Constatamos que as pessoas não querem morrer e por isso produzem obras nas quais pretendem se eternizar. Mas sobrevém disso um problema: o que deve ser preservado como patrimônio? Quem determina o que e quais acervos podem e devem ser preservados? Do ponto de vista pessoal não temos completa autonomia para decidirmos o que preservaremos em nossa memória individual. A memória pessoal, como ensinam os psicólogos (CHAUÍ, 2005; BOSI, 1998), forma-se a partir de vários condicionamentos e por seleções as mais diferentes. Em razão disso podemos dizer que não somos o que queremos, mas o que os condicionantes nos fizeram ser. Memoriza-se por trauma ou por felicidade, mas não somos nós que escolhemos o que preservamos na memória, mas as circunstâncias.

E do ponto de vista social, como saber o que realmente deve ser preservado ou o que realmente é a memória coletiva, sem que isso seja o ponto de vista de um grupo que se sobrepõe ao outro? Podemos dizer que essa objetividade é impossível, pois também os grupos humanos são condicionados. Flávio Josefo, por volta do ano 70, demonstra essa preocupação dizendo, que o historiador é alguém que toma partido ao escrever a história:

Visto que pessoas que não presenciaram os acontecimentos e se limitaram a recolher de fonte oral contos fantásticos e contraditórios, escreveram a história com força e retórica, e que certas outras, que foram testemunhas dos acontecimentos, quer por adulação aos romanos, quer por ódio aos judeus, falsificaram os fatos e assim suas obras comportam aqui a invectiva, lá o elogio, mas em lugar nenhum a exatidão que a história exige, eu me propus a redigir a narrativa dos fatos. (JOSEFO, apud Charpentier, 1983, p. 9, grifos nossos)

A mesma postura de Josefo, esteve presente em Tucidides, cinco séculos antes, quando ele afirma estar escrevendo as suas palavras, sem se comprometer que sejam verídicas ou exatas:

No que se refere aos discursos pronunciados por uns e por outros, ou logo antes, ou durante a guerra, seria bem difícil reproduzir seu próprio teor com exatidão, tanto para mim, quanto eu pessoalmente os tenha ouvido, como para qualquer um que mos contava desta ou daquela providência: eu exprimi o que a meu ver eles poderiam ter dito que correspondesse melhor à situação, mantendo-me, quanto ao pensamento geral, o mais perto possível das palavras realmente pronunciadas. (TUCIDIDES, apud Charpentier, 1983, p. 9, grifos nossos)

Isso nos leva a afirmar que a memória social é determinada pela força não da sociedade, mas dos grupos social e politicamente organizados e dominantes. Daí a afirmação de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista dizendo que a "história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes" ([197?], p. 21). E isso ocorre, continuam, porque "a sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado" (MARX; ENGELS, [197?], p. 21). Dessa forma a preservação da memória é conseqüência e resultado do confronto das forças socialmente organizadas. Dessa forma, também, pode-se dizer que a escolha ou determinação de algo como patrimônio social e coletivo pode ser expressão do exercício de cidadania ou do exercício de dominação. Os antigos historiadores já assim o haviam constatado, como podemos ler em Tito Lívio, comentado a história de Roma. Diz ele que pretendeu contribuir "do melhor modo que pude, para lembrar os grandes feitos do primeiro povo do mundo". E fala isso como a negar outros povos, suas grandezas, suas realizações. E o mesmo historiador romano, do século V aC, rivalizou com seus contemporâneos: "aparecem constantemente novos historiadores que se orgulham, uns, de fornecer ao domínio dos fatos uma documentação mais segura, outros, de superar com seu talento literário a imperícia dos antigos" (TITO LÍVIO, apud Charpentier, 1983, p. 9, grifos nossos).

Como se pode observar, o historiador preserva aquilo que lhe é mais interessante; aquilo que lhe é mais conveniente; aquilo que lhe parece ser a verdade – ou essa seria a sua verdade. Josefo constata que alguns escreveram na forma de "adulação aos romanos" e outros"por ódio aos judeus", mas em ambos os casos seus predecessores "falsificaram os fatos". Por isso ele, Josefo, está se propondo escrever com a "exatidão que a história exige" ou, diríamos nós, com o seu ponto de vista. Tucidides confessa que não reproduziu fielmente os discursos a que se refere, pois é "bem difícil reproduzir seu próprio teor com exatidão". Dessa forma admite que seu texto é a sua versão dos fatos, dizendo que "eu exprimi o que a meu ver eles poderiam ter dito". Isso nos leva à subjetividade tanto do fato narrado, como do monumento erigido; da memória registrada, ou do patrimônio preservado; da cultura produzida e mesmo do ambiente ecológico que ganha nova significação diante dos apelos de grupos sócio-econômico-políticos que se posicionam em seu favor.

É o que podemos depreender da afirmação de Oriá, quando diz que a preservação dos bens culturais, da memória, é uma forma de "construção da identidade" e da "cidadania cultural". Propõe, portanto que "a preservação do patrimônio histórico como questão de cidadania implica reconhecer que, como cidadãos, temos o direito à memória, mas também o dever contribuir para sua manutenção" (ORIÁ, 2001, p. 140).

Isso tudo implica dizer que a história, como qualquer ciência, não é neutra, mas é feita a partir de opções. E sempre que se faz uma opção ocorre uma escolha. E ao escolher uma forma de ver o processo gerador do fato, necessariamente rejeita-se outra visão, outra perspectiva. Da mesma forma que nem sempre se entendeu a memória e o patrimônio como a totalidade da produção humana, noutro momento da história as possibilidades serão outras. Importa, em cada momento, da história, manter o espírito aberto, com disposição de buscar e acolher as novidades, que certamente, virão, como na música "Como nossos pais" de Belchior, que se tornou quase um hino à rebeldia e à mesmice, cantada por Elis Regina:

Não quero lhe falar, meu grande amor,

das coisas que aprendi nos discos

Quero lhe contar como eu vivi

e tudo que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar,

eu sei que o amor é uma coisa boa

Mas também sei que qualquer canto é menor

do que a vida de qualquer pessoa

Por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina

Eles venceram e o sinal está fechado pra nós,

que somos jovens

Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua

É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz

Você me pergunta pela minha paixão

Digo que estou encantada com uma nova invenção

Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão

Pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação

Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração

Já faz tempo eu vi você na rua,

cabelo ao vento, gente jovem reunida

Na parede de memória

essa lembrança é o quadro que dói mais

Minha dor é perceber

que apesar de termos feito tudo que fizemos

Ainda somos os mesmos e vivemos (bis)

como nossos pais

Nossos ídolos ainda são os mesmos

e as aparências não enganam não

Você diz que depois deles

não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu tô por fora

ou então que eu tô inventando

Mas é você que é ama o passado e que não vê

É você que é ama o passado e que não vê

que o novo sempre vem

Hoje eu sei que quem me deu a idéia

de uma nova consciência e juventude

Tá em casa, guardado por Deus, contando vil metal

Minha dor é perceber

que apesar de termos feito tudo que fizemos

Nós ainda somos os mesmos e vivemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

como nossos pais (REGINA, 2005)

Notemos a antítese de idéias. Inicialmente, em resposta sobre "minha paixão" vem a resposta na direção da novidade: "estou encantada com uma nova invenção". Sua paixão é a novidade e por isso "Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão / pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação". Mas aí entra a lembrança, a história, o passado do qual só existe a memória: "Na parede de memória, essa lembrança é o quadro que dói mais". Mas por que a dor? Por perceber que a novidade é repetição do passado. "Minha dor é perceber / que apesar de termos feito tudo que fizemos / Ainda somos os mesmos e vivemos (bis)/ como nossos pais / Nossos ídolos ainda são os mesmos / e as aparências não enganam não/ Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém". Ou seja, o historiador enquanto individuo, ou a sociedade na qual e da qual faz parte fazem opções por uma visão ou interpretação do passado: "é você que ama o passado e que não vê / que o novo sempre vem". Ou seja, criam-se novas visões, novas interpretações para algo que foi objetivo enquanto ocorria, mas que se tornou subjetivo na sua interpretação e na forma de ser recuperado na/da memória. Daí a importância da pergunta sobre a relevância daquele fato mencionado; daí a importância de compreender não só o contexto do fato, mas principalmente de quem escolheu o fato a ser preservado pela memória. Daí a opção por uma ou outra teoria da história.

Podemos fazer uma abordagem a partir de uma perspectiva positivista e, então, valorizaremos os monumentos, os heróis, os grandes feitos... Podemos fazer uma abordagem dialética procurando sondar as diferentes implicações e conhecer os diferentes atores sociais que produziram os conflitos e se contrapuseram no emaranhado dos fatos e, neste caso nos valeremos do materialismo histórico. Mas também poderíamos nos interessar por algumas particularidades e especificidades de um período determinado e então nos valeríamos da revisão do marxismo e do positivismo proposto pela Escola dos Annales e pelos seus diferentes desdobramentos....

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso sobre a compreensão da história, suas fontes, seus documentos; sobre o patrimônio tanto é antigo como atual. É antigo porque remonta à própria existência humana. É atual porque trata de uma dimensão da vida humana no aqui e agora de nossa existência. Essa discussão implica em uma revisão dos nossos conceitos de temporalidade e ao mesmo tempo de nossa visão de história. Convida-nos a ver a história não só como "mestra da vida", mas como espaço de possibilidades e de opções atuais.

Podemos dizer, portanto que a história não são as obras ou os monumentos, nem os espaços ou as produções, mas o significado que damos a eles; da mesma forma que a memória não é a recordação, mas a interpretação do passado a partir de um ponto de vista: o ponto de vista do sujeito pensante que se utiliza de uma estruturação teórica para se voltar em direção ao passado. Dessa forma, não se resgata o passado, mas interpreta-se o processo do cotidiano a partir dos valores cotidianos; para isso se utilizam as teorias. E, para fundamentar e dar sustentação às nossas opções e interpretações, afirmamos que aprendemos da história, quando, na realidade, aprendemos aquilo que já sabíamos, e usamos o passado para dar sustentação às nossas convicções. E fazemos isso porque queremos dinamizar o processo do nosso instante vivido que se arremessa para o passado enquanto sonhamos com um futuro incerto... "ama o passado e não vê que o novo sempre vem", para transformar o novo em passado...

REFERÊNCIAS

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BLOCH, Marc, Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar. 2001.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 5 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998

BRASIL.Parâmetros Curriculares Nacionais, terceiro e quarto ciclos do ensino Fundamental. História. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental. MEC/SEF. 1998.

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CHARPENTIER, Etiene et al. Uma leitura dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas. 1983

CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 13 ed. São Paulo: Ática. 2005.

ARANHA, Maria L. Arruda; MARTINS, Maria Helena P. Filosofoando: introdução à filosofia. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1997

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4 ed. Campinas: ed. Unicamp. 1996.

MARIUZZO, P. A construção histórica do patrimônio público, in Revista Consciência Nº 52 - Março 2004, disponível em <http://www.comciencia.br/reportagens/memoria/02.shtml> acessado em 23 de março de 2007

MARX, Karl; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, in. MARX, K e ENGELS, F., Obras Escolhidas. v. 1. São Paulo: Alfa-Ômega, [197?]. (p.21-47).

MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulinas, 1983

ORIÁ, Ricardo. Memória e Ensino de História, in BITTENCOURT, Circe (org). O Saber Histórico na Sala de Aula. 5 ed. São Paulo: Contexto. 2001

REGINA, Elis. Novo Milenium. Rio de Janeiro: Universal Music, 2005. 1 disco compacto, (60 min) digital, estéreo. 60249822911

SEIXAS, Raul; COELHO, Paulo. Há 10 mil anos atrás, Guanabara: Philips, 1976. 1 disco (39:40 min) 33 1/3 rpm, microssulco,estéreo, 6349 300.