A rua sempre foi sinônimo de "selva", o lugar onde se está exposto a todos os perigos citadinos. Na rua você pode ser roubado, furtado, agredido e está exposto a doenças. Mas é na rua que se pode conseguir o sustento para manter o lar, o lugar sagrado de descanso, o lugar seguro, o lugar de proteção da "selva". No início do século XX, a rua também constituía um lugar perigoso, em especial para as mulheres. A sociedade do século XX se firmou em moldes machistas, que idealizavam para as mulheres uma posição honrosa dentro do lar. Era no recôndito do lar, que a mulher demonstraria suas virtudes, segundo o que se pensava na época.
Mas como as mulheres que dependiam de suas próprias forças para o sustento, iriam atuar, em meios a esta sociedade machista e elitista? Nas ruas, como era o relacionamento destas mulheres, entre si, e com a sociedade? Quais eram as profissões que essas mulheres exerciam?
Lina Maria Brandão de Aras em "Sob a pena da lei: mulheres pobres e marginais" cita que neste "espaço andrógino" da rua, no início do século XX, o privilégio era masculino. A presença feminina nas ruas deveria ser de forma bem discreta, quase como se fosse uma "extensão do próprio lar".
Os governantes promoveram uma "campanha de moralização", segundo nos mostra Lerice de Castro Garzoni no texto: "Raparigas e meganhas no campo de Santana: elementos para uma história social da prostituição no Rio de Janeiro", onde se promovia um ideal de civilização em que a instituição da família ocupava o lugar fundamental. Neste processo civilizador as mulheres deveriam ficar em casa e serem operosas nos afazeres domésticos.
Em meio à diversidade urbana do início do século XX, Sidney Chalhoub em "Cidade Febril", narra o episódio da destruição do cortiço "cabeça de porco", e mostra que se desenvolveram dois pontos fundamentais de como se passou a lidar com essa diversidade urbana: o primeiro é a construção da noção de que "classes pobres" e "classes perigosas", são duas expressões que descrevem basicamente a mesma realidade. O segundo refere-se ao surgimento da idéia de que uma cidade pode ser apenas "administrada" de acordo com "critérios unicamente técnicos e científicos". Esses dois pontos promoveram "conceitos estigmatizantes", que dão a possibilidade de ampliar a esfera de intervenção das autoridades públicas e comprimir a cidadania.
Em "trabalho, lar e botequim", Sidney Chalhoub, nos fala sobre como o trabalho ganhou uma valoração positiva de "ordem" e "progresso", e era a força que impulsionaria o país no sentido do "novo", da "civilização", de uma ordem social burguesa civilizadora. Ao mesmo tempo, este novo conceito do trabalho marginalizava as pessoas que por ventura estivessem fora deste mercado, mesmo que estas pessoas fossem honestas.
Em meio a este cenário de luta urbana, Aras, nos mostra que as mulheres também ocupavam espaço, tanto econômico, quanto social. Por exemplo, as "ganhadeiras" dependiam quase que exclusivamente, da circulação pelas ruas da cidade, em busca de compradores para suas mercadorias. Outras mulheres também perambulavam pelas ruas em busca de afazeres ou, ainda, para o oferecimento de seus serviços, como era o caso das prostitutas.
Analisando o censo de 1920, Aras, alista as profissões femininas da época como sendo: serviços domésticos, costuras e bordados, as chapeleiras, floristas, modistas, rendeiras, doceiras, quituteiras, etc. Algumas possuíam suas bancas nas feiras e mercados, ou em pontos estratégicos, nas principais vias de circulação, onde ofereciam seus produtos. Também trabalhavam nos açougues, na limpeza dos "fatos" e na venda dos "miúdos".
Garzoni mostra que a vida das mulheres, nas ruas, era em muito, tumultuada. Elas estavam diariamente nas delegacias por motivos diversos como: promoção de desordem, vagabundagem, algazarra. Também, Aras diz que as mulheres eram acusadas de: desrespeito à moral pública, desrespeito à autoridade, gatunagem.
Aras cita Ferreira Filho que comentou a passagem destas mulheres na imprensa por serem protagonistas de brigas por galinhas, discussões banais e bate-bocas de ruas, "ocupando costumeiramente as paginas dos periódicos locais" (p. 165). Os jornais também destacavam que mulheres de diversas "categorias profissionais", eram os personagens principais das mais diferentes formas de violência.
Contudo essas mulheres pobres conquistaram seu espaço de forma significativa, como nos diz Garzoni quando cita que as prostitutas se valeram do seu estigma profissional, para "acusarem guardas, agentes ou soldados, defendendo interesses ou perpetrando vinganças" (p.6). Mulheres simples como a "lavadeira Ângela", registrou queixa, e foi prontamente atendida pelos policiais. Essa movimentação causada pelas mulheres ameaçava os "projetos dos dominantes", na sua política de controle social. O fato, é que, como nos diz Alberto Heráclito Ferreira Filho, citado por Aras, "no contexto da cidade" as mulheres "venceram o desafio das ruas".
Muitas das mulheres da primeira metade do século XX, com certeza se enquadram na idéia de "amor fati" que Nietzsche discute. Para ele, o "amor aos fatos" era uma formula do amor pela vida como ela é. Envolve viver. Viver sem transformar os adjetivos, os estigmas, criados por uma classe burguesa, em deuses ou coisas parecidas. Para Nietzsche a vida não podia ser transformada em apenas uma questão de sobrevivência, pois agir assim seria caminhar de quatro junto a alguma ética, buscando um cardápio moral que deveria despencar de alguma mesa burguesa com suas idéias de superioridade.
Entendo que essas mulheres pobres não só sobreviveram, mas elas viveram, elas ocuparam espaço, elas reivindicaram seus direitos e perturbaram o mundo machista. As mulheres pobres, não transformaram suas vidas em algum tipo de fardo, para depois terem que ampliarem as regras para suportá-lo ou então ficarem sonhando com um mundo se fardo. Essas mulheres foram para o campo de batalha, a rua, e viveram para contar a história.