A Síndrome de Burnout como manifestação do não dito

Eliane Coelho Martins de Souza[i];

Paula Andréa Prata Ferreira[ii];

Teresa Cristina Mafra de Oliveira[iii]

Resumo

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre os conflitos latentes e manifestos presentes nos profissionais de saúde submetidos ao estresse crônico no espaço institucional, nomeado de Síndrome de Burnout.  Se recorrermos à psicanálise, perceberemos que em processos e conflitos subjetivos o inconsciente emana de recônditos do psiquismo por meio de sintomas.  Neste ponto, a idéia do “não dito” passa a contar neste trabalho como uma manifestação sintomática. Desde já, cabe situar nosso interesse no processo analítico como possibilidade de mudança psíquica do profissional assujeitado nas instituições para que este se aproprie do seu desejo, proporcionando o resgate do seu Eu. O estresse crônico provoca grande sofrimento psíquico nos profissionais, em especial naqueles que lidam diretamente com o ser humano e suas emoções, doenças e morte. Assim, propomos uma leitura psicanalítica acerca do “não dito” presente na manifestação do burnout, com o intuito de suscitar uma reflexão sobre os mecanismos psíquicos que permeiam as relações entre os profissionais de saúde em seus ambientes institucionais e intervir preventivamente de modo a aplacar o sofrimento destes e atender à demanda singular e plural no ambiente laboral através da escuta psicanalítica e suas construções e desconstruções.

Palavras chave: psicanálise, burnout, profissionais de saúde.

Introdução

Na atividade laboral os profissionais de saúde convivem diariamente com grandes demandas de sofrimento e dor no ambiente institucional. Tais profissionais sofrem frequentes desgastes emocionais e frustrações. Na tentativa de manter a sua integridade e equilíbrio psíquico perante a complexa dinâmica cotidiana silenciam seu sofrimento e negam esses conflitos. No entanto, diante dessas crescentes demandas não elaboradas a estrutura psíquica do sujeito passa a não conter os sentimentos latentes, e na impossibilidade de manifestá-los através da linguagem, o sujeito passa o conviver com a progressiva cronificação do estresse.

Estudos recentes registram o grande sofrimento psíquico a que estes profissionais estão expostos, como também a necessidade de intervenção preventiva para que os mesmos tenham espaço para a nomeação do não dito, onde seja possível  através da linguagem a manifestação dos conteúdos latentes, pois quando isso não acontece, seus investimentos libidinais se esvaziam, “queimando” assim sua singularidade e a possibilidade de elaboração saudável da vida profissional e provável mudança psíquica.

Desenvolvimento

O termo burnout é de origem inglesa e quer dizer “aquilo que parou de funcionar” (TRIGO et. al., 2007). O uso desse termo começou por volta dos anos 70 em publicações de Freudeberg[1] nos Estados Unidos, onde ele descreveu o comportamento que alguns voluntários começaram a apresentar frente ao trabalho em uma clínica de dependentes químicos (BIEHL, 2009). Freudeberg observou nesses voluntários o surgimento de sentimentos de derrota em relação ao próprio trabalho, como também exaustão e frustração por não conseguirem atingir as metas traçadas no programa de tratamento. Assim, esses voluntários passaram a ter atitudes e reações agressivas com os pacientes adictos, além de dispensarem tratamento distanciado e cínico, como também tinham a tendência a culpá-los pela própria doença (LOPES, 2009). Posteriormente, esse termo – burnout - foi francamente usado por Maslach e Jackson em várias publicações desde a década de 80 (BIEHL, 2009). A síndrome de burnout está listada no Código Internacional de Doenças (CID-10) sob o código Z73, como também foi declarada como risco ocupacional para atividades profissionais que envolvam: cuidados com a saúde, educação e serviços humanos.

Observamos que profissionais de todas as áreas são a cada dia mais atingidos pela síndrome de burnout, em especial os profissionais da área de saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos dentre outros). No Brasil, os que se enquadram nesta categoria parecem estar submetidos a uma maior influência de fatores estressantes, principalmente se trabalham na área de saúde pública, que apresenta problemas de infraestrutura, falta de material básico para o atendimento, grande demanda imposta pelos órgãos responsáveis e etc. No que concerne ao Sistema Único de Saúde (SUS), os desafios que decorrem de sua implementação são, dentre outros: a universalização, a regionalização, a hierarquização dos serviços, o que leva o profissional a estar sempre atento a seus papéis como também ao papel da instituição pública junto aos seus usuários (BORGES et al., 2002 apud CARVALHO & MALAGRIS, 2007).

Mas afinal o que é a síndrome de burnout? A síndrome de burnout se refere a um processo onde o indivíduo vivencia grandes níveis de estresse por longo período em sua atividade laboral, ou seja, é uma síndrome resultante de estresse profissional crônico (BIEHL, 2009). Como a própria etiologia sugere é um agregado de sinais e sintomas associados a uma mesma patologia. A literatura especializada trás uma relação considerável de sintomas associados ao burnout. Tais sintomas são separados em quatro categorias: sintomas físicos, comportamentais, defensivos e psíquicos (BENEVIDES-PEREIRA, 2008). Cada um dos grupos reúne características específicas.

O grupo de sintomas físicos inclui, dentre outros, um grande cansaço, falta de energia além de queixas de dores musculares (o indivíduo se sente literalmente “travado” em seus movimentos).

Os sintomas comportamentais manifestam-se através de negligência ou cuidado excessivo; irritabilidade; aumento da agressividade através de atitudes hostis e destrutivas; incapacidade de relaxamento por estar sempre em alerta; intolerância a mudanças; incremento no uso de substâncias; exposição a alto risco para minimizar sentimento de insuficiência e também atentar contra sua própria vida (suicídio).

Os sintomas defensivos apresentam-se através de mudanças psíquicas como a tendência ao isolamento; negação da realidade com o intuito de diminuir seu sentimento de impotência diante das circunstancias; desenvolvimento de sentimento de onipotência como forma de lidar com a frustração e incapacidade, como também lidar com sentimentos de paranoia; desinteresse por seu trabalho, grande número de faltas (absenteísmo), impulsos de abandonar suas atividades; ironia e cinismo com colegas de trabalho, como também com pessoas a quem presta serviço.

Os sintomas psíquicos descrevem falta de atenção e de concentração, pois o indivíduo passa a ter dificuldade em focar em suas atividades, parecendo “ausente” ou tendo atenção seletiva apenas para o que ainda lhe interessa; alterações de memória influenciando sua capacidade de fixação e evocação, como também em lapsos; lentidão de raciocínio; sentimento de estar alienado do ambiente; solidão; impotência; instabilidade emocional; dificuldade de autoaceitação e baixa autoestima; astenia, desânimo, disforia e depressão; desconfiança e paranoia.

Segundo Carvalho e Malagris (2007) a síndrome de burnout é constituída por três dimensões, que se constituiu na tríade multidimensional dos sintomas: exaustão emocional, despersonalização e a baixa realização profissional. A exaustão emocional faz alusão aos recursos emocionais onde o sujeito está privado de energia psíquica, ou seja, desprovido de investimentos libidinais para lidar com as emoções do trabalho. Nesta etapa já podemos verificar o sofrimento psíquico onde o sujeito sofre com a ausência do desejo, pois este mesmo sujeito vivencia conflitos inconscientes que se manifestam também nas suas relações de trabalho através dos mecanismos de defesa conceituados por Freud (FREUD, 2011) e, posteriormente, também descritos por Anna Freud (FREUD, 2006), mecanismos estes que permeiam o campo psíquico do trabalho. Freud afirmou que a civilização se constrói através da lei que organiza o social, neste pacto o sujeito renuncia a busca da satisfação sem limites, mas a substituiu por satisfações que lhe são ofertadas pela sociedade (MARTINS, 2009).

 Neste ambiente psicodinâmico cada indivíduo colabora com sua subjetividade, assim apresentamos segunda dimensão descrita pelos autores, a despersonalização.  Esta dimensão implica na relação negativa entre o profissional e o usuário de seu serviço, seja este paciente, cliente, aluno e etc. Afloram sentimentos que provocam rigidez afetiva no trabalhador em relação ao outro, tais como, ironia, indiferença e cinismo.

O vínculo que o sujeito constrói com seu trabalho é constituído desde a infância, perpassado por vínculos sociais, familiares em um contexto sociocultural.  Por ocasião da formação da identidade ocupacional, o sujeito se depara com a necessidade da escolha, sendo este um processo psicodinâmico (SANTOS-FILHO, BARROS, 2007). Posteriormente, o mesmo sujeito já formado profissionalmente, depara-se com uma realidade complexa que não fazia parte de sua construção laboral fantasiosa. Dessa forma, na impossibilidade de elaborar de forma saudável o conflito que se instala em seu ego ferido, o sujeito lança mão dos mecanismos de defesa, como forma de lutar para que seu ego não se desintegre diante de tantas frustrações. Assim, fantasiado pelo sentimento de onipotência, porém diante do complexo cotidiano de seu ambiente institucional que lhe causa frustrações, ambiente este que deveria lhe proporcionar grandes realizações, este sujeito imbuído de um grande sentimento de doação, realização, se frustra e se fragiliza, e, muitas vezes, o que acarreta prejuízos nas relações pois o profissional chega a seu contexto institucional com uma visão idealizada e sem preparo para encarar a realidade. Dessa forma, a identidade pessoal entra em choque com a identidade profissional.

A síndrome de burnout provoca mudanças psíquicas que interferem nas relações interpessoais, pois desconecta o sujeito de seus vínculos sociais, esvaziando seus sentimentos e expectativas, “queimando” sua pulsão de vida e levando-o à inércia. Nesse sentido, o sujeito impossibilitado de extravasar suas emoções tem seu psiquismo atingido e a falta não mais move o desejo, mas sim congela o sujeito esvaziado. A grande maioria dos fenômenos psiquiátricos se constitui de expressões como fobias, sintomas compulsivo-­obsessivos, delírios, alucinações, sintomas de conversão, sonhos, etc., que, em si mesmos, não revelam a natureza do distúrbio; constitu­em o chamado conteúdo manifesto. O significa­do real dos sintomas ou símbolos é dissimulado e inconsciente, ou seja, latente. Neste ponto citamos mais uma vez a importância da obra de Freud e com destaque para a “Interpretação dos Sonhos”, considerado pelo autor como sendo a mais valiosa descoberta que teve a felicidade de fazer, além de inquestionável importância para a compreensão dos conteúdos latentes e manifestos presentes nos sonhos os quais revelam os conteúdos mentais reprimidos ou excluídos da consciência pelas atividades de defesa do Ego.

Considerações finais

A promoção de saúde não isenta o sujeito do encontro com o sofrimento, mas tem o intuito de não deixá-lo chegar ao sofrimento patológico, onde os mecanismos de defesa já não protegem mais seu ego, mas sim o colocam perante uma desigual luta inconsciente.

O sofrimento, frustrações e morte fazem parte da vida cotidiana destes profissionais. O avassalador superego não consegue controlar a dinâmica da vida. Assim, promover saúde é não ser prisioneiro de sofrimento e frustrações, mas sim poder lidar com seus conflitos, interpretar o dito pelo não dito através da escuta psicanalítica. 

É fundamental ter um entendimento dinâmico do sofrimento que envolve os profissionais de saúde no exercício de sua profissão e que podem levá-los ao desequilíbrio emocional. Dessa forma, acolhendo o sofrimento psíquico, temos a chance de cuidar dos cuidadores, refletindo sobre a elaboração das relações interpessoais adoecidas, ajudando-os como profissionais, estudantes da psique na busca de mecanismos para entendermos através da escuta do processo analítico seus conflitos latentes e manifestos, com o intuito maior de suscitar uma mudança psíquica para preveni-los do estresse crônico e seus sintomas.

Por fim, gostaríamos de compartilhar com vocês um pouco de poesia, por acreditarmos que através dela podemos ousar, dizer, transbordar e, sobretudo, externalizar os sentimentos mais profundos, dando asas a imaginação ao mesmo tempo que podemos aprimorar a escuta e a percepção da própria mudança psíquica.

Freud, investigador da alma humana, teve nos poetas grandes aliados para sua construção teórica. Acreditamos ser a poesia uma forte aliada no vínculo entre terapeuta e paciente, posto que através dela  o sujeito manifesta processos inconscientes, latentes,  reprimidos  os quais podem ser interpretados.

Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.

Clarice Lispector

 

 

Referências bibliográficas

BARROS, M. Elizabeth Barros de; SANTOS-FILHO, Serafim B.. Trabalhador da saúde – Muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Rio Grande do Sul: UNIJUI. 2007. 272 p.

BIEHL, KA. Burnout em psicólogos. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_arquivos/20/TDE-2009-06-26T134218Z-2030/Publico/412837.pdf>. Acesso em 2 mai. 2012.

BENEVIDES-PEREIRA, Ana Maria Teresa.(org.). Burnout: quando o trabalho ameaça o bem-estar do trabalhador. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2008. 282 p.

CARVALHO, Liliane de; MALAGRIS, Lucia Emmanoel Novaes. Avaliação do nível de stress em profissionais de saúde. Estud. pesqui. psicol.,  Rio de Janeiro,  v. 7,  n. 3, dez.  2007 .   Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v7n3/v7n3a16.pdf>. Acesso em:  01  mai.  2012.

CID-10  - Classificação Estatística Internacional de Doenças. Porto Alegre: Artmed. 2009. 252 p.

FREUD, Anna. Os mecanismos de defesa. 1 ed. Porto Alegre: Artmed. 2006. 124 p.

FREUD, Sigmund. Sigmund Freud – Obras psicológicas completas. 1 ed. Rio de Janeiro: Imago. 2011. 8016 p.

LOPES, L. F. Síndrome de Burnout em profissionais de saúde. 2009. 52 f. Monografia – Faculdades São Camilo, Rio de Janeiro. 2009. Disponível em: <https://www.mar.mil.br/dsm/artigos/Monografia_LuisFernando.pdf>. Acesso em: 1 mai. 2012.

MARTINS, Soraya Rodrigues. Clinica do trabalho. 1 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2009. 195 p.

PEYON, Eduardo Rodrigues. Poesia, psicanálise e a construção do conhecimento: reverberações. 1 ed. São Paulo: Escuta. 2011. 288 p.

TRIGO, Telma Ramos; TENG, Chei Tung; HALLAK, Jaime Eduardo Cecílio. Síndrome de burnout ou estafa profissional e os transtornos psiquiátricos. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo,  v. 34,  n. 5,   2007 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rpc/v34n5/a04v34n5.pdf>. Acesso em: 1 mai. 2012.


[1] “Staff burnout” (The Journal of Social Issues,1974) e  “The staff burnout syndrome in alternative institutions” (PsychotherTheory Res. Practice, 1975)


[i] Eliane Coelho Martins de Souza – Graduanda em psicologia (UNESA) e estagiária de psicologia hospitalar (Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro).

[ii] Paula Andréa Prata Ferreira - Graduanda em psicologia (UNESA), graduada em matemática (UFF – 1996), mestre em Sistema de Informação na linha Informática, Educação e Sociedade (IM/UFRJ – 2009), professora-tutora de graduação e pós-graduação (UFF, FGV e Fundação CECIERJ).

[iii] Teresa Cristina Mafra de Oliveira - Graduanda em psicologia (UNESA), ex- estagiária de psicologia hospitalar (Hospital Federal de Bonsucesso - RJ) e pós-graduada em Gestão do Conhecimento e Inteligência Empresarial (COPPE/UFRJ - 2006).