários, e mesmo aqueles não usuários. Outro fator que integra a segurança é a ideia de que os serviços públicos deverão ser remunerados. No entanto, devemos atentar para o princípio da dignidade humana, haja vista a dignidade de uma pessoa não ser mensurável economicamente (SEGALLA apud Justen Filho, 2001, p. 133).

O princípio da continuidade nos traz a ideia de que a prestação dos serviços públicos essenciais serão ininterruptas, ou seja, deverá esta ser continua, “ segundo a natureza da atividade e do interesse a ser atendido”(SEGALLA, 2001, 133). Este princípio desempenha um papel de fundamental importância para o sistema constitucional. Dando este sustentação aos princípios da indisponibilidade e da supremacia da ordem pública (MARTINS, 2006, p. 1).

Tácito defende que “do princípio da continuidade do serviço público impõe ao concessionário o dever de prosseguir na exploração mesmo se for ruinosa”. Incumbido a Administração partilhar das cargas extraordinárias, restaurando a economia abalada bem como a eficácia da execução do contrato (SEGALLA apud Tácito, 2001, p. 134). Deste modo, se faz válido ressaltar que é vedado a alegação de exceptio inadimpleti contractus, no âmbito de aplicação do princípio da continuidade dos serviços públicos. Restando assim demonstrada a importância desse princípio (SEGALLA, 2001, p. 134).

Assim sendo, estes são os princípios que norteiam a prestação dos serviços públicos, estando estes abarcados implicitamente pela nossa Constituição Federal de 1988. Dito isto, passaremos a análise da problemática que nos propomos a enfrentar, ou seja, se  é constitucional a suspensão do fornecimento de energia elétrica pela empresa-concessionária face ao inadimplemento do usuário.

3. A INCOSNTITUCIONALIDE DA INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA

Com o advento da Lei nº 8987/95, a despeito de discutir-se a constitucionalidade, veio a possibilidade da suspensão do fornecimento de energia quando o usuário não adimplir suas contas de consumo. O art. 6º, § 3º, II, desta lei dispõe que :

 “Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

(...)       

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

(...)    

    II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.”.

 

O dispositivo viola inúmeros outros dispositivos constitucionais e de forma grave o já citado, Princípio da Continuidade dos Serviços Públicos, além de ultrajar o chamado princípio da boa-fé objetiva que revela novos parâmetros, e que devem ser enquadrados no sistema jurídico e que sinalizam para o dever de observação dos interesses do outro através do imperativo ético de solidariedade contratual.

O Princípio da Boa-Fé objetiva declara que as partes na relação contratual devem pautar sua atuação em consonância com a lealdade e com a confiança recíprocas, respeitando a posição do outro, e operar com fidelidade e probidade, a fim de que alcance os objetivos pretendidos com o contrato, agindo em consonância com a ética.

Presente tanto na formação, na conclusão e na execução, o principio impregna de moralidade a atividade negocial, na defesa de valores básicos da convivência humana e de direitos ínsitos na personalidade.” (SEGALLA, 2001, p.137).

 

 Portanto, quando as empresas concessionárias ameaçam suspender o fornecimento de energia elétrica aos usuários inadimplentes, apurados unilateralmente, agem em desconformidade com a boa-fé objetiva de forma desproporcional ao fim a que se destina, por que o único objetivo passa a ser constranger os devedores que por sua vez não possuem meios técnicos e financeiros para garantir seus interesses, estando vulnerável na relação de consumo.

Outra violação inerente à prática debatida é o ultraje aos chamados Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, tendo em vista que o poder de taxar não pode chegar ao abuso e ao excesso de aniquilar as relações consumeiras de forma unilateral interrompendo-as abruptamente, esse inclusive é o entendimento do Supremo Tribunal Federal.

As empresas concessionárias de energia elétrica, ao interromperem ou suspenderem o fornecimento, sob o pretexto de que existe dispositivo “legal”, optam pelo meio desproporcional mais gravoso e constrangedor, o que não é razoável à sua finalidade mister. Portanto a postura adotada carece de razoabilidade e é desproporcional aos fins visados, já que o próprio CPC no seu art. 620, preceitua que o magistrado opta pelo meio menos gravoso para o devedor em caso de execução por parte do credor.

As empresas concessionárias não estarão impedidas de cobrar os débitos de consumo de energia elétrica, porém devem se utilizar de meios que não firam os princípios jurídicos e constitucionais, e não pelo mais gravoso ao consumidor, mediante apreciação previa do Poder Judiciário. Não se pode esquecer que o serviço de fornecimento de energia elétrica é público, e para tanto não pode sucumbi aos interesses privados. Diante disso deve prevalecer, sobretudo o princípio da continuidade dos serviços públicos, implicitamente agasalhado pelo texto constitucional, forma de garantia a direitos fundamentais contidos na própria Constituição.

A interrupção do fornecimento de energia elétrica aos consumidores inadimplentes não atende sobremaneira às exigências do bem comum que se compõem de dois pilares: A Justiça e A Utilidade Comum, elementos de caráter valorativo aos princípios orientadores. Tal conduta aniquila o princípio da solidariedade que deve nortear as relações sociais que deflagram as relações jurídicas.

 CONCLUSÃO

O novo paradigma inaugurado pela Constituição de 1988, aponta para a proteção ao equilíbrio contratual, que não se define apenas no ato de firmação do contrato, e sim durante toda sua vigência, garantindo à relação fornecedor-consumidor um equilíbrio de direitos e obrigações contratuais durante todo o curso da relação consumeista. Desta feita substitui-se um mecanismo de controle de equilíbrio a priori para um controle também a posteri, que envolve todo o curso do contrato.

                   A interpretação da norma ao caso concreto, reclama a técnica hermenêutica razoável, que leve em consideração da vida humana, e não que a aniquile com a simples aplicação da norma pura e fria em um silogismo matemático. A lógica tradicional não serve de base para a compreensão do caso concreto e a aplicação da norma abstrata. O magistrado elabora a adaptação da lei ao caso concreto, usando critérios valorativos.

                    O uso de critérios valorativos (justiça e utilidade) inspirados na ordem jurídica vigente permite o atendimento do bem comum, portanto a interrupção do fornecimento de energia ao invés de satisfazer as exigências do bem comum, de modo contrário, ofende o princípio da solidariedade, da continuidade dos serviços públicos, da razoabilidade, da proporcionalidade e do devido o processo legal. Sendo assim, consideramos como imprescindível a observância destes princípios, sob pena de estarmos rompendo com a idéia de supremacia da Constituição, fazendo com que esta ceda frente a uma norma infraconstitucional.     

REFERÊNCIAS

LAZARI, Rafael José Nadim de. O inadimplemento do usuário e o princípio da continuidade na prestação dos serviços públicos.  Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, 74, p.243 - 263, abr – jun, 2010. 

MARTINS, Taíse Fernandes. A legalidade da suspensão do fornecimento de energia elétrica em virtude do inadimplemento do usuário. Disponível em: <http//WWW.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicaçoes/artigos/00192009.pdf> acesso em: 1 de Nov 2010.

NAMBA, Edison Tetsuzo. A suspensão do serviço público pela concessionária em decorrência do não pagamento das contas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 36, p. 130-153, out – dez, 2000. 

SEGALLA, Alessandro. A suspensão do fornecimento de energia elétrica ao usuário inadimplente à luz da Constituição Federal. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 37, p. 121-156, jan – mar, 2001. 

 

     


[1] Aluno do 10° período curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB