A SIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO NO CONTO A IGREJA DO DIABO,

DE MACHADO DE ASSIS*

Maria Fabiane dos Santos Silva**

Nara Nascimento Benevides

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia teve a idéia de fundar uma igreja. Embora seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde de séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo nada regular. ( Assis, p.139)

INTRODUÇÂO

Fomentar o estudo de um ilustre conto da Literatura Brasileira é missão desafiadora, e ao mesmo tempo estimuladora, que, ao final ,resume-se num prazeroso encontro com o conto em si.

. *Artigo apresentado a Profª. Adilma Nunes, docente da disciplina Estudo Teóricos do Texto Literário, do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, campus XXI, Ipiaú-Ba

Graduandas do terceiro semestre de Letras Vernácula, vespertino, da Universidade do Estado Da Bahia.

Nesta história, Machado de Assis (1839-1908), faz uma crítica severa à todas as igrejas existentes no Brasil na época, pois estas se aproveitavamda fé dos seus fieis, para vender indulgências com a "promessa de salvação eterna", para aqueles que a adquiriam. No conto A Igreja do Diabo (1884) Joaquim Maria Machado de Assis, mostra por meio da ficção o conflito existente entre as religiões da época criticando severamente o modo como pastores e padres ludibriavam os seus seguidores. Com uma narrativa densa, irônica (chegando a ser cômica), e humorística em alguns momentos.

Verificamos neste conto um enorme interesse em retratar, e criticar a realidade social brasileira, vivida pelo homem, sob a perspectiva religiosa, a qual de certa maneira, é tão fácil de se corromper quanto o homem, questionando assim os valores morais e éticos dasrespectivas religiões

Com base no levantamento sobre o autor e o tema por nós escolhido, percebemos que em boa parte de seus contos e romances Machado de Assis, especializou-se em estudar o comportamento humano (psicológico), demonstrando as fraquezas existentes no cotidiano da humanidade.

Como suporte para elabora deste artigo, buscamos aprofundar nossos estudos embasados em alguns teóricos, a saber, Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (1988); Hudinilson Urbano (2000); Massaud Moisés (2003); Salvatore D´onofrio (1995); Sérgio Ximenes (2000).

O nosso artigo se dividirá em duas secções: na primeira intitulada O espaço, estoriaremos de modo geral os conceitos de espaço demonstrando a importância deste elemento na construção de uma obra, seja ela literária, teatral etc. Na segunda, com o título A significação do espaço no conto a igreja do Diabo, analisaremos o significado que o espaço detém dentro do conto.

A edição de A Igreja do Diabo por nós utilizada foi a 10ª reimpressão da primeira edição, da editora nova fronteira, Rio de Janeiro, S/d.


I-O ESPAÇO

O conto em a igreja do diabo traz discussões bastante pertinentes ao que faz parte da narratividade, sobretudo o espaço, isto é, espacialidade na história, que como tal, concede uma significação muito mais complexa e dinâmica.

Mas antes iremos nos deter aos conceitos do que seja espaço:

Espaço SM.1. Distância entre dois pontos. 2. Lugar delimitado. 3. Extensão indefinida. 4.O universo. 5. Período ou intervalo de tempo. 6.local ou recinto, real ou virtual, destinado a alguma finalidade→ Espaço cultural ( Ximenes, 2000, p.390 )

Vimos por meio deste verbete que o termo espaço, vai além de ser simplesmente um lugar onde se caracteriza uma história, visto que este também se refere à distância, cultura, ao indefinido e delimitado etc. Contudopara Urbano o referido termo significa:

(...) ambiente, cenário ou localização, o espaço é o conjunto de elementos da paisagem exterior (espaço físico) ou interior (espaço psicológico), onde se situam as ações das personagens (2000, p.51-52).

Verificamos então que na citação supracitada que o referido termo ao nível de construções narrativas, consegue depreender de maneira mais explicita a real concepção do que seja a espacialidade dentro de uma obra literária, cujo ambiente é o fator principal no plano do enunciado.

Observamos outro excerto:

O espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas articulações funcionais que estabelece com as categorias restantes, mas também pelas incidências semânticas que o caracterizam. Entendido como o domínio especifico da história ( v.), o espaço integra, em primeira instância, os componentes físicos que servem de cenário ao desenrolar da ação(v.) e à movimentação das personagens(v.): cenários geográficos, interiores, decorações, objetos etc; em segunda instância o conceito de espaço pode ser entendido em sentido translato, abarcando então tanto as atmosferas sociais (espaço social) como até as psicológicas (espaço psicológico) (Reis e Lopes, 1988, p. 204)

Com isso percebe-se neste princípio outro conceito no que diz respeito ao significado da palavra espaço, o qual trata de uma forma mais ampla e menos ambígua dentro da função da narratividade. Sendo assim verifica-se que os autores divergem quando o assunto é conceituar de maneira unificada o vocábulo supracitado.

O autor D`Onofrio aborda esta temática de forma mais detalhada em que ele subdivide a espacialidade em horizontal condicionada que por sua vez é subdividida em: 1-tópico: É um local considerado seguro, ou seja, espaço de proteção, como por exemplo: "casa, quarto, cama, útero"(1995, p.98). 2- atópico: É um tipo de espaço em que o sujeito da ação não está mais tão seguro, passando assim a correr perigo, tal como assalto. 3- utópico: Este se detém em um lugar de porte idealizado na imaginação e no desejo do indivíduo, como por exemplo: habitar em uma sociedade onde não existe a miséria.

Outra característica que faz parte do espaço é a verticalidade a qual pressupõe: o divino/sobrenatural, o qual se refere a deuses, anjos celestes ou a seres que habitam em mundos subterrâneos, tais como: demônios, espíritos maléficos, entre outros.

Observamos então que a espacialidade é muito mais do que identificação de um ambiente ou cenário, temos que saber encontrá-la sim, porém os elementos que a constituem já nos permiti fazer interpretações significativas que vai muito além do que a simples codificação de um local. Devemos destacar o espaço como fator primordial como uma descrição da narrativa. Pois é através dele que tem conhecimento dos objetos que fazem parte do seu cenário.

Segundo D´onofrio o espaço interior/fechado consiste na subjetividade "do eu que fala o espaço da enunciação", já o espaço exterior/aberto "refere-se ao mundo dos objetos, ao relato" (1995, p.98). Constatemos que a primeira traz confissões das emoções sentidas pelo personagem que faz parte da história, a qual interliga-se a sentimentos o que podemser ou não reveladas. Contundo a segunda opção centraliza-se na descrição dos objetos, ou seja, relata todo o acontecimento não deixando de citar as coisas que havia num determinado local.

Entende-se que por espaço de ficção o local que constituem o cenário da obra, onde os personagens tornam-se sujeitos da ação passando assim a viver momentos e/ou situações que podem-lhes no enredo proporcionar sofrimento, luta, amores, por fim uma serie de fatos que estarão relacionados aos seus sentimentos, que por sua vez estará sendo relatada pelo narrador.

Vejamos a seguinte citação sobre as análises dos elementos espaciais:

"mais dócil que o tempo às exigências racionais do espírito, é um fator de inteligibilidade e um apelo ao conceito. É ele que impõe seu molde às coisas e as realiza, que permite ultrapassar a zona do sonho e a contemplação das virtualidades; é graça que ele que o mundo acede à existência e a objetivação. Mais seguro e mais eficaz, o espaço é suscetível de ser designado por palavras que podem conjurar e reprimir os poderes misteriosos; enquanto o tempo é promessa de morte, o espaço é o meio vital onde se encarna a nossa atividade (op cit D´onofrio,1995, p.99)

Neste excerto torna-se evidente que o espaço traz marcas importantes não somente para a obra literária em si, mas para todo e qualquer texto que tenha a finalidade de trabalhar de maneira ampla o ambiente que o compõe. Visto que este cenário é composto de fatos e ações que vão nos permitir identificar e compreender tais elementos que estão sendo utilizado de maneira que talvez possa ser considerada criativa a depender de seu contexto sócio-histórico, o qual poderá nos revelar a existência de determinados valores morais e éticos de uma época.

II- A SIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO NO CONTO A IGREJA DO DIABO

No conto a Igreja do Diabo do autor Machado de Assis relata o momento de fraqueza do ser humano, a qual por meio da espacialidade existente entre o dimensional e o não dimensional é dotada de significações consideradas metafóricas no que concerne a dualidade humana na escolha do livre arbítrio.

Para constatar uma das contradições humanas veremos a seguir uma citação retirada do próprio conto:

(...) colhido num naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade (Assis, p. 141-142)

(...) Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave a nova instituição. (...) Não há próximo! A única hipótese que lhe permitia amar o próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do individuo a si mesmo. (idem, ibidem, p.144-145)

Vimos por meio destas citações como o homem tem um leque de possibilidades, podendo escolher através do livre arbítrio, qual o caminho a seguir, seja ele para o bem ou para o mal. Mas esta é uma reflexão que pode nos levar a enveredar a outros caminhos, mostrando que o ser humano não é bom o tempo todo e denotando também que o mal não perdurará por muito tempo.

No que concerne a espacialidade, analisaremos o espaço de acordo com a sua verticalidade comparando com o divino ou sobrenatural. Podemos perceber nas citações supracitadas a relação de sentimentos encontrados no ser humano que são considerados o que há de melhor e o pior na humanidade, em que subentende-se, que um está acima do outro, assim como o bem estar num patamar que o faz superior ao mal.

Veremos de forma mais aprofundada a concepção de espaço no que consiste ao que é considerado alto e baixo:

Todavia os conceitos de alto, relacionado com os deuses superiores ou celestes, com as divindades benfazejas, e de baixo, referindo aos deuses do mundo subterrâneo, as divindades maléficas ou demônios. ( D´onofrio, 1995, p.97)

Trazendo para atualidade podemos comparar este excerto ao que concerne a bondade e a maldade, ou seja, a Deus e ao Diabo, pois a figura divina do pai celeste (Deus) está interligada a um ser que é por excelência superior a humanidade; entretanto o nome Lúcifer (Diabo) pressupõe inferioridade, deixando explícito, que a sua condição está abaixo dos seres celestiais.

Vamos nos atentar para outra citação:

Porque não teria ele a sua igreja? Uma igreja do diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destrui-las de uma vez. - Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão ( Assis, p.139).

Entretanto descrever o espaço dentro de uma narrativa se faz necessário, pois:

(...) a descrição do espaço físico é fundamental, porque os objetos são os verdadeiros atores de suas narrativas e são criados pelo próprio movimento da descrição, independentemente da ligação a uma personagem ou a um acontecimento. ( D´onofrio, 1995, p.98)

O que podemos observar nas citações supracitadas é que no momento de situar os acontecimentos dentro do foco narrativo, é preciso dar ênfase a espacialidade que está de forma patente, ou seja, o físico, pois por meio dele conseguimos identificar elementos importantes para compreendermos alguns acontecimentos que vão sendo relatados pelo narrador, e que se propõe a estar além de ser um simples pano de fundo, sendo assim este pode indicar qual é o objeto de desejo na história.

O conto em questão apresenta-nos espaços diferenciados a depender das situações encontradas na história, como Por exemplo: o espaço tópico que de acordo com D´onofrio denota segurança, pois isto fica em evidencia no conto, de maneira implícita, quando o Diabo se encontra nas "províncias do abismo". A partir do momento que este se retira do local, o qual fica subentendido que é o inferno, ele passa a viver no espaço atópico, ao sair de sua casa (inferno), este fica suscetível aos perigos mundanos. Porém quando passa a idealizar, ou seja, a sonhar com uma igreja diferente das que já existiam na terra, ele estará vivendo o utópico.

Segundo Massaud Moisés:

(...) a geografia do conto deve estar diretamente relacionada como drama que lhes serve de motivo: a paisagem vale como uma espécie de projeção das personagens ou o local ideal para o conflito, carece de valor em si, está condicionada ao drama em causa; não é pano de fundo( Moisés, 2003, p.108).

O excerto acima nos faz pensar e compreender de fato que a espacialidade, por mais simplória que esta possa ser, ela se faz fundamental no momento em que o narrador relata os objetos pertencentes ao personagem, pois pode também estar descrevendo o comportamento desta por meio da espacialidade existente na narrativa. Vejamos o trecho a seguir:

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma puxadas pela franja, deitavam a capa à urtigas e vinham alistar-se a igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhece-se, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo. Um dia, porém, logo anos depois notou Diabo que muitos dos seus fieis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas( Assis, p.145)

A citação acima afirma que o Diabo conseguiu fundar igreja com a qual tanto sonhara, porém o que ele não podia imaginar é que após anos de fidelidade os seus fieis iriam traí-lo, voltando a exercer algumas das antigas práticas de suas religiões passadas. É neste momento que ele se decepciona com seus seguidores e vai até o encontro de Deus para questioná-lo querendo saber o que tinha acontecido de errado, para que seus discípulos voltassem as práticas antigas. Em resposta ao questionamento abordado, Deus disse-lhe que o que estava acontecendo era "a eterna contradição humana"(idem, ibidem, p.146).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio deste estudo, tornou-se possível fazermos uma análise mais profunda do conto A igreja do Diabo, de Machado de Assis. Nesta história o autor retrata a dualidade do ser humano, visto que este quando tem a oportunidade de experimentar tudo o que lhe é proibido, não pensa duas vezes e vai de encontro ao pecado. No entanto torna-se patente a contradição do homem quando o mesmo adora a Deus e ao Diabo simultaneamente, onde o qual demonstra a metáfora da condição humana que parece estar oscilando entre o bem e o mal.

A igreja do Diabo não é o primeiro conto de Machado de Assis, porém é um dos mais famosos, nele é retratado a diversidade dos sentimentos humanos que por sua vez vivem em estado de conflito consigo mesmo, mostrando assim a dualidade de valores que se encontram em eterna indecisão no que se refere a prática virtuosa ou pecaminosa.

REFERÊNCIA BIBBLIOGRÁFICA

ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo IN de História sem data IN Seus trintas melhores contos. 10ª reimpressão da primeira edição. Rio de Janeiro: editora nova fronteira, s/d. p. 139-146.

D´ONOFRIO, Salvatore. Elementos estruturais da narrativa IN Teoria da do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1995, p. 153-154.

MOISÉS, Massaud.O espaço IN A análise literária. 14ª edição. São Paulo: Cultrix, 2003 p.107-110.

REIS, CARLOS E LOPES, Ana Cristina M. Espaço IN Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988, p.204-208.

URBANO, Hudinilson. Espaço IN Oralidade na literatura. São Paulo: Cortez, 2000, p. 51-52.

XIMENES, Sérgio. Minidicionário Ediouro da língua portuguesa. 2ª edição revisada e ampliada. São Paulo: Ediouro, 2000, p.390.