A constitucionalização do meio ambiente, no mundo, se intensificou a partir de 1970, no entanto a 1ª Constituição Brasileira a tratar de maneira direta da questão ambiental foi a de 1988. Esta seguiu a tendência mundial ao erigir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, não havendo dúvidas de que é um bem juridicamente relevante.

Há vários dispositivos ao longo do texto constitucional que apresentam valores ambientais, no entanto a Constituição dedicou um capítulo, composto apenas pelo art. 225, ao meio ambiente, estando localizado na parte da “Ordem Social”, no capítulo VI do Título VIII. No § 3º do referido dispositivo, o constituinte inovou ao prever a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, que assim dispõe:

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. (grifo nosso)

O constituinte brasileiro seguiu o movimento internacional ao responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas pelo cometimento de crimes ambientais, pensamento difundido, principalmente, através de congressos internacionais. Esse movimento se intensificou após a Primeira Guerra Mundial, quando o Estado passou a ser mais intervencionista e quando as empresas ganharam força no cenário econômico, passando a serem as principais violadoras das determinações estatais. [1]

O art. 3º da lei 9.605/98, por sua vez, regulamentou tal responsabilidade, dispondo que “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.

Segundo Luiz Regis Prado, o legislador brasileiro se inspirou no Direito Francês para formular os referidos dispositivos, no entanto o fez de modo incompleto, posto que só enunciou a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sem prevê os meios de instituí-la, pois não descreveu as formas de aplicação das penas, nem estabeleceu normas processuais.

Embora haja previsão constitucional e infraconstitucional, a questão é, ainda, controversa. Os doutrinadores se dividem quanto à interpretação que deve ser dada ao dispositivo constitucional. Há, basicamente, quatro correntes interpretativas.

A 1ª corrente que irei abordar defende que A responsabilidade penal da pessoa jurídica é incompatível com o direito penal brasileiro.

Um dos argumentos centrais consiste na incapacidade de ação dos entes coletivos.

Para analisar esse ponto, se faz necessário lembrar as teorias sobre a natureza jurídica desses entes. Há várias classificações, no entanto, estas possuem em comum a presença das teorias da ficção e das teorias da realidade, que se contrapõem. Em síntese, as teorias da realidade, como o nome sugere, trazem a ideia da realidade do ente coletivo, sendo seres dotados de existência própria, com vontade autônoma em relação às pessoas naturais que a compõem, e que possuem personalidade jurídica, o que lhe faculta adquirir direitos e obrigações.

Klaus Tiedemann se filia à corrente que afirma que a pessoa jurídica tem capacidade de ação, pois, se as corporações podem firmar contratos, sendo as responsáveis pelas obrigações advindas desse negócio jurídico, e se podem descumpri-las, podem também agir antijuridicamente.

Já as teorias da Ficção defendem que as pessoas jurídicas têm existência fictícia, irreal ou de pura abstração, sendo incapazes de delinqüir, pois carecem de vontade e de ação. [2]

Caio Mário critica essa última teoria por não se adequar a mais importante dessas pessoas que é o Estado

Portanto, os defensores da incapacidade de ação das pessoas jurídicas fundamentam suas teses em uma das teorias da ficção, no entanto estas caírem em desuso, sendo as teorias da realidade adotadas majoritariamente entre os civilistas (Orlando Gomes[3] e Caio Mário[4]).

Outro ponto central da discussão é a culpabilidade. Seus defensores utilizam o conceito tradicional, fundado numa reprovação psicológica. Por outro lado há os que utilizam um conceito social de culpabilidade.

Defendida por Tiedmann, a Teoria da culpabilidade organizacional adota o conceito social de culpabilidade, possibilitando a incriminação do ente coletivo. De acordo com essa teoria, o critério da culpabilidade por defeito das organizações é decorrente de uma conduta omissa por parte da própria empresa, visto que, se tal omissão não houvesse ocorrido, poder-se-ia ter evitado o cometimento do delito. Haveria uma substituição do conceito psicológico de ação por um conceito normativo ou funcional, responsabilizando a pessoa jurídica por condutas praticadas por seus representantes. [5]

Seguindo essa linha de pensamento, no REsp 610.114/RN, o Ministro relator Gilson Dipp, em seu voto, concluiu pela impossibilidade de atribuir a culpabilidade clássica à pessoa jurídica, porém ressaltou que atualmente há um novo conceito de culpabilidade advindo de uma responsabilidade social que se aplica ao ente coletivo. Neste contexto, surge uma forma de culpabilidade de natureza coletiva.

Discute-se, ainda, uma suposta violação do princípio da legalidade ou da reserva legal.

Dele advém o subprincípio da taxatividade, que, segundo Cezar Roberto Bitencourt, exige que a norma contenha a descrição hipotética do comportamento proibido e a determinação da correspondente sanção penal, com alguma precisão, como forma de impedir a imposição a alguém de uma punição arbitrária sem uma correspondente infração penal. [6]

Vladimir e Gilberto Passos de Freitas defendem que essa estrutura nem sempre seria possível em matéria de Direito Penal Ambiental. Isto porque as condutas que colocam em perigo o bem ambiental podem ocorrer de várias maneiras, não sendo possível uma descrição direta e objetiva. [7] Para eles não seria possível querer no crime ambiental a simplicidade existente nos delitos comuns. Por exemplo, o homicídio tem a descrição mais clara possível: matar alguém. Mas isto jamais será possível em um crime de poluição, cujas formas são múltiplas e se modificam permanentemente. [8]

                     O Ministro Gilson Dipp, relator no Recurso Especial 610.114/ RN, se referiu ao tema alegando que as sanções previstas na lei 9.605/98 estão relacionadas na Parte Geral da norma e não nos próprios tipos penais, o que tem suscitado diversas críticas na doutrina, diante da dificuldade que pode decorrer para a aplicação prática, em face da necessidade de se realizar uma espécie de integração com a Parte Especial. Essa imprecisão técnica, porém, não seria novidade no ordenamento penal brasileiro. Outras normas contariam com o mesmo defeito, mas teriam sido adaptadas e aplicadas eficazmente. 

Ao que parece, as normas penais ambientais nem sempre podem ser precisas ao descrever a conduta criminosa frente à sua natureza e às suas peculiaridades.

A aplicação do princípio da pessoalidade da pena ou da intranscendência da sanção penal às pessoas jurídicas também causam divergências.

Parte da doutrina afirma que ao responsabilizar a pessoa jurídica a sanção penal estaria transcendendo à pessoa natural que praticou a conduta antijurídica, pois a punição do ente moral atingiria, indiretamente, empregados, dirigentes, sócios minoritários e acionistas que foram contra a decisão da assembléia que implicou na prática do crime ambiental. Esse argumento não deve ser considerado, visto que a sanção penal, ao gerar os reflexos que lhes são inerentes, sempre atinge, mesmo que indiretamente, terceiros. É o que ocorre quando uma pessoa é presa e seus dependentes sofrem com os reflexos do encarceramento. [9]

Em verdade, o referido princípio veda que alguém seja responsabilizado diretamente por um crime que não cometeu, tendo em vista ser comum os reflexos negativos da imposição da pena atingir terceiros, não sendo adequado interpretá-lo de forma tão restritiva.

Os defensores da incompatibilidade da responsabilização penalmente das pessoas jurídicas com o direito penal brasileiro alegam, ainda, que o direito penal deve seguir os princípios da subsidiariedade e da intervenção mínima (ultima ratio), devendo ser utilizado, apenas, quando as sanções civis e administrativas não forem suficientes, pois seriam mais eficientes e menos gravosas.

Vladimir e Gilberto Passos de Freitas[10], por sua vez, atentam para o fato do Direito Penal ser um importante instrumento na proteção do meio ambiente como bem jurídico socialmente relevante, posto que, na maioria das vezes, as sanções administrativas e civis não são eficazes na repreensão das agressões contra este. Concluem ser a sanção penal necessária em determinadas situações, tanto em função da relevância do bem protegido, quanto da sua maior eficácia dissuasória. Os referidos autores defendem que o Direito Penal mínimo não deve ser aplicado às infrações ambientais devido aos danos graves e imensuráveis que podem ser causados pela degradação do meio ambiente.

A 2ª corrente de interpretação do dispositivo constitucional que iremos analisar defende a aplicação da Teoria da dupla imputação ou do Ricochete, segundo a qual é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica, desde que haja uma imputação simultânea da pessoa jurídica e da pessoa natural que atua em seu nome e em seu benefício.

Para seus seguidores, não seria possível denunciar a pessoa jurídica de modo isolado, posto que sempre haveria uma pessoa física corresponsável. Segundo essa teoria, caso não seja identificada a pessoa física autora do verbo do tipo ou haja sua exclusão do polo passivo, deve-se trancar a ação penal por inépcia. Luiz Flávio Gomes[11], Luiz Regis Prado[12] e Hélio Mamede Frota[13] são alguns dos defensores dessa teoria.

Veremos adiante que esse foi o entendimento esposado pelo STJ até pouco tempo atrás, tendo este tribunal se curvado ao entendimento mais recente do STF sobre o tema.

Outra corrente afirma que é plenamente possível a responsabilização penal da pessoa jurídica no caso de crimes ambientais porque assim determinou o § 3º do art. 225 da CF/88, ainda que não haja responsabilização de pessoas físicas.

Para eles, o referido dispositivo constitucional não condiciona que pessoas físicas sejam, obrigatoriamente, denunciadas para que haja responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Esta corrente é seguida, dentre outros, por Vladimir e Gilberto Passos de Freitas, que argumentam que a intenção do legislador foi criminalizar as pessoas jurídicas independentemente das pessoas físicas, tendo em vista que na maioria absoluta dos casos não se descobria a real autoria do delito, tornando a norma ineficaz. [14]

Para Hitala Mayara “condicionar a aplicação do art. 225, § 3º, da Carta Política a uma imputação também à pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, pois o constituinte originário expressou não apenas a vontade de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental.” [15]

Esse é o entendimento adotado atualmente pelos nossos tribunais superiores. Veremos mais detalhadamente, quando da análise da evolução jurisprudencial sobre o assunto, que o STF já segue essa corrente há algum tempo e que o STJ se filiou a ela recentemente.

                Para os seguidores da quarta e última corrente, Os infratores pessoas físicas estariam sujeitos a sanções penais e os infratores pessoas jurídicas a sanções administrativas e civis.

Interpretam que o termo “conduta”, que depende do agir humano, indica que somente o ser individual poderia ser responsabilizado criminalmente. Já as pessoas jurídicas, por não apresentarem conduta, mas mera “atividade”, responderiam na esfera cível e administrativa. Juarez Cirino dos Santos é um de seus seguidores. [16]

Essas são as 4 correntes de interpretação do dispositivo constitucional.

Passemos à análise da jurisprudência dos tribunais superiores.

Nos julgados mais antigos, tanto o STF quanto o STJ não aceitavam a tese de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica. Ambos os tribunais mudaram de entendimento e começaram a aplicar a teoria da dupla imputação, passando a entender a responsabilidade penal à luz de uma nova responsabilidade, dita social, ao invés da responsabilidade penal na forma tradicional baseada na responsabilidade individual subjetiva. Nesse sentido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma, EDcl no REsp 865.864/PR, Rel. Min. Adilson Vieira Macabu, julgado em 20/10/2011; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma, REsp 889.528/SC, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ 18/6/07).

O STF modificou mais uma vez seu entendimento sobre o assunto. A 1ª Turma do STF, RE 548181/PR, rel. Min. Rosa Weber, julgado em 6/8/2013, entendeu que é admissível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão responsável pela prática criminosa, indicando a superação da teoria da dupla imputação.

No caso em comento, os dirigentes responsáveis pelas supostas condutas criminosas foram excluídos da ação, e, por isso, o STJ decidiu que a pessoa jurídica também deveria ser, obrigatoriamente, excluída do processo, extinguindo-o. O MPF recorreu e a 1ª Turma do STF que, por maioria, cassou o acórdão, pois considerou que a tese do STJ afrontava o art. 225, § 3º, da CF, visto que tal dispositivo não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica à identificação ou à manutenção da pessoa física na relação jurídico-processual.

Portanto, o STF reconheceu a possibilidade constitucional de responsabilização penal da pessoa jurídica independentemente de punição conjunta com a pessoa física.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça também modificou mais uma vez seu entendimento sobre o assunto, acompanhando o posicionamento firmado pelo STF. Já haviam precedentes esparsos do próprio tribunal sobre a mudança de entendimento (RHC 53.208-SP, Sexta Turma, DJe 1º/6/2015; HC 248.073-MT, Quinta Turma, DJe 10/4/2014; e RHC 40.317-SP, Quinta Turma, DJe 29/10/2013). Em julgamento recente, a Quinta Turma do STJ, no RMS 39.173-BA, de relatoria do Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 6/8/2015, reafirmou a mudança de entendimento:

No presente caso, a denúncia foi feita e recebida contra a pessoa física e contra a pessoa jurídica, no entanto a pessoa física foi absolvida sumariamente, prosseguindo a ação apenas contra a pessoa jurídica. Diante da situação, argumentaram a necessária exclusão da pessoa jurídica do processo, invocando a teoria da dupla imputação. O STJ baseou-se no precedente do STF, rejeitando a argumentação.

Concluímos que, embora existam quatro correntes doutrinárias sobre a interpretação que deve ser dada ao § 3º, do art. 225, da CF, nos parece clara a vontade do constituinte brasileiro em responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas pela prática de crimes ambientais, sendo esta também a visão dos nossos tribunais superiores. A questão maior está na regulamentação da matéria, dada pela Lei 9.605/98, que é deficitária.

Para solucionar esse problema é imprescindível uma adaptação dos institutos penais tradicionais, que foram criados sob a perspectiva do indivíduo, à realidade da pessoa coletiva, bem como a criação de dispositivos processuais que possibilitem sua aplicação prática. Essa adaptação dos institutos penais, no entanto, deve ser realizada com cautela, sem deixar de lado os limites necessários à segurança do direito penal e sem sacrificar os direitos e garantias fundamentais conquistados ao longo da história.



[1] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 21.

[2] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

[3] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 169.

[4] MÁRIO, Caio. Instituições de Direito Civil. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, v. 1, p. 257-158.

[5] TIEDMANN, apud GOMES, Luiz Flávio (Coord.) Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias no direito penal (Coleção Temas Atuais de Direito Criminal – v. 2). São Paulo: Revista dos tribunais, 1999, p. 232.

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, v.1, p. 53.

[7] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes Contra a Natureza. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 36.

[8] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes Contra a Natureza. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 36.

[9] FROTA, Hélio Mamede. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Revista da EJUSE, Nº 18, 2013, p. 214.

[10] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes Contra a Natureza. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 31-32.

[11] GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral: teoria constitucionalista do delito. São Paulo: RT, 2004, v. 3, p. 97.

[12] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 155.

[13] FROTA, Hélio Mamede. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Revista da EJUSE, Nº 18, 2013, p. 203.

[14] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes Contra a Natureza. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 70.

[16] SANTOS, Juarez Cirino dos. As idéias erradas do professor Lecey sobre a criminalização de pessoas jurídicas. Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro: Revan, v.9, n. 14, p. 257-268, 2004, p. 258.