A RESPONSABILIDADE DO PLANO DE SAÚDE POR ERRO MÉDICO: a (in)existência de relação entre o defeito do serviço de saúde complementar e a culpa médica[1] 

Karen Pollyana Araujo

Tereza Lisieux Gomes Martins[2] 

Sumário: Introdução. 1 Responsabilidade civil médica no CDC. 2 Erro médico: o fato do serviço de saúde complementar e a culpa médica. 2.1 Culpa médica: pressuposto para a responsabilização do médico. 2.2 Peculiaridades da responsabilidade do plano de saúde por erro médico. Conclusão. Referência. 

RESUMO

O presente artigo propõe um exame, pautado em jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça, acerca da responsabilidade de empresas de assistência médica pelo fato do serviço decorrente de erro médico, asseverando a natureza objetiva do dever de reparar da operadora, independente da comprovação de culpa do profissional liberal credenciado. 

PALAVRAS-CHAVE:

Direito do Consumidor. Plano de Saúde. Erro médico. Responsabilidade. 

INTRODUÇÃO 

Não obstante a possibilidade de prestação suplementar do serviço de saúde pela iniciativa privada - art. 199, da CF -, a saúde é matéria pública e está adstrita à tratativa constitucional e legal da atividade econômica, especialmente no que tange à regulação das relações consumeirista em que pese apontar a cogente observância à Política Nacional das Relações de Consumo a resguardar o consumidor quanto a “dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo”.

Obstante, a ocorrência de danos à consumidores-segurados é ilustrada pela multiplicidade de demandas judiciais indenizatórias, situações em que o homem médio, contratante de plano de saúde - por vezes, em meio a percalços financeiros - contrai serviço de saúde complementar face à insuficiência do serviço público de saúde e depara-se com situações abusivas e danosas, que atentam contra a relação de confiança e boa-fé da relação de consumo.

Nesta seara, a emergência do tema responsabilidade civil dos planos de saúde quanto à eventual erro médico de profissional conveniado deve ser pautada pelos ditames do Código de Defesa do Consumidor, por tratar-se de uma relação essencialmente consumeirista, viabilizando ao paciente-consumidor uma proteção frente ao profissional liberal e aos demais fornecedores, especialmente as operadoras de planos privados de assistência médica.

Contudo, diversos são os desdobramentos desta relação entre erro médico, culpa médica e fato do serviço de saúde complementar, a ensejar a responsabilização dos fornecedores. Tais questões perfazem os objetos específicos deste exame, pautando-se a análise em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Este breve panorama será tratado no texto em duas partes: o tópico primário versará sobre a responsabilidade civil médica e a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Na abordagem seguinte, o destaque será para a relação - ou inexistência desta relação - entre o fato (defeito) do serviço de saúde complementar e a culpa médica, no que tange à responsabilização dos integrantes da cadeia, destacando em subitem a responsabilidade solidária em face da cadeia de fornecedores e as peculiaridades da responsabilização (objetiva) das operadoras de plano de saúde por erro médico. 

1 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA NO CDC

Responsabilidade civil é matéria adstrita à seara civil, ilustrada nos arts 927 a 965 do Código Civil. Leciona Pablo Stolze (2010, p. 51) que este instituto consiste no dever de reparação que se “deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator ao pagamento de uma compensação pecuniária à vitima”, comportando em seu bojo três elemento necessários à sua caracterização, quais sejam, a conduta (omissiva ou positiva), o dano e o nexo de causalidade, sobre os quais o ordenamento jurídico adota majoritariamente a teoria objetiva da culpa, ou seja, a relevância do elemento culpa para fins de responsabilização.

O delineio proposto neste estudo não alcança o exaurimento da matéria, mas o fito de tratá-la de maneira especializada: a responsabilidade civil médica é tema que transborda ao Código Civil, alcançando os ditames protetivos da Política Nacional de Relações de Consumo e, portanto, a inafastável aplicação do Código de Defesa do Consumidor, haja visto a relação de consumo que se estabelece entre paciente-consumidor e médico-fornecedor[3].

Nestes termos, a responsabilidade por erro médico vincula-se ao regime de responsabilidade pelo fato (ou defeito) e vício do serviço, conforme exegese do art. 14 e 20, CDC, e denota afronta ao dever de qualidade pela manifestação de um “defeito capaz de frustrar a legitima expectativa do consumidor quanto à utilização ou fruição” (DENARI, 2007, p. 183).

Oportuno é frisar que o Superior Tribunal de Justiça aponta para a proteção aumentada ao consumidor-titular de planos de saúde: notória a massificação destes contratos, aos quais se filiam cerca de 39,1 milhões de brasileiros (OLIVEIRA, 2008, p. 58), ao grupo de fornecedores incube a “boa-fé extremamente qualificada”, denotada no especial dever de qualidade do serviço - quanto à informação, cooperação e cuidado – e na interpretação mais favorável ao consumidor (MARQUES, 2002, p. 400).

Desta feita, em compasso com jurisprudência do STJ, a nomenclatura “responsabilidade civil médica” abrange a toda a cadeia de fornecedores – conforme a reger-se-á pelo código de defesa do consumidor -: a prestação de serviços médicos, propiciados por profissionais liberais, por instituição hospitalar, por operadoras de planos de assistência privada à saúde, ou por quaisquer pessoas que figurem como fornecedoras na relação de consumo (MIRAGEM, 2007, p.53).

Enquanto o legislador consagrou no Código Civil a responsabilidade civil subjetiva, o microssistema consumeirista resguarda o consumidor adotando a responsabilidade objetiva, como regra. Contudo, da exegese do art. 14 § 4º, CDC, compreende-se uma ressalva ao sistema de responsabilização objetiva: ao profissional liberal será imputado o dever de reparação pelo dano apenas quando da verificada de culpa (RIZZATO, 2010,p.395). Em termos de erro médico: apenas a aferição de culpa médica constitui fundamento ao dever de reparação pelo médico.

Este breve cenário, aliado à solidariedade na cadeia de fornecimento engendra a objeto crucial desta análise: a “contraposição” entre a regra de culpa médica e o fato do serviço de saúde prestado pela operadora de plano de saúde é matéria, em termos de natureza jurídica da responsabilidade civil de cada fornecedor.

 

2 ERRO MÉDICO: O FATO DO SERVIÇO DE SAÚDE COMPLEMENTAR E A CULPA MÉDICA

A “ampliação” do rol de legitimados passivos em ações indenizatórias por erro de profissional liberal de Medicina por serviços prestados em conseqüência de planos privados de saúde para abranger as operadoras destes planos é casuística jurisprudencial sustentadora da aplicação irrestrita do CDC, perceptível na multiplicidade de demandas em que os serviços de assistência médica são prestados indevidamente, denotando, por vezes, o fato do serviço.

São julgados como o emblemático e pioneiro REsp 138059/MG, reproduzido em diversos acórdãos da Corte, ementado assim:

CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. Quem se compromete a prestar assistência médica por meio de profissionais que indica, é responsável pelos serviços que estes prestam. Recurso especial não conhecido.

Os desdobramentos desta responsabilidade engendram questionamento profícuo quanto à natureza desta responsabilidade, perfazendo eixo central o seguinte questionamento: à operadora de plano de saúde aproveita a regra da responsabilidade subjetiva do profissional liberal que contrata?

2.1 CULPA MÉDICA: PRESSUPOSTO PARA A RESPONSABILIZAÇÃO DO MÉDICO

Conforme mencionado anteriormente, a verificação de culpa é pressuposto para a imputação de responsabilidade civil de profissionais liberais, in caso, de médico.

 Na prestação de serviço de saúde, o profissional liberal médico deve observância ao cumprimento de uma série de deveres específicos, sendo estes, segundo Bruno Miragem (2007, p. 60) “(...) identificados em três grandes grupos, quais sejam: os deveres de informação e esclarecimento; os deveres de técnica e perícia e os deveres de cuidado, diligência e prudência[4]”.

Neste diapasão, a identificação da falta de prestação de um ou mais deveres estabelecidos ao médico é necessária para a comprovação da culpa médica[5], e sua devida imputação de responsabilidade por danos. Constitui, pois o a configuração do ato doloso, ou culposo, exigência da espécie de responsabilidade civil subjetiva.

Outra querela prevista na doutrina brasileira versa sobre a distinção entre culpa médica e erro profissional. Esclarece Bruno Miragem( 2007, p.77), ao citar Cavalieri Filho, que,

 a culpa médica supõe uma falta de diligência ou de prudência em relação ao que era esperado de um bom profissional escolhido com padrão; o erro é a falha do homem normal, conseqüência inelutável da falibilidade humana. E, embora não se possa falar em um direito ao erro, será este escusável quando invencível à mediana cultura médica, tendo em vista as circunstancias do caso concreto.

Portanto, nem toda hipótese de erro médico será pressuposto para a caracterização do dever de indenizar do profissional médico que o cometera. Para tanto - convém ratificar o que já fora aludido - necessária a comprovação de culpa do agente.

Contudo, possível será a responsabilização civil médica do plano de saúde.

2.2 PECULIARIDADES DA RESPONSABILIDADE DO PLANO DE SAÚDE POR ERRO MÉDICO

Oportuno é transcrever o que ensina Claudia Lima Marques (2002, p. 417) acerca dos contratos de assistência à saúde:

São contratos de cooperação, regulados pela lei 9.656/98 e pelo Código de Defesa do Consumidor, onde a solidariedade deve estar presente, não só enquanto mutualidade (...), mas enquanto cooperação com os consumidores, (...), enquanto organização do sistema para possibilitar a realização de expectativas legitimas do contratante mais fraco. (grifo nosso)

A prestação de serviço médico opera-se dentro de uma cadeia de fornecimento complexa, na qual a conexidade entre fornecedores se dá por “rede de contratos”– repetição sucessiva e constante de contratos com o mesmo objeto - com o fito de, através da cooperação, efetivar-se um fim específico e comum aos sujeitos participantes, qual seja, a saúde complementar remunerada (MARQUES, 2001, p. 334 e ss).

Neste sentido, o recorrente argumento de defesa pela exclusão das operadoras de saúde do pólo passivo das demandas indenizatórias por erros de médicos credenciados, alinhavada na aplicação do art. 14, § 3º, do CDC - elevando de forma deturpada a causa de excludente de responsabilização objetiva por culpa exclusiva de terceiro (o médico) -, representa afronta ao elemento cooperatividade, assinalado pela autora, bem como à solidariedade na cadeia de fornecimento do serviço médico.

De fato, são estes os principais fundamentos para a responsabilização (objetiva) da seguradora por erro médico, de forma desvinculada à existência de culpa médica: à responsabilização da empresa de assistência à saúde não aproveita o “benefício” do art. 14, § 4º, do CDC, tampouco à exclui da seara de agentes do dolo sofrido pelo consumidor-paciente.

Em outros termos, a responsabilidade do médico, profissional liberal, subsumir-se-á à culpa médica pelo erro, enquanto, de maneira independente, a responsabilidade da operadora do plano privado de assistência à saúde será de natureza objetiva.

O mais recente acórdão sobre a matéria (REsp 1133386/RS), ilustra esta tese ao transcrever trecho de acórdão anterior (Ag 885446/SP):

[...] A empresa locadora direta dos serviços médico-hospitalares, quando credencia médicos e nosocômios para suprir a deficiência de seus próprios serviços, acaba por compartilhar as responsabilidades civis dos profissionais e dos hospitais que selecionou. Evidentemente que a medida de sua culpa deve ser avaliada no processo, mas inegável que a responsabilidade, no caso, é solidária, podendo o prejudicado escolher, entre os co-responsáveis, aquele que irá responder pelos prejuízos sofridos. [...] Embora a responsabilidade do fornecedor seja objetiva (Lei 8078/90, artigo 6º, inciso VI) é fato que o serviço só não será tido por defeituoso se a culpa for do consumidor ou de terceiro.

Assim, o regime deve ser diferenciado para médico e seguradora, o que se depreende da interpretação dos arts. 14, § 4º, 25, § 1º - “havendo mais de um responsável pela acusação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas sessões anteriores” -, restando ainda o direito de regresso entre os partícipes da cadeia de fornecedores, conforme art. 7º, parágrafo único, CDC.

 

CONCLUSÃO

Ao ensejo de conclusão objetiva deste exame, pontuais são as seguintes inferências:

a)   Massiva é a jurisprudência superior em afirmar a solidariedade das operadoras de plano de saúde em casos de responsabilização de médico credenciado por erro.

b)   Em caso de erro médico, a constatação do nexo de causalidade entre o serviço de saúde complementar e o dano – para fins de responsabilização da seguradora – não pressupõe a culpa médica.

c)   É possível a hipótese de desqualificação da ação do médico como ato ilícito, e sua exoneração quanto à responsabilidade pelo erro médico, subsistindo, contudo, o dever de reparação à operadora de plano de saúde, mediante responsabilização objetiva pelo erro médico.

d)   Assevera-se ainda à possibilidade do consumidor demandar apenas a operadora de plano de saúde em ação indenizatória por erro de médico credenciado pela empresa. São circunstancias não exaustivamente tratadas em sede doutrinária, mas facilmente verificáveis em sede jurisprudencial.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1133386. Relator: Onildo Amaral de Mello Castro. Brasília, 17 de junho de 2010.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.138059. Relator: Ari Pargendler. Brasília, 13 de março de 2001.

GALIANO, Pablo Stolze; e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. v.III. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva , 2010.

GRIOVOVER, Ada Pellegrini et tal. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentados pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. rer. ampl. e atual. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002.

MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil médica no direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, n.63.São Paulo: Revista dos Tribunais, jul-set/2007.

NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 5. ed, revisada ampliada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010.

OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Lei de Planos de Saúde (lei9.656/98):dez anos depois. Revista de Direito do Consumidor, n.67.São Paulo: Revista dos Tribunais, jul-set/2008

 


[1] Trabalho apresentado à disciplina Direito do Consumidor em 2010.2.

[2] Acadêmicas do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[3] Os fundamentos da caracterização da relação de consumo não constituem objeto desta abordagem, mas importa frisar que são irrefutáveis e que pacífica é a jurisprudência do STJ em considerar que o contratante de plano privado de assistência à saúde é consumidor. Neste sentido, Claudia Lima Marques transcreve trecho de um caso emblemático – Resp 267530/SP, julgado em 2000: “a operadora de serviços de saúde que presta serviços remunerados à população tem sua atividade regida pelo CDC, pouco importando o nome ou a natureza jurídica que adota”. In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. p. 399.

[4] O Código de Ética Médica dispõe em capitulo especifico sobre a Responsabilidade Profissional, elencando em diversos artigos as condutas passíveis à qualificação de ato ilícito (no sentido de descumprimento de deveres), a ensejar o dever de reparação. Em suma, todas as condutas tipificadas, representam espécies destes três gêneros de deveres médicos, citados pelo autor.

[5] Cabe esclarecer a cisão já sobrepujada em marco de critérios para a atribuição da responsabilidade médica, qual seja a distinção ou identidade entre o conceito de culpa ordinária e culpa profissional, incidindo a primeira na falta de deveres, que pudessem vir a calhar, a qualquer pessoa; e a segunda, versa na ausência de comportamento especifico do profissional, em sua área de atuação. Todavia, na há de se investigar sobre a espécie de culpa, ou como esta se caracteriza em certos casos, pois, a compleição da culpa por si só enseja a responsabilidade subjetiva. In: MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade Civil Médica, p. 77.