2. Existência e a natureza do eu

A segunda meditação Descartes explica qual é a natureza da mente humana e segundo o filósofo ela é mais fácil de conhecer do que a natureza dos corpos. Surge também a primeira verdade, a própria existência. E a partir daí o filósofo começa a construir o seu próprio conteúdo da física apontando os primeiros elementos de conhecimento da natureza dos corpos.

2.1 A existência do eu (O encontro da primeira verdade)

Descartes durante a sua investigação e antes de supostamente considerar o ceticismo como a forma mais provável de entender o mundo o filósofo busca uma proposição indubitável para fundamentar à sua filosofia. A dúvida metódica passa exercer um papel fundamental ao colocar suspenso todo entendimento que havia apreendido sobre as coisas até aquele momento, inclusive a sua própria existência. Ao final desse intenso ato de duvidar o filósofo encontra sua primeira verdade no qual surge a célebre frase, "Eu sou, eu existo".

Da seguinte maneira, o filósofo inicia persuadindo a si sobre a sua existência. Retoma a hipótese do enganador (dúvida encontrada na primeira meditação), entende que as coisas não existam, que não tenha corpo e os sentidos o enganam a todo o momento. Contudo, conclui que, mesmo que alguém trabalhe para enganá-lo a todo instante a sua existência é certa, pois ninguém poderá enganá-lo sempre. O enganador pode induzir ao erro quanto quiser, mas não de maneira que não seja "nada", porque independente do que venha pensar, se está sendo enganado ou outra coisa qualquer, o seu pensamento atua livremente atestando a existência do seu ser.

Com isso, a célebre frase "Eu sou, eu existo" passa a resistir a todas as dúvidas, pois à partir do momento em que a existência do eu precede a dúvida do engano ou qualquer outro tipo pensamento, revela em si a sua existência.

A primeira proposição indubitável surge na obra Meditações Metafísicas com a frase, "eu sou, eu existo". Ao contrário da frase "penso, logo existo" encontrada na obra Discurso do Método. A primeira formulação emitida nas Meditações Metafísicas propõe colocar em segundo plano o pensar e enfatiza direto na dúvida para existência, ou seja, o que permite a existência de si é somente a dúvida autônoma com relação ao enganador independente do conteúdo a ser duvidado.

Descartes restabelece essa ideia, "eu sou, eu existo" no decorrer das meditações. Com o propósito de problematizar propõe o seguinte questionamento: Até quando possa o seu eu existir? O filósofo compreende que a existência de si se faz presente enquanto pensa livremente (dúvida), isto é, a existência de si precede a dúvida, pois o enganador não pode impedir que pare de duvidar.

Em relação a esse ponto da existência de si se fazer presente a partir da dúvida e não de outro aspecto fora do pensamento, Descartes responde claramente a Gassendi (empirista) a essa objeção. Para Gassendi o pensamento não se faz necessário para atestar a própria existência, isso poderia ser comprovada por qualquer atividade que envolva o ser, isto é, uma simples ação de caminhar comprovaria a sua existência, pela ação do movimento o ser perceberia o seu próprio corpo sendo controlado pelo seu pensamento. Descartes nega essa possibilidade, por exemplo, na ação de caminhar a imagem obtida pelo pensamento poderia decorrer de um sonho, pois aquilo que surge a partir dos sentidos poderia enganá-lo passando a não garantir claramente a ideia de existência de si. Assim, para Descartes a única coisa que para atestar a existência de si é o pensamento, independente se for uma dúvida do engano ou de qualquer outra coisa relativo ao pensar.

Portanto, podemos dizer que a argumentação cartesiana sobre a comprovação da existência de si se assemelha a argumentação de prova dos primeiros princípios, tais como: ambas não podem ser demonstradas e não podem ser derivadas de outra coisa, exceto o pensamento, por exemplo, se alguém tentar negar a própria existência isso resultaria em algo contraditório, pois na medida em que alguém imaginasse que não seria nada, em seguida já seria algo pela própria manifestação do pensamento. Desta forma, Descartes parte para construir suas bases da nova estrutura da ciência.

2.2. A natureza do eu (Corpo e alma)

Seria um erro acreditar que a dúvida cartesiana fosse à dúvida do ceticismo clássico, como seria outro erro considerar que os argumentos do ceticismo fossem contra o conhecimento sensível e uma mera cerimônia para o trabalho cartesiano. Descartes defendeu na experiência por meio do pensamento para conhecer algo, colocando em dúvida as bases da filosofia aristotélico-tomista, isto é, duvidar de todas as coisas especialmente que venham ou fazem parte dos sentidos. Conforme a teoria do conhecimento aristotélico-tomista, para conhecer algo há necessidade de partir da experiência dos corpos não há como conhecer do nada ou do próprio pensamento.

Descartes refuta essa ideia defendendo a existência de si independentemente dos corpos. Até a sexta meditação dedicará a derrubar as bases do empirismo mostrando que mesmo que os corpos não existam, pois tudo pode ser apenas um sonho ou um engano a mente mostra as verdades fundamentais sobre si e a matéria. Assim, do princípio de sua filosofia passa estar fundamentado no pensamento e por meio dele é que possamos conhecer as coisas.

Contudo, o filósofo durante a construção de sua ciência a partir da certeza da existência do eu extraída do pensamento traz uma inovação para a história da filosofia, porém quando pensamos sobre a tese de qualquer ato do pensamento ser indubitável isso já foi apresentado por filósofos anteriores na Idade Média. Então, o que se faz presente e inovador na filosofia de Descartes é o fato de construir um sistema filosófico tendo como ponto de partida o pensamento e poder conhecer as coisas independente da existência dos corpos. Assim, Descartes confronta suas descobertas com o empirismo e sustenta as seguintes ideias: a mente não é apenas conhecida independente dos corpos, mas é mais fácil conhecê-la do que os corpos; a mente é conhecida antes que os corpos (a origem do conhecimento se apresenta no pensamento); e a experiência dos corpos depende da natureza da mente. Na sua primeira etapa de contra argumentar o empirismo encontramos a natureza do eu independente dos corpos (a prova da existência de si pelo pensamento). E para isso Descartes duvida das opiniões tradicionais sobre aquilo que realmente lhe pertence, ou seja, o filósofo remete há algo corpóreo (matéria). Seguindo os passos dos empiristas Descartes encontra o que há de certo na sua natureza e que possa ser comum a qualquer outro corpo, por exemplo, perguntado sobre o que pertence a natureza do eu, antes de começar a duvidar Descartes atribui a si algumas naturezas corpóreas (membros sem função vital), um corpo sem vida, pois as funções vitais (sensitivas e intelectuais) estão relacionadas à alma, atribuições remanejadas da concepção aristotélica e aceitas como algo espontâneo na filosofia cartesiana. Declara ainda que, possa conhecer com distinção os corpos no qual suas características são apresentadas como: extensão, figura e algo móvel. Em Descartes aparentemente na altura da segunda meditação quando é postada a natureza do eu independente dos corpos por influência do gênio maligno, insinua ser impossível determinar a natureza do eu (essência), devido o grau das dúvidas a serem colocadas nas proposições e, assim passa a se contentar apenas com a prova de sua existência (existir a partir da dúvida). Mas isso não acontece, pois conhecendo a sua existência também passa a conhecer a sua natureza (essência).

A esse respeito, as categorias que orientam o raciocínio cartesiano concerne com a sua substância, algo que pode existir por si mesmo, porém não pode ser conhecida por si. Há necessidade de ter contato com os seus atributos que são inerentes à sua natureza, quando um ente existe por si mesmo independente do outro, o ente passa a ser a substância e as suas características permitem conhecer a sua natureza, por exemplo, ao pensar que eu existo e pensamento é apenas o pensamento, isso permite a conhecer a mim mesmo, ou seja, o pensamento é uma característica da minha existência (essência).

Assim, o conhecimento da existência do eu torna-se dispensável da presença do corpo, basta somente o pensamento, pois as atribuições nutritivas e sensitivas podem ser excluídas ao pensar que eu exista. O pensamento é o contrário, ele é indispensável para que eu exista, porque sem ele não posso provar sobre a minha existência. Surge então a constatação de que na natureza do pensamento é atributo principal do eu, pois ele é quem determina à minha existência.

2.3. É mais fácil conhecer o espírito que o corpo

A natureza do eu sob luz da concepção cartesiana foi verificada na ausência dos corpos, isto a tornou uma substância imaterial. Esta ideia serviu como base para refutar o empirismo no qual os corpos era a primeira coisa a ser conhecida e que o conhecimento da mente depende deles. Por exemplo, para o aristotélico a primeira coisa a ser conhecida são os corpos e esses corpos são conhecidos através dos sentidos. O contato produz uma ideia do material que promove o conhecimento intelectual e assim a sensibilidade passa a derivar em conhecimento.

A partir desse esquema o corpo passa a ser mais fácil de conhecer do que a mente, pois o conhecimento precede e condiciona o conhecimento da mente. E a mente passa a ser mais difícil e mais imperfeita de conhecer porque o conhecimento depende do ato em conhecer os corpos.

Contra essa tradição Descartes defende que o conhecimento dos corpos depende da natureza da mente, o filósofo fará uso de argumentos a partir dos corpos para apresentar uma nova perspectiva sobre a origem do conhecimento. Descartes utiliza um pedaço de cera e percebe as mudanças físicas ao aproximá-la do fogo e chega às seguintes considerações: para conhecer os corpos não necessita de experiências; os sentidos o engana; a verdadeira natureza dos corpos surgem pelo puro conhecimento (razão). Logo, o conhecimento não sensível está implicado a todo conhecimento do mundo e o conhecimento claro e distinto é de origem não sensível, ou seja, oriundo do próprio pensamento.

Segundo a experiência de Descartes o analisar o pedaço de cera retirada da colmeia ela oferece aos sentidos uma gama de características perceptivas e quando a aproximamos do fogo essas características se perdem. No final o mesmo sujeito sustenta que existe a mesma cera que antes havia algumas características sensíveis. Descartes chega às seguintes conclusões: a cera é a mesma, mas aquilo que se observa no pedaço de cera não se apresenta como anteriormente, assim, o juízo do corpo não se deve as suas características obtidas através da sensibilidade, mas da razão. Definir-se-ia a cera como um corpo externo, flexível e mutável. A características de flexível e mutável devido às infinitas formas que a cera pode apresentar no atual momento. Mais ainda, a flexibilidade e mutabilidade não são características experimentais dos sentidos, elas produzem percepções factuais limitadas, pois quando recorremos à imaginação é que saberíamos que a cera pode receber inúmeras formas e diferentes texturas, ou seja, mesmo que atribuíssemos características sensíveis à cera o conhecimento que venha ter é pelo conhecimento puro (razão).

2.4 O pensamento

Esse ponto é uma das grandes preocupações de Descartes, o pensamento constitui a essência do eu, por exemplo, problematizando sobre o que é o pensamento e a sua natureza? O filósofo encontra respostas pela negação dos corpos, inclusive o seu. Isso faz do pensamento algo imaterial e assim, passa a contribuir a sua ciência.

A natureza do pensamento pode ser concebida por duas maneiras. A primeira retrata uma aproximação encontrada de várias correntes filosóficas, em linhas gerais o algo incorpóreo (o espírito, a razão). A segunda, concebidas analiticamente, como um conjunto de atividades do pensamento, isto é, uma coisa que duvida que nega que afirma entre outras.

Algumas coisas como, por exemplo, o "conceber-se" apresenta como algo material e as outras coisas como o imaginar e o sentir necessitam dos outros corpos. Isto determina uma relação marcante entre o conhecimento puro com a imaginação e a sensibilidade, ajudando a compreender a natureza do pensamento, ou seja, uma relação entre o que realmente pertence ao pensamento, que não deriva da experiência, e o que transformado por ele, aquilo que o pensamento modifica (razão).

Com isso Descartes de um lado privilegia o entendimento, ou seja, a faculdade que os exercícios e conteúdos não necessitam da existência dos corpos. E por outro lado, segundo esta linha de pensamento entende imaginação e a sensibilidade não como à essência do pensamento, mas é o mesmo. O que simplesmente falar do pedaço de cera e das suas mudanças do fogo, a experiência de fato não acontece, mas as imagens são repassadas na mente por todo o processo.

Outro caminho apontado na série meditações define o pensamento é o que acompanha a consciência, ou seja, o pensamento segue todos os atos, independente ou não da existência dos corpos.

Portanto, os fundamentos antropológicos da teoria do pensamento cartesiano são estabelecidos na segunda meditação, tais como: a mente é uma substância independente do corpo, assim também do que é material pode ser independente da experiência; Descartes ressalta a independência do pensamento em relação às faculdades corpóreas; e chama os conteúdos do pensamento de ideias, diferente da concepção escolástica que trata do pensamento como "espécie inteligível" no qual o entendimento humano é formado a partir da experiência.

Referência bibliográfica:

SCRIBANO, Emanuela. Guia para leitura das meditações metafísicas de Descartes.Tradução: Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola. 2007.