A revitalização de centros históricos é um tema recorrente nas grandes cidades atualmente. Para conseguir atingir o objetivo de revitalizar na escala urbana, muitas vezes são feitas ações pontuais de recuperação de um patrimônio cultural edificado atribuindo a ele novo uso e visando com isso torná-lo âncora da transformação que se almeja no entorno, para que a partir de sua recuperação a cidade siga seu “curso natural” rumo à revitalização. Exemplo disso são as diversas ações já implementadas na região da Luz em São Paulo que buscam essa revitalização urbana baseada em determinados edifícios históricos e seus novos usos, pretende-se aqui analisar o papel da Sala São Paulo neste contexto e alguns dos desdobramentos ocorridos através dela durante o percurso rumo à revitalização da região como um todo. Para tal utilizou-se de pesquisas teóricas e revisões da bibliografia existente acerca do tema além de pesquisas a periódicos e noticiários.

A região da Luz em São Paulo é segundo Meza (2007) uma das que mais foi “objeto de projetos” nas últimas décadas, o que por si só “... já é um indicador de sua importância no contexto metropolitano”. Porém somente a partir dos anos 2000 através do Programa Monumenta, em parceria com o BID, é que se começa um processo de revitalização do local que apresenta resultados mais significantes quanto a retomada da região por parte de uma parcela da sociedade que o abandonara.

O local que fora um dos bairros mais aprazíveis de São Paulo e se desenvolveu em grande parte devido às ferrovias que o cortavam, a “The São Paulo Railway” e a “Estrada de Ferro Sorocabana”, construídas para auxiliar no escoamento da produção do café até o porto de Santos. Dessa forma em 1865 é construída a primeira estação da região, a da Luz, o que altera profundamente a dinâmica do bairro, que até então era basicamente rural, atraindo assim novos investimentos públicos e privados no entorno da estação e posteriormente em 1872 é inaugurada a primeira estação Júlio Prestes, para somente em 1925 ser projetada a estação existente hoje em dia, e que fora concluída somente em 1938, já no período em que o transporte por trens e a monocultura cafeeira estavam em declínio, o que afeta profundamente o bairro, sua estrutura econômica e a estação, é quando começa o declínio do bairro e pouco depois a estação é abandonada.

Aliados a estes declínios, começam o surgimento de cortiços, e a presença de prostituição, tráfico e uso de drogas, o que degrada mais ainda o bairro. As soluções para a mobilidade que se seguem como a implantação do metrô, a transformação da Avenida Tiradentes em uma via expressa e a criação das avenidas marginais aos rios, aliadas aos fatores sociais já expostos terminam por degradar ainda mais o bairro, que passa os anos 80 e entra os anos 90 como uma das regiões mais degradadas e abandonadas da cidade, e que passa a ser conhecida como cracolândia. É neste contexto que o então governador Mário Covas começa a pensar soluções para a revitalização do bairro, e concomitante a isso surge o Programa Monumenta, que viria a viabilizar financeiramente as intervenções pensadas, dentre elas a criação da Sala São Paulo na estação Júlio Prestes que será o tema abordado mais afundo neste artigo e sua participação direta na revitalização da luz.

O PROJETO MONUMENTA, A ESTAÇÃO JÚLIO PRESTES E A GENTRIFICAÇÃO NA REGIÃO DA LUZ

 O Projeto Monumenta que segundo José (2007) “... tem como objetivo oficial preservar centros históricos de importância nacional e aumentar as utilizações econômicas, culturais e sociais das áreas de intervenção” e que ainda “... baseia-se na idéia de que a recuperação do patrimônio deverá ser capaz de criar, via mercado, uma dinâmica de transformação urbana.”, foi implementado na cidade de São Paulo nos anos 2000 visando a recuperação da Luz, e é através do projeto que fica “...oficializado o discurso sobre a união entre cultura e transformação urbana.” (JOSÉ, 2007).

Uma das frentes de atuação do Monumenta na cidade de São Paulo foi a implantação de uma sala de concertos, a Sala São Paulo, na estação Júlio Prestes. A implementação de tal equipamento naquele local vinha de encontro com todo o contexto do local à época e a população que ali ainda residia, que era formada em sua grande maioria por pessoas de classes sociais mais baixas.

Na implantação da Sala São Paulo na estação Júlio Prestes, o imponente edifício construído à época pela Estrada de Ferro Sorocabana, teve seu grande hall de passageiros transformado em uma sofisticada sala de concertos com capacidade para 1509 pessoas. O projeto que começa a ser executado em 1997 preocupou-se prioritariamente com questões acústicas, uma vez que ela funcionaria contígua ao movimento de trens e todo o funcionamento da estação. Para minimizar tais questões usou-se de diversos artifícios técnicos de isolamento acústico e estrutural visando a proteção do ambiente, em seu interior foi instalado um forro móvel de placas acústicas para melhorar as condições de propagação do som. Após esta intervenção o local se consagra como um dos principais equipamentos culturais da cidade, segundo Meza (2007) e José (2007) nos fala ainda que “a construção da Sala São Paulo (...) foi aclamada como bastião da transformação urbana” e que “o glamour criado em torno da construção da sala de concertos (...) no interior de um edifício representativo da memória de um tempo de glória para o bairro e para a cidade, tornou-se o ícone da política de revitalização urbana do governo do Estado e a principal alavanca para a consolidação da idéia de pólo cultural”. Meza (2007) ainda reforça tais idéias dizendo que “os pesados investimentos realizados pelo estado na instalação do Complexo Cultural Júlio Prestes se justificavam na intenção de estabelecer um marco que irradiasse um processo de reabilitação do tecido urbano adjacente, caracterizado por concentrar habitações sub-normais e pontos de tráfico e prostituição”. Meza (2007) ainda fala que “no dia da inauguração, em julho de 1999 (...), na praça Júlio Prestes, houve enfrentamentos entre policiais, chamados para o dia em grande quantidade, e manifestantes, na maioria moradores da região, que mostravam sua indignação com as prioridades de investimento do governo, que construía salas de concerto enquanto a meio quarteirão dali muitas famílias se amontoavam em cortiços por falta de políticas habitacionais”.

Mesmo com os confrontos entre população local e policiais, os meses seguintes a implantação da Sala São Paulo foram noticiados pela grande mídia como esta sendo uma intervenção de sucesso, manchetes como “A ‘ressurreição’ do centro” (O Estado de São Paulo, 1999) ou “Sala São Paulo: esse monumento agora é do público” (Jornal da Tarde, 1999) falavam da intervenção como se ela tivesse atingido seu objetivo.

Porém Meza (2007) fala de seus insucesso ao afirmar que “(...) estes equipamentos de grande porte, ainda se relacionam melhor com o âmbito metropolitano que com seu entorno imediato, o bairro e sua comunidade. Apesar de ter atraído um número considerável de visitantes para a região, as intervenções não conseguiram ainda atrair investimentos significativos da iniciativa privada e nem dar indícios de um processo de transformação do tecido urbano a sua volta, como esperavam seus idealizadores”. Com isso fica claro como a implantação de tal equipamento dentro de uma comunidade que não irá “comprar” a idéia não é a melhor solução na busca para a revitalização do local, uma vez que a maior parte da população que interage com o local não é adepta ao uso proposto. Wisnik (2001) justifica tal insucesso dizendo que “(...) o Complexo Cultural Júlio Prestes, têm a intenção deliberada de isolar-se de seu entorno, de ser um enclave no meio da degradação que o rodeia. Uma demonstração disso é que apesar de estar num lugar de acessibilidade privilegiada na cidade, ele é dotado de um estacionamento na parte posterior ao edifício com capacidade suficiente para que todos seus convidados não tenham a necessidade de sair do prédio”.

Tozi (2007) nos diz que hoje “tornou-se função dos projetos de intervenção em sítios históricos preparar a cidade para o consumo visual através da estratégia de gentrificação (...)” e que isso vêm dos anos 1970 e 1980 quando “configuraram-se mundialmente dois modelos de requalificação de centros históricos: o modelo europeu, cujo foco da preservação é a inclusão social dos habitantes com o espaço urbano, e o modelo estadosunidense, que prioriza a valorização econômica das áreas centrais através da associação entre capital público e privado”. Ressalta ainda que no modelo europeu a “participação da comunidade torna-se o instrumento de valorização urbana e a garantia de sustentabilidade de preservação” ao passo que “o modelo estadosunidense foca o modo de vida e consumo das classes médias (...) combinando requalificação urbana com especulação fundiária promovida através da ‘recreação’ e do entretenimento; associando financiamento público e investimentos privados, essa proposta tem como objetivo a obtenção de benefícios econômicos, mesmo que impliquem a expulsão dos moradores”. Analisando-se tais afirmações de Tozi, percebe-se claramente qual influência sofrera o projeto de revitalização da Luz e a implantação da Sala São Paulo, observa-se ainda a clara intenção de desencadear um processo de gentrificação na região, isso é reforçado por José (2007) quando ela nos diz que “(...) na Estação Júlio Prestes, é prevista a segregação entre a população de baixa renda que vem da periferia com o novo equipamento cultural através de um grande painel de vidro” e que “(...) os investimentos do governo do Estado deveriam ser a prova necessária para atrair a credibilidade de novos investidores, figuras chave no processo de ‘recuperação natural’ que se desejava desencadear no bairro”. Ainda acerca da gentrificação que a Sala São Paulo impõe a região da Luz, Tozi (2007) nos diz que ela “(...) constitui um exemplar do modelo de intervenção onde o edifício se volta para os usuário ‘internos’, evitando a realidade das ruas do entorno, e compondo um contexto de gentrificação urbana”.

Após inúmeras pesquisas e revisões de bibliografias acerca do tema em questão, a revitalização através das ações de recuperação do patrimônio cultural edificado e seus novos usos, concluiu-se que, a utilização de tais edificações de grande valor histórico são poderosas aliadas nos processos de revitalização de centros históricos, desde que usadas e intervindas de maneira sábia. A intervenção em tais edificações devem ser feitas de forma que priorizem, valorizem e levem em consideração a população de seu entorno e seus anseios e necessidades, respeitando sempre ainda a tipologia construtiva e social do local, buscando com isso fazer com que população e patrimônio cultural se relacionem para juntos promoverem a requalificação de um dado espaço. Considerou-se a Sala São Paulo um exemplo de mau logro na busca da requalificação do entorno, uma vez que ela ignora por completo seu entrono e as atividades ali exercidas, bem como a população a sua volta, e ainda desencadeia um nítido processo de gentrificação e de mal estar da população local com o edifício, uma vez que esta não se sente como parte daquele espaço nem do seu uso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

JOSÉ K., Beatriz; A instrumentalização da cultura em intervenções urbanas na área central de São Paulo (1975-2000), São Paulo. 2007.

JOSÉ K., Beatriz; A popularização do centro de São Paulo: um estudo de transformações ocorridas nos últimos 20 anos, São Paulo. 2010.

MEZA M., Tatiana; Reabilitação da Região da Luz – Centro Histórico de São Paulo: Projetos Urbanos e estratégias de intervenção, São Paulo. 2007.

TOZI R., Desiree; O Programa Monumenta e as Políticas Públicas de Preservação do Patrimônio Cultural na Região do Bairro da Luz/ São Paulo, São paulo. 2007.