A Síria ontem e hoje 

                                                                   (Jefté Brandão Januário)

O foco do Oriente Médio hoje está focado na crise interna da Síria. É claro que os olhares se desviam um pouco quando as forças armadas de Israel bombardeiam a Faixa de Gaza, criando uma mortandade muito maior do que quando os foguetes Kassam do Hamas atingem o sul e o centro do Estado judeu. Todos, ou quase todos, associam o levante armado na Síria contra o presidente (agora chamado de ditador) Bashar Al-Assad – mandatário deste país desde 17 de julho de 2000[1] - à Primavera Árabe. O que é a Primavera Árabe mesmo? Recapitulando, é a onda das massas insatisfeitas com décadas de tirania de seus líderes, muitos destes usufruindo de suas riquezas, enquanto a população mal tem onde morar, comer e pior: onde milhões de jovens não tem perspectivas de uma vida melhor, pois o Estado não lhe assegura que terão um emprego digno e estável para viver agora, e terem uma velhice estável no futuro. Resumindo a grosso modo é isso.

Na Síria acontece isso? Sim, sem dúvida alguma. Há uma taxa de desemprego entre a sua população, estimada em mais de vinte e dois milhões de habitantes,[2] considerada alta. Entre a população jovem na faixa-etária de 15 à 24 anos, o desemprego ronda na casa dos 19,1%.[3] Vamos jogar por alto ( já que este não é um artigo destinado a economistas), que isto equivale a uns quatro milhões de jovens que não tem suas capacidades físicas e intelectuais usados em prol da própria sociedade Síria, mas em vez do país usar o dinheiro para dar trabalho a esses jovens, prefira investir em artigos bélicos, etc. O pior, é que em vez da taxa de desemprego diminuir só aumenta.  Por exemplo, em 2010 o índice de desemprego era de 8,3% e em 2011 subiu para 12,3%.[4] Quando vemos estes dados, realmente nos indignamos com o descaso público e até entendemos o porquê da revolta. Mas calma. No Brasil os dados não são diferentes, e nem por isso estamos em guerra civil. Então, o que se explica o que está ocorrendo na Síria?

 Ao mesmo tempo em que a resposta pode ser fácil e simplista, quando viramos o outra lado da moeda as coisas começam a ficar complicadas. Em primeiro lugar, a sociedade Síria é pluri-étnica, onde vivem pelo menos quatro grupos antagônicos vivendo juntos – cristãos (compõem 8,9% da população[5]), muçulmanos sunitas (compões 74% da população total[6]), druzos (um “grupo que constitui um desprendimento do islã ismaelita”[7] e que constitui apenas 3% da população[8]) e alawitas (uma seita que mistura cristianismo e islamismo[9], mas que é considerado mulçumanos e que formam 12% da população[10]) – mas sob um consenso. É justamente aí que está um dos problemas da chamada revolta Síria. Quem tem a hegemonia política no país, são apenas os Alawitas. Quem controla de fato a economia do país, também é essa pequena minoria, em comparação com os muçulmanos sunitas. Quem tem mais prestígio na sociedade Síria, principalmente nos pontos chaves de comando do exército, são os alawitas. Sim, desde o golpe militar perpetrado pelo general da Força Aérea Síria, Hafez Al-Assad (pai do atual presidente Bashar Al-Assad) em 1970, os alawitas é que mandam na Síria.[11]

Porém, muito antes de 1970 os alawitas foram agraciados com o poder. Quando a França ainda tinha o mandato colonial sobre a Síria, antes da independência deste país em 1946, [12]  “os alawitas gozaram de uma relativa autonomia. Sendo alentados pelo governador Frances a integrar-se, junto aos membros de outras minorias – cristão  e drusos -, no exército para neutralizar a influência das tendências nacionalistas da maioria sunita. Vendo nisso uma oportunidade de destaque pessoal, os membros da seita – alawita – chegaram a constituir uma alta porcentagem dos membros das forças armadas. Muitos deles também se somaram ao Partido Baath – partido pelo qual faz parte o presidente Bashar Al-Assad, assim como toda a nata alawita – ao que imprimiram um tom secular – ou seja, não é teocrático -. Todos estes fatores contribuíram para que os alawitas tenham chegado a ocupar postos chaves no governo do país e de suas principais instituições: o Exército e o Partido Baath”.[13]

Com esse breve panorama, já dá para ver que toda a riqueza do país, desde os tempos coloniais até os dias de hoje, ficam nas mãos de três importantes minorias, em detrimento da grande outra  porcentagem que fica marginalizada, ou seja, os 74% da população sunita. É claro que a Síria não é um grande país industrializado, mas o dinheiro das exportações de commoditties (gás e petróleo), não é repartido eqüitativamente entre a sua população. Um dos objetivos do próximo grupo a suceder o atual presidente Bashar Al-Assad, se por ventura vir a se concretizar de fato esta teoria, será se apropriar das reservas de petróleo (estimado em 2,5 bilhões de barris)[14] e do gás natural (estimado em 240,7 bilhões metros cúbicos),[15] e assim tentar fazer uma justiça social. Rapidamente faço uma pausa; corre-se o risco do próximo presidente anti-Assad abrir a economia nacional para grandes empresas internacionais (americanas, européias e asiáticas) para explorar essas riquezas em vez de fazer uma mudança social. Neste caso, sairá uma minoria que desde sempre gozou de prosperidade, para uma maioria que tentará experimentar as riquezas que desde tempos passados ficou marginalizada desses benefícios. Aí vamos ver o velho ditado se cumprir: trocou gato por lebre. Ou pior.

Uma outra característica na Síria e o que está acontecendo atualmente por lá, é semelhante (se o leitor prestar bem atenção, eu coloquei em negrito, itálico e sublinhado a palavra semelhante, para não correr o risco de dizerem depois que este autor disse que a atual conjuntura é igual) ao Massacre de Hama ocorrido em 1982 no mesmo país, ou seja, há exatos trinta anos. Nessa época, o então general Rifaat al-Assad, tio do atual presidente e irmão de Hafez Al-Assad, coordenou uma ação militar contra a Irmandade Muçulmana (a mesma organização que hoje dá apoio ao chamado grupo rebelde Exército Livre da Síria), que naquele momento estava incentivando a maioria sunita a derrubar o governo dos Assad.  Segundo a imprensa oficial do regime, foi preciso usar da força militar bruta, pois os rebeldes anti Assad lançaram-se “sobre os nossos companheiros enquanto dormiam nas suas casas e mataram eles, as mulheres e crianças, mutilando os corpos dos mártires nas ruas, como cães raivosos. As forças de segurança tiveram que enfrentar esses crimes e ensinar os assassinos uma lição”[16]

Segundo dados estimados, para o governo conter esse levante na cidade de Hama (ou Hamah), foi preciso matar de 10.000 a 25.000 mil pessoas, muitas delas civis.[17] Quem diria que trinta anos depois aconteceria algo semelhante na Síria (e quem diz que um raio nunca cai duas vezes no mesmo local? Na política, tudo é possível).  Naquele exato ano de 1982, Israel estava torcendo para que Hafez Al-Assad caísse do poder (o que seria um desastre total para Israel hoje se Bashar Al-Assad caísse, mesmo os dois Estados estando em guerra técnica, pois seria melhor um Assad no poder, do que uma Irmandade Muçulmana), pois isso fazia parte do programa militar israelense. Ralph Schoenman, um americano de origem judia, diz que em 1982, um alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores de Israel, chamado Oded Yinon, fez um relatório intitulado “Uma estratégia para Israel nos anos 1980” onde ‘esbaoçava um calendário para que Israel se convertesse numa potência imperial regional em base à dissolução dos Estados Árabes. Ao analisar a vulnerabilidade dos regimes corruptos do Oriente Médio, Yinon, sem se dar conta, denuncia o alcance da traição deles em relação às necessidades da população e sua incapacidade para defender-se ou defender seus povos do jugo imperial’.[18]

Segundo este relatório elaborado por Yinon, o mais importante referente a Síria dizia: "a Síria cairá alquebrada, de acordo com sua estrutura étnica e religiosa, dividendo-se em vários Estados, como acontece hoje no Líbano, de modo que haverá um Estado xiita alauíta na costa, um Estado sunita na área de Alepo, outro Estado sunita em Damasco hostil ao seu vizinho no Norte e os drusos que estabelecerão um Estado, talvez, inclusive, em nosso Gola [ as colinas de Gola foram ocupadas por Israel em 1967], e sem dúvida no Hauran e no Norte da Jordânia. Essa estado de coisas será a garantia da paz e da segurança na área a longo prazo e esse objetivo, hoje, já está ao nosso alcance".[19]

Sobre o exército sírio, o relatório de Yinon dizia que este organismo esfacelaria, pois ele não era homogêneo: “o exército sírio atualmente é sobretudo sunita, com um corpo de oficiais alauíta [...] e esse é a razão de não ser possível manter por muito tempo a lealdade do exército”.[20] De fato, o tal relatório não estava de todo errado. Se os sunitas em 1982 tivessem ganhado a guerra civil contra Hafez Al-Assad, os israelenses talvez veriam suas previsões concretizadas. Isso não ocorreu é claro, e se ocorresse agora na Síria, seria o pior pesadelo dos israelenses.

O que eu quero deixar claro neste artigo, é que as revoltas árabes não podem ser explicadas apenas respondendo a uma conjuntura atual do que passa esses países. Por exemplo, a revolta na Tunísia que derrubou Bem Ali não se explica somente pelos 23 que ficou no país, ou de Mubarak que ficou 30 anos ou de Kadaf* que ficou 42 anos, sem ter um projeto social.[21] O que existe por detrás desses levantes, muitas vezes são grupos influentes que agem por detrás de manifestações bem intencionadas, que após o povo derrubar essas verdadeiras dinastias corruptas, captam o poder e se tornam elas mesmas grupos corruptos, vendendo o país para multinacionais estrangeiras (vide o caso da Líbia e Afeganistão).

Ao vermos noticiários sobre as revoltas árabes, precisamos estudar um pouco a história desses países com tato. Virou moda agora muitos se tornarem especialistas em Oriente Médio. Espero que isso não fique só na moda. O que não podemos deixar que vire moda sempre, é sermos uma espécie de telefone sem fio de reprodução de discursos sensacionalistas de direitistas e esquerdistas (o qual as universidades estão cheias), que mal sabem defender suas ideologias e contar a história de seu próprio país, e de uma hora para outra acham que sabem tudo sobre o mundo e mais u



[1]  Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bashar_al-Assad

 2] Disponível em:  http://www.indexmundi.com/pt/siria/economia_perfil.html

 [3]Ibdem. 

 [4] Ibdem. 

 [5] Disponível em: http://www.portalbrasil.net/asia_siria.htm

 [6] Ibdem.

 [7] RUSSEL, Roberto. SAMOILOVICH, Daniel. El conflicto árabe-israelí: desde sus orígenes hasta la firma del Trado de Paz entre Egipto e Israel. Buenos Aires: Editora Belgrano, 1979.

 [8] Disponível em: http://www.portalbrasil.net/asia_siria.htm

 [9] RUSSEL, Roberto. SAMOILOVICH, Daniel. El conflicto árabe-israelí: desde sus orígenes hasta la firma del Trado de Paz entre Egipto e Israel. Buenos Aires: Editora Belgrano, 1979.

 [10] Disponível em: http://www.portalbrasil.net/asia_siria.htm

 [11] RUSSEL, Roberto. SAMOILOVICH, Daniel. El conflicto árabe-israelí: desde sus orígenes hasta la firma del Trado de Paz entre Egipto e Israel. Buenos Aires: Editora Belgrano, 1979. Pg. 734.

 [12] Ibdem.

 [13] RUSSEL, Roberto. SAMOILOVICH, Daniel. El conflicto árabe-israelí: desde sus orígenes hasta la firma del Trado de Paz entre Egipto e Israel. Buenos Aires: Editora Belgrano, 1979. Pg. 741-742.

[14] Disponível em: http://www.indexmundi.com/pt/siria/economia_perfil.html

 [15] Ibdem.

 [16] New York Times. 24 Feb 1982. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Hama

 [17] Disponível em: http://www.mafhoum.com/press2/63P58.htm

[18] SCHOENMAN, Ralph. A História oculta do sionismo: a verdadeira história da formação do Estado de Israel. São Paulo, Sundermann, 2008. 284 p.

 [19] Ibdem.

 [20] Ibdem.

 * Sobre Kadaf, vejam um vídeo no youtube, é muito interessante: http://www.youtube.com/watch?v=GnF-WrOHQzQ