A RETÓRICA NO JULGAMENTO DE SÓCRATES:

como a arte de falar bem esteve presente na sua tese de defesa como réu

 

Rafaela Nascimento Dutra*

 

 

Sumário: Introdução; 1.Sócrates, o filósofo; 2. O conceito de conhecimento para Sócrates;3. Aacusação;4. Aretórica presente na defesa; Considerações Finais; Referências.

 

 

 

RESUMO

 

 

Sócrates, uma das exceções de sua época por estar muito tempo à frente de seus coevos, dedicava a maior parte de seu tempo à reflexão de temas relevantes ao cotidiano, ao indivíduo e à vida social, que eram discutidos na ágora. Dessa maneira, ele ia amadurecendo e aperfeiçoando conceitos de justiça, direito, cidadania e sociedade utilizando-se do poder da argumentação e da retórica. Suas ideias indicavam uma nova ordem social e toda nova ordem social implica em mudança de poder. Entretanto, o poder não deseja nem aceita a reforma do poder. Seus posicionamentos diferentes, mas baseados em uma lógica de raciocínio muito coerente colocava em cheque os demais parâmetros vigentes e, portanto se tornaram uma ameaça.

Palavras-chave: Sócrates, julgamento, retórica.

                                                                                 

 

*Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Ceuma – Campus Cohama

E-mail: [email protected]

Introdução

 

O julgamento de Sócrates é um dos acontecimentos mais importantes da história da humanidade por representar um modelo de posicionamento crítico equilibrado de um personagem diante do sistema político e social vigente em Atenas, na Antiguidade. Este pode ser considerado um marco para as sociedades seguintes com relação ao desenvolvimento de algumas ideologias como a da liberdade de expressão, do existencialismo, e de conceitos de virtude, moral e justiça.

A condenação de Sócrates, que na época culminou com a sua execução, foi considerada injusta por muitos cidadãos de sua época e ao longo dos tempos, porque ele foi acusado e considerado culpado pelas atividades profissionais que realizava livre e abertamente em seu cotidiano. E o que ele fazia? Ele praticava a filosofia e pregava aos jovens, exercendo portanto, apenas e simplesmente a nobre rotina de um professor.

 Deste modo, os que temiam a força de suas idéias recorreram a uma estratégia que em todos os tempos foi utilizada pelos tiranos, qual seja a de acusá-lo pelo crime de "subversão da ordem". 

Ao mesmo tempo, seu pensamento sólido e bem fundamentado lhe conferiam uma enorme confiança. Como alguém que vê a paisagem ao redor de um ponto mais alto, ele tinha a segurança de orientar os demais na trilha certa. Sua certeza indubitável impedia que ele voltasse atrás em suas convicções e, portanto, quando lhe deram a oportunidade de se retratar e de negar suas idéias, como alternativa de obter a absolvição, ele recusou.

Tinha noção inteira e o sentimento pleno de que seres humanos são essencialmente constituídos por suas crenças e princípios, portanto a morte do corpo se afigurava para ele como algo irrelevante perto da concretude das ideias. A morte do corpo não lhe causava temor e, ao contrário, a morte do espírito sim. Ele disse que os que o condenavam estavam apenas antecipando um destino para o qual os outros estavam também destinados.

A partir de então, uma parte da humanidade se dedica a lembrar à outra parte, que Sócrates foi injustamente acusado e que os seus algozes tiveram, na verdade, que criar pretextos para exercer esta condenação. A alegação de que estava corrompendo jovens foi a única possível com o mínimo de condição para convencer a opinião pública de que o poder constituído tinha razão em condená-lo. Assim, é natural que uma parcela da sociedade, ansiosa por justiça e empenhada em evitar a repetição do infortúnio, tenha despertado um vivo interesse em analisar esse acontecimento e refletir sobre as leis e a organização política vigente na Atenas de então.  

  1. Sócrates, o filósofo

 

Atualmente ainda paira um resquício de dúvida, por parte de alguns pesquisadores, com relação à existência de Sócrates. Esta dúvida provém da reflexão de que como um pensador, cujas idéias ainda hoje são consideradas de fundamental importância para a história da filosofia, não nos deixou qualquer registro escrito?

No entanto, esse fato real é considerado irrelevante pela maioria quando colocado diante das provas evidenciadas nos relatos sobre os discursos de Sócrates e, principalmente, sobre o seu julgamento que foram escritos por vários autores gregos contemporâneos de Sócrates ou que o sucederam, como Platão, Aristóteles, Xenofante e Aristófanes – registros que se constituem em testemunhos irrefutáveis de sua brilhante atuação oral.

Há, inclusive, notícias bem detalhadas sobre a sua origem familiar, cuja versão mais reconhecida é a de haver sido “filho do escultor Sofronisco e da parteira Fenareta. Viveu em Atenas entre os anos de 469 e399 a.C. e casou-se com Xantipa, com quem teve os filhos Lâmpocres, Sofrónisco e Menéxeno” (Kohan, 2003). Platão é o autor que descreveu com mais detalhes e emoção a personalidade de Sócrates e a sua atuação social em Atenas e, segundo Kohan (2003, p.24):

Platão compartilhou os últimos anos de Sócrates (tinha quase 30 anos quando este morreu); assistiu pessoalmente aos eventos que desencadearam sua condenação e morte. Escreveu as páginas mais belas e fez de Sócrates personagem de quase todos os seus diálogos. Nos primeiros, filósofo e discutidor incansável; nos intermediários, expositor de suas próprias teorias (as de Platão); nos últimos, apenas um interlocutor de homens mais sábios.  Seu testemunho é provavelmente o menos imparcial (se é que algo assim fora possível), porém também o mais interessante e filosófico.

A sua rotina, pelo que consta na obra Apologia, era a de praticar a filosofia através de discursos promovidos em praça pública (ágora) para aqueles que o desejassem ouvir. Temas relacionados à moral, aos princípios e à virtude eram apresentados sob diferentes aspectos a cada encontro com seus seguidores, mas Sócrates recusava-se a se autodenominar um pedagogo e a receber pagamento pela atividade de instigar os jovens a desenvolver suas próprias reflexões acerca dos valores essenciais a serem priorizados na vida de um indivíduo.

O fato de Sócrates ter se mantido longe da política foi uma estratégia para um questionamento contínuo das normas que vigoravam em Atenas e do conceito de justiça predominante, pois conforme registro de Platão na Apologia (1999, p.75):

E não vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; não há nenhum homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vós ou a qualquer outro povo, e impedir que muitos atos contrários à justiça e às leis se pratiquem na cidade. E não há outro caminho: quem combate verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum tempo, deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos.

Sócrates respeitava a lei e acreditava que “convinha mais correr perigo a favor da lei e com o que era justo, do que, por medo do cárcere e da morte, estar convosco numa decisão injusta” (Platão, 1999, p.75).

Contudo, o distanciamento e o desprezo pelos negócios do Estado caracterizaram-se como razão de um ressentimento coletivo que não compreendia o porquê de um cidadão, detentor de um grande conhecimento e de uma excelente retórica, conservar um papel tão “indefinido” na sociedade: não assumia a política, a pedagogia e nenhum outro ofício remunerado, tendo escolhido viver da ajuda de terceiros e na mais completa miséria. As razões pelas quais ele preferia não assumir as profissões de político ou professor são apresentadas, em uma análise pouco edificante de Stone (2005, p.88), como três possíveis motivos:

O motivo político tem a ver com a sua visão antidemocrática. A doutrina socrática segundo a qual “aquele que sabe” deve mandar e outros devem obedecer seria abalada se o conhecimento e a virtude pudessem ser ensinados. A razão filosófica está ligada à busca de certezas absolutas – definições absolutas da virtude e do conhecimento – o que levava Sócrates a constatar repetidamente que tais metas eram inatingíveis. O motivo pessoal talvez seja o fato de que os dois mais famosos alunos de Sócrates – o futuro ditador Crítias e Alcibíades, homem brilhante porém irresponsável – acabaram se saindo mal, sendo muito prejudiciais a Atenas. (grifou-se)

Outra justificativa importante e desta feita mais favorável a ele, para entender a escolha pela incessante atividade filosófica como o modo de vida adotado por Sócrates, foi a da vontade divina, pois como ele próprio definiu, uma voz demoníaca opôs-se desde cedo a que ele interviesse na política e, ao contrário, “o designou à cidade com a tarefa de despertar, persuadir e repreender cada um dos cidadãos, por toda a parte, durante todo o dia” (Platão, p.73). Esta razão de cunho religioso, inclusive reforça sua defesa, pois como Sócrates afirma que o Deus chama a sociedade a viver a filosofia, como poderia ter sido acusado de não acreditar nos Deuses da pólis?

  1. O conceito de conhecimento para Sócrates

A constatação de que o homem, apesar da sua mortalidade concreta, possui a possibilidade de se diferenciar dos outros animais através do registro de obras, feitos e palavras, provocou uma busca pela realização de ações mais perenes que pudessem se perpetuar na busca da imortalidade. Dessa maneira, houve uma intensificação na produção do pensamento humano sobre, dentre outros assuntos, a origem do universo, a missão do homem na terra e as causas dos fenômenos naturais, que podem ser exemplificados na tentativa de explicações demonstradas na mitologia.

A mitologia grega era bastante rica em detalhes, mas isso não significa dizer que a sua evolução resultou na construção da filosofia grega. É importante entender que esse era um tema habitual no cotidiano da sociedade ateniense, assim como outros temas comuns à pólis, a exemplo da política. A philo-sofia representava o desejo da sabedoria e a sua prática necessitava de um método pelo qual um pensamento era construído de maneira complexa, lenta e consistente.

Sócrates assumiu uma postura filosófica diante da vida, como já foi mencionado anteriormente, e o seu objetivo maior era a incessante busca pelo conhecimento. Apesar de tanto esforço em entender a vida, ele afirmava que “nada sabia”. E por quê? Qual seria o conceito de verdade e conhecimento para Sócrates?

O esclarecimento da sua afirmação pode ser encontrado na passagem da Apologia em que ele descreve o fato ocorrido a caminho de Delfos: “Xenofonte, indo a Delfos ousou interrogar o oráculo a respeito disso e perguntou-lhe se havia alguém mais sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio”. (Platão, 1999, p.61).

Essa consciência da própria ignorância não foi bem aceita pela sociedade, que ao contrário de a entender como uma postura de humildade diante da grandeza dos mistérios da existência, preferiu interpretá-la como um sentimento de soberba por parte de Sócrates. Dialético desde então, (Platão mesmo reconhece que aprendeu as técnicas da dialética com Sócrates), ele já aplicava o processo de desenvolver o pensamento por oposições e assim o seu próprio comportamento durante uma vida plena de reflexões tornara-se oscilante entre o discurso “de confessar sua ignorância ou confessar seu conhecimento” (1999, p.74 e 75):

Ele exorta seus concidadãos à virtude, mas afirma que é impossível ensinar a virtude. Identifica a virtude como o conhecimento, mas insiste que esse conhecimento é inatingível e não pode ser ensinado. Para completar, após fazer seus interlocutores se sentirem incapazes e ignorantes, Sócrates confessa que ele próprio nada sabe. Essa humildade absoluta começa a parecer uma forma de orgulho.

A idéia de um Sócrates que se utiliza da retórica para confundir e zombar dos outros está presente na obra O Banquete, de Platão. Após o discurso de Agáton sobre Eros e o amor, Sócrates utiliza-se das ideias apresentadas previamente pelo anfitrião para tentar demolir todo o seu raciocínio. Somente após a clara demonstração do aborrecimento de Agáton, é que Sócrates decide inventar um diálogo com Diotima, uma mulher de Mantinéia, para poder expressar livremente o que deseja.

Ao retomar o fato do oráculo, é possível deduzir que Sócrates realizou uma investigação com o objetivo de decifrar o enigma criado naquele momento. O critério de escolha de três grupos sociais atenienses para examinar seus conhecimentos aconteceu pela representação da classe a qual cada um dos acusadores pertencia, conforme descrito na Apologia (1999, p.65): “Os que insurgiram contra Sócrates: Meleto, Anito e Lícon: Meleto pelos poetas, Ânito pelos artífices e Lícon, pelos oradores”.

Todas essas classes eram representadas por homens que se autodenominavam sábios e eram reconhecidos na sociedade pelo seu suposto conhecimento. Os poetas, segundo Sócrates, apesar de discorrer sobre belos versos, “nada daquilo que faziam era por sabedoria, mas por certa natural inclinação, e intuição assim como os adivinhos e os vates; e em verdade, embora digam muitas e belas coisas, não sabem nada daquilo que dizem” (Platão, 1999, p.63). E da mesma forma acontecia com os políticos e os trabalhadores manuais.

Sócrates, após demonstrar que esses indivíduos pareciam sábios sem o ser e de provocar a ira de muitos, explica por que se considera o mais sábio dentre os homens, pois “nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas é tolo aquele que acredita saber alguma coisa, sem sabê-lo. Parece, pois que eu seja mais sábio do que ele nisso – ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei” (Platão, 1999, p.62).

Sócrates reconhece a sua ignorância diante do conhecimento, e segundo Kohan (2003, p.26):

Esse reconhecimento de não saber implica um certo saber que parece volta-se contra aquela afirmação de não saber. Todavia, não há contradição, uma vez que o que se ignora é um saber de respostas e o que se conhece é um saber de perguntas. Não há inconsistência na medida em que saber para um homem significa saber buscar e não saber possuir.

Através dessa lógica, Sócrates evidencia o motivo pelo qual assume uma postura questionadora diante da vida ao mesmo tempo em que promove uma busca incessante pelo conhecimento: ninguém consegue dominar plenamente todo o saber. 

                                                           

  1. A acusação

 

A principal acusação apresentada é a de que “Sócrates comete crime, investigando indiscretamente as coisas terrenas e as celestes, e tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando aos outros” (Platão, 1999, p.59). Além disso, o acusam de corromper os jovens e não considerar como deuses “os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas”.

É necessário compreender que essa acusação possui outras razões subentendidas. Sócrates, diante da corrupção e do caos político e social predominante em Atenas, promovia a luta pelo resgate dos valores morais, que já estavam completamente deturpados e se sustentavam numa completa desordem regularmente instituída. Destarte, cultivava a ira de muitas figuras públicas e poderosas, que desejavam manter estabilizada a ordem vigente.

Santo Agostinho apud Stone (2003. p.86) reconhece que os efeitos dos maravilhosos discursos promovidos por Sócrates tinha, em muitas vezes, um efeito de “frustrar ou mesmo irritar seus interlocutores” e, “na verdade, foi por esse motivo que ele criou inimizades, foi condenado por uma acusação falsa e punido com a morte”.

A acusação contra Sócrates configura-se também numa acusação contra a filosofia, que incomodava pelos seus questionamentos extremamente abstratos e moralistas. Na obra “O Banquete”, de Platão, percebe-se que o excesso de vinho e a promiscuidade sexual eram predominantes em reuniões promovidas com o objetivo de debater alguns assuntos considerados relevantes (os banquetes). No entanto, esse objetivo principal, muitas vezes, era desviado por causa das distrações oferecidas.

Ao contrário de todos os que discorreram sobre o tema do amor e de Eros, Sócrates sugere uma reflexão sobre o conceito de amor e o seu objeto, bem como sobre o surgimento de Eros. Nesse momento, mais uma vez, a diferença da sua personalidade e das suas idéias, quando comparadas aos presentes na reunião, é colocada em evidência.

A maneira de expor suas opiniões era considerada irônica e, durante o seu discurso de defesa quando afirmou que não sabia nada, provocou uma revolta nos presentes. De acordo com Stone (2005, p.109):

Sócrates usava uma espécie de “sabedoria” – sua sophia, sua arte de lógico e filósofo - para um fim político específico: o de fazer com que todos os notáveis da cidade parecessem tolos e ignorantes. A missão divina que, segundo o oráculo lhe impôs, seria, então, o que hoje denominamos de ego-trip – uma autoglorificação para Sócrates que implicava no aviltamento dos mais respeitados líderes da cidade. Desse modo, Sócrates abalava a polis difamava os homens dos quais ela dependia e alienava os jovens.

Os seus jovens seguidores acompanhavam essas atitudes do mestre e promoviam indagações frequentes aos seus concidadãos, fato que poderia ser considerado um indício de perigo para a ordem social, pois conforme registro na Apologia: “os jovens ociosos, os filhos dos ricos, seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-se examinar os outros; e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa, mas, pouco ou nada sabem”. E continua: “daí, aqueles que são examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles, e dizem que há um tal de Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens” (Platão, 1999, p.64).

A sua ausência na vida política da cidade de Atenas acrescentava mais antipatia pela figura de Sócrates, pois, num discurso proferido por Péricles, “os atenienses consideram o homem que não participa dos negócios públicos, não como alguém que cuida da sua própria vida, mas sim como um inútil” (Stone, 2003, p.129).

Destarte, cultivava a ira de muitas figuras públicas e poderosas, que desejavam manter estabilizada a ordem vigente.

  1. A retórica presente na defesa

O surgimento das cidades-Estado provocou uma nova finalidade para a retórica, a arte de produzir discursos primorosos, já que a necessidade de expor suas opiniões políticas era essencial aos cidadãos. Conforme Stone (2005, p.119):

                                                      

Os cidadãos, fossem eles a maioria ou a minoria da população, tinham que aprender a falar com clareza e argumentar de modo persuasivo a fim de proteger seus interesses na assembléia e nos tribunais. Uma certa proficiência em oratória e argumentação passou a ser necessidade política e prática, à medida que foi crescendo a participação dos cidadãos, com a evolução em direção à democracia.

A obra Apologia de Sócrates pode ser complementada com os diálogos de Críton e Fédon, que representam respectivamente, os momentos da defesa, da condenação, da tentativa de convencer o réu a fugir da prisão e da descrição do momento que antecede a ingestão da cicuta. Esse conjunto de registros emocionados pode ser considerado uma obra prima da retórica.

O diálogo de Sócrates com os juízes traduz uma relação impetuosa e tensa entre as partes. Apesar da sugestão, proposta por seus seguidores e pela sua esposa, de contratar um orador famoso como Lísias para defender-se e contestar as acusações sofridas (Sócrates, o filme), Sócrates preferiu elaborar a sua própria defesa, baseada na verdade dita de uma maneira mais simples, do que a utilização de um discurso excessivamente ornamentado, mas carente de valores éticos, como é possível constatar na passagem: “contudo, por Zeus, não ouvireis por certo, cidadãos atenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou adornados como os deles, mas coisas ditas simplesmente com as palavras que me vierem à boca, pois estou certo que é justo o que digo” (Platão, 1999, p. 57).

Apesar de o seu discurso estar caracterizado por uma criteriosa técnica de retórica, praticada durante muitos anos durante a sua vida social em Atenas, ele pode ter sido prejudicado por uma estratégia equivocada: a de evitar os rituais comuns a esse tipo de julgamento, como os elogios aos jurados e à sociedade ateniense em geral, e a de se apresentar como um sujeito diferente “dos profissionais de tribunais, oradores e retóricos, que têm convertido os julgamentos em jogos técnicos, mais ligados à estética que à ética, mais seduzidos pela utilidade que pela verdade” (Kohan, 2003, p.25).

Sócrates pregava a busca do preenchimento da alma com o conhecimento, a bondade e a justiça. De acordo com o sua opinião, “pensar é dialogar consigo mesmo” e esse pensamento deve ser desenvolvido criteriosamente, através da capacidade de discernir entre o certo e o errado, o bem e o mal, até que sejam atingidos os princípios que irão orientar a boa conduta.

Teria sido possível uma defesa que invocasse a liberdade de expressão, tão cultivada em Atenas, como propõe Stone (2003, p.236):

Se tivesse se defendido utilizando o argumento da liberdade de expressão, e invocando as tradições fundamentais de sua cidade, creio que ele facilmente teria conseguido fazer com que o júri vacilante se decidisse em favor da absolvição. Infelizmente, Sócrates não invocou o princípio da liberdade de expressão. Talvez um dos motivos pelos quais não adotou essa tática seja o fato de que, se nesse caso Sócrates saísse vitorioso, seria também uma vitória dos princípios democráticos que ele ridicularizava. Se Sócrates fosse absolvido, Atenas sairia fortalecida.

No entanto, a democracia de Atenas deve ser entendida de acordo com o contexto histórico e social da época e a liberdade de expressão talvez não fosse tão abrangente assim...

A postura revoltada de Sócrates com a sociedade ateniense da época poderia ser comparada a de muitos cidadãos que vivem nos dias atuais. Assim como na Atenas de Sócrates, o egoísmo predomina na sociedade contemporânea e, consoante Rosa (2007, p.108):

                                                                      

Deseja-se viver de acordo com as regras de boa coexistência ditadas por uma moralidade plena, porém, em algum momento, se é subjugado por impulsos individualistas e sombrios. Nesse instante, há sucumbência ao erro, às violações, à imoralidade, à criminalidade. Esquece-se nesta ocasião, dos outros e a única preocupação passa a ser a busca da satisfação dos próprios prazeres, dos próprios interesses e necessidades, sem nenhum cuidado se se está causando dor, desgosto ou prejuízo aos outros.

Se estabelecida uma reflexão sobre o sentimento de tolerância apresentado pela sociedade é possível se concluir por uma certa conformação da sociedade ateniense, que acaba aceitando a corrupção na política. Sócrates denunciava isto a todo o tempo através do recurso da utilização de metáforas provocativas. Ao aplicar esta situação no mundo de hoje, conclui-se que cabe a cada cidadão a análise sobre a postura da sociedade diante de problemas como a corrupção, a miséria, a destruição da natureza e de muitas outras questões tão sérias quanto estas.

Considerações Finais

Como vimos existem diversas explicações e razões para a condenação de Sócrates. Algumas favoráveis a ele outras nem tanto, mas há também boas razões para acreditar que, além das razões relacionadas ao conteúdo de sua pregação foi o método de sua retórica que mais irritou seus desafetos e que os levou ao veredicto da morte por ingestão de cicuta.

A partir do que foi explanado anteriormente, é amplamente identificável a proeminência da retórica em todo o episódio, até o desenlace da condenação de Sócrates. E no contexto da retórica a aplicação da dialética no discurso talvez tenha sido o elemento mais provocativo e causador de sua condenação. Naquele momento Sócrates inaugurava uma nova dialética, que compreendia fortes doses de ironia. Através da ironia ele questionava uma falsa cultura ou pseudociência, infligindo aos seus interlocutores uma imediata dúvida acerca do conhecimento que estes tinham das coisas, para em seguida criar as condições e o campo aberto para a introdução de novas idéias. Dizia mesmo que seu método consistia em parir idéias, à semelhança de sua mãe, que paria crianças. Para Platão, a dialética é o movimento do espírito que marcha para a verdade, movimento cujo símbolo ele deu na célebre alegoria da caverna.

Estes posicionamentos aparentemente contraditórios, e que confundiam seus interlocutores, quando interpretados não na totalidade e completude de seu brilhante método de raciocínio, mas de maneira curta e fragmentada, foram de toda forma ardilosamente utilizados contra ele mesmo, que por sua vez preferiu não abrir mão nem de seus princípios e nem de seus métodos de argumentação.

Homem por definição e caráter de sua inteligência, essencialmente afeito a se expressar através da fala, Sócrates se realizou plenamente pela oratória e encarnou a essência que estava antes de tudo contida nas palavras que são a manifestação mais direta que emana da criativa fonte do espírito. Uma verdade universal que encontra referência em grandes livros de sabedoria da humanidade: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (Antigo Testamento).

Foi coerente com sua natureza e provavelmente por sua grandeza tornou-se insuportável para seus coevos aos quais restou a indigna e inútil tarefa de tentar eliminá-lo da face da terra.

REFERÊNCIAS

 

                

CRÍTON, Walter Omar. A certidão de nascimento da filosofia. Uma leitura da Apologia de Sócrates, de Platão. Revista Humanidades, Brasília, n.50, p. 22-35, set.2003.

FÉDON, Walter Omar. A certidão de nascimento da filosofia. Uma leitura da Apologia de Sócrates, de Platão. Revista Humanidades, Brasília, n.50, p. 22-35, set.2003.

KOHAN, Walter Omar. A certidão de nascimento da filosofia. Uma leitura da Apologia de Sócrates, de Platão. Revista Humanidades, Brasília, n.50, p. 22-35, set.2003.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução: Jean Melville. 3 ed. São Paulo: Martin Claret, 1999.

PLATÃO. Banquete. Tradução: Jean Melville. 3 ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.

ROSA, José Humberto. Valores morais e o sucesso no exercício profissional do direito. Cadernos UNDB, São Luís, n.2, p. 97-114, 2007.

SÓCRATES. Direção de Jean-Jacques Annaud. Intérpretes: Jean Sylvère, Anne Caprile, Beppe Mannaiuollo, Ricardo Pallacios, Emilio Miguel Hernandéz e outros. Itália: Versátil, 1971. DVD (120 min), Dolby digital 5.1. color. Produzido por: Versátil.

STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. Tradução: Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.