Ana Carolina Albarelli.[1]

Erwin Rodrigues Ricci.[2]

Sumario:

1. Introdução; 2. Uma sociedade excludente, 2.1. Teorias seletivistas e senso comum penal; 3. Leis penais seletivas, 3.1. Seletividade na elaboração, 3.2. Discurso justificador, 3.3. Seletividade na aplicação; 4. A seletividade penal; 5. Conclusão.

Resumo:

O presente trabalho tem como objetivo analisar primeiramente, e de maneira breve, a sociedade brasileira (estudar a sua formação, entendendo as suas desigualdades); e, posteriormente analisar, de maneira um pouco mais aprofundada, as normas penais, com a finalidade de constatar uma seletividade nas mesmas, para por final, concluir que de fato, o sistema penal brasileiro é seletivo.

Palavras chaves: Sistema penal seletivo; sociedade excludente.

1. Introdução

            A sociedade de hoje foi constituída por diversos acontecimentos históricos, estes, tenderam a aumentar o poderio de uma classe social, ou não. Destes acontecimentos, e dos benefícios e malefícios deles decorrentes, formou-se uma sociedade naturalmente desigual. Com o advento do capitalismo primordialmente, o abismo entre as classes sociais se fez maior.

             O crescimento desse abismo refletiu na organização estatal, e esta por sua vez,  também refletiu as diferenças da sociedade. Os métodos punitivos são completamente seletivos, os menos favorecidos são mais punidos, e os crimes típicos das classes altas, como os de colarinho branco, têm suas penas abrandadas.

2. Uma sociedade excludente

Em uma sociedade democrática de Direito (como há em vários países, teoricamente no Brasil também), tem-se o principio da soberania/vontade popular, onde a maioria (o povo) é detentora de todo poder; havendo assim a possibilidade de, usando o livre arbítrio, o povo escolher para si o que julgar melhor; havendo também, igualdade entre todos os cidadãos (pois, explicitamente, tem-se que todos têm a mesma importância no processo democrático).

Contudo, na nossa sociedade, tipicamente capitalista, devido a tal, ocorre uma acentuada desigualdade social. Onde a organização social-econômica (capitalista) se faz de tal forma, gerando dois pólos sociais: as elites (minorias quantitativas) que são detentoras do poder econômico, e conseqüentemente, seus benefícios; e os demais (o povo, a grande maioria quantitativa) que acabam por serem excluídos e marginalizados socialmente.

2.1 Teorias favorecedoras do seletivismo e formadoras do senso comum penal

No meio desse cenário de desigualdades, surgem discursos e pensamentos que, advindo das elites, atribuindo aos excluídos sociais uma criminalidade “potencial” e “inata” *. Tais argumentos utilizados pelas elites acabam por formar o senso comum penal. Esses argumentos são arbitrários, pois, como afirma Vera Andrade, “a criminalidade não “é” (não existe em si e per si), ela “é” socialmente construída.” '[3]

Tal constituição social desse status de criminoso, e a propagação de tal “etiqueta social”, se faz através dos processos nos quais as elites exercem influência aos demais, o povo. Dentre tais processos, o que se faz através da mídia é o que exerce maior dominação sobre o povo; perpetuando tais teorias elitistas e formando o senso comum penal.

O senso comum penal é basicamente o pensamento comum, onde é formado um estereótipo típico do criminoso. Acerca disso, Thompson descreve a seguinte situação:

Pedindo a uma pessoa que descreva a figura de um delinqüente típico, teremos em função da resposta, o retrato preciso de um representante da classe social inferior, de tal sorte que se tende a estabelecer o intercâmbio entre pobreza e crime. A teoria lombrosiana não teve outro mérito senão dar cunho científico a esse sentimento do senso comum. [4]

3. Normas penais seletivas

Nota-se que o sistema jurídico nacional está nas mãos de uma elite social, onde este é responsável por elaborar as leis para toda a população (de maneira a que todos sejam iguais, tenham os mesmos direitos e obrigações legais), com a finalidade de manter a ordem social de preservar os interesses comuns a todos.

...o direito penal deve cumprir um objetivo de segurança jurídica que não se diferencia, substancialmente, da defesa social bem entendida. (...) Portanto, também, o direito penal tem uma aspiração ética: aspira evitar o cometimento e repetição de ações que afetam de forma intolerável os bens jurídicos penalmente tutelados.[5]

Contudo, na pratica, vemos o contrario disso. Como reflexo de uma sociedade excludente, pode-se observar as normas, não como beneficiadoras do povo, e sim dos detentores do poder político (as elites sócio-econômicas); onde, por serem estes os elaboradores das leis, eles não as fazem com a finalidade de proteger o interesse e o bem comum, mas apenas os seus interesses particulares.

Segundo Baratta, o Direito Penal apresentaria uma tendência a

privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos de indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas.[6]

3.1. Seletividade na elaboração

Acerca disso, tem-se que na maioria das vezes, se faz criminalização e punição severa de determinadas condutas, próprias (é grande a probabilidade de tais serem cometidas) da população marginalizada, enquanto que as condutas (crimes) das elites, mesmo estando previstas no código penal, acabam por terem penas leves que são raramente aplicadas.

...determinadas classes ou grupos sociais desenvolvem estratégias de contenção ou neutralização das normas penais, quando estas podem afetar seus interesses de classes. Podemos citar o caso dos delitos econômicos, em que slogans como `economia de mercado’, ‘liberdade de imprensa’etc., às vezes são utilizados como pretexto, justificação ou escusa dos mais graves atentados aos interesses econômicos coletivos.[7]

Com isso, pode-se verificar que as normas penais já são feitas para determinado grupo social (há uma seletividade logo na sua elaboração); onde, como já dito anteriormente, os crimes com as penas mais severas são, na maioria das vezes, cometidos pela classe baixa; enquanto que, crimes com as penas brandas, são cometidos pela classe alta.

3.2. Discurso justificador

Um argumento utilizado pelas elites, é que, as normas penais estão defendendo os bens sociais de maior relevância, visando o bem comum e punindo determinadas condutas de acordo com a proporcionalidade que cada uma prejudica o bem comum.

Afirmando que, um sistema penal rigoroso, o nosso, está “tirando de circulação” ou punindo mais severamente indivíduos que apresentam risco para sociedade. E, perpetuando, o que para eles é o “bem comum”.

3.3. Seletividade na aplicação das normas.

Isso não se faz verdade. Na maioria das vezes crimes “próprios” das classes sociais mais baixas, apesar de serem menos prejudiciais à sociedade, são punidos mais severamente que os crimes “próprios” das elites, estes bem mais danosos, acabam por passar, na maioria das vezes, impunes ou com penas leves. Para confirmar e exemplificar tal seletividade, transcrevo parte do magistério de Amilton Bueno de Carvalho, onde ele afirma que:

(...) b) dirão alguns que a lei penal tipifica aqueles comportamentos que ofendem mais à moralidade média. Será verdade? Vejamos o que nos causa maior desagrado: a ofensa à honra (injúria), a ofensa ao corpo (lesão leve), ou a ofensa ao patrimônio (uma pessoa com grave ameaça que subtraia um relógio- roubo)? Evidente que a ordem de desagrado é em primeiro lugar a honra, após o corpo e depois o patrimônio. Quais as penas? Detenção de uma a seis meses ou multa (art. 140 do CP); detenção de três meses a uma ano (art. 129); reclusão de quatro a dez anos (art. 157), respectivamente. Surge uma questão básica: quem pratica o roubo, ou seja, a subtração de coisa móvel mediante grave ameaça? Evidente que é o pobre. Os outros dois delitos os não-pobres praticam, o de roubo não! Para quem foi feito o dispositivo legal com tamanha pena?

c) outro exemplo é mais chocante: imaginemos o mesmo delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em confronto com o delito de esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do CP). Os crimes são praticamente idênticos, só diferem que num o objeto é móvel, noutro é imóvel. Como valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quatro a dez anos, e este é de uma a seus meses. Pergunta-se: quem comete roubo de relógio? Algum latifundiário? Ora, a subtração de móvel é crime do pobre, o esbulho possessório é do rico. Logo, as penas são diferentes, absurdamente diferentes. Todavia, como atualmente o povo (= pobre) está invadindo terras, aparecem democratas preocupados com a segurança do país e propõem a elevação das penas do esbulho, o que por certo logo virá;

d) o pobre que não trabalha é contraventor, pois não coloca no mercado de trabalho a sua força para ser explorada (art. 59 da LCP). E o rico?[8]

4. Sistema penal seletivo.

Um crime contra o patrimônio privado (roubo de um relógio), que prejudica apenas uma pessoa, é punido mais severamente que o desvio de verbas públicas ou sonegação fiscal (crimes contra o patrimônio publico), que, apesar de não serem sentidos explicitamente pela população, retiram verbas que iriam para saúde, educação, assim, acabam por gerar milhares de mortes e perpetuar a condição de miséria existente no país.

Basta vermos o exemplo acima, alem da disparidade das penas, se faz claro que pessoas da classe alta dificilmente irão roubar relógios, enquanto que os da classe baixa, dificilmente irão desviar verbas publicas ou sonegar impostos.

Pode-se ver claramente uma tendência do sistema penal em não punir as pessoas "que não lhe são vulneráveis” [9], as elites. E punir severamente as pessoas de classes mais baixas; sendo que tais crimes não são proporcionais as penas aplicadas, uma vez que crimes que causam mais danos a sociedade, acabam por ter penas leves.

Conclusão

A seletividade do sistema penal não é algo que se faz apenas na sua aplicação (coisa que erroneamente se pode pensar); tal seletividade começa com a sociedade que irá elaborá-lo (o sistema penal), está também na sua elaboração (das normas penais) e se faz de maneira não menos violenta na sua aplicação.

E essa seletividade penal, protege uma pequena minoria da sociedade, e essa minoria, prejudica os demais, a população. Tem-se que os verdadeiros bandidos, os que através dos seus crimes são responsáveis por milhares de mortes, estão impunes; enquanto, a parte marginalizada da população é punida severamente, quando cometem crimes pequenos.

Bibliografia:

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. POR QUE A CRIMINOLOGIA (E QUAL CRIMINOLOGIA) É IMPORTANTE NO ENSINO JURÍDICO? Disponível em: < http://www.mp.ma.gov.br/ampem/artigos/Artigos2008/ARTIGO%20-%20VERA%20ANDRADE%20-%20ENSINO%20DA%20CRIMINOLOGIA.pdf> Acesso em: 16 de maio de 2008.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2a. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. 6 edição. Páginas 27-28. Lumem Juris.

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro : Achiamé, 1983.

MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e Controle Social. 1 edição. Páginas 25-26. Editora Forense.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

ZAFFARONI, E. Raúl e Pieraneli, J.H. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5 edição. Páginas 95-96. Editora Revista dos Tribunais.


[1] Aluna do curdo de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, UNDB.

[2] Aluno do curdo de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, UNDB.

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. POR QUE A CRIMINOLOGIA (E QUAL CRIMINOLOGIA) É IMPORTANTE NO ENSINO JURÍDICO? p. 03.

[4] THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro : Achiamé, 1983, p. 71.

[5] ZAFFARONI, E. Raúl e Pieraneli, J.H. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5 edição. Páginas 95-96. Editora Revista dos Tribunais.

[6] Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 165.

[7] MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e Controle Social. 1 edição. Páginas 25-26. Editora Forense.

[8] CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. 6 edição. Páginas 27-28. Lumem Juris.

[9] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. P. 40