INTRODUÇÃO

 

Uma das maiores dificuldades para aquele que acaba de entrar no curso de Direito é compreender e se adaptar ao fato de que no Direito muitas palavras que usamos no dia a dia não têm o mesmo significado com o qual estamos adaptados.

Mais ainda, dentro do próprio Direito as palavras podem vir a ter significados diferentes. Assim, a linguagem jurídica está carregada de verdadeiros conceitos e não de simples significados.

Nesse trabalho nos deparamos exatamente com essa situação. No Direito de Família encontramos verdadeiro conceito de culpa que, a priore, apresenta-se diferente daquele utilizado na responsabilidade civil, qual seja, a inobservância de um dever de cuidado previamente imposto pela ordem jurídica.

Logo, para realização do objetivo deste trabalho, qual seja, analisar a repercussão da culpa no direito de família, necessitamos deixar de lado aquele “simples” conceito de culpa utilizado nas lições de responsabilidade civil para podermos adentrar naquele que o legislador utiliza no Código Civil ao imputar a “culpa” da dissolução da relação conjugal a um de seus membros.

Mais interessante ainda foi encontrar o ancestral comum dos dois conceitos através de outra ciência que não a jurídica: a Psicanálise.

Assim, verificamos a mutabilidade das relações sociais que não são devidamente acompanhadas pelo legislador, deixando a cargo da jurisprudência e da doutrina a análise das inúmeras situações que surgem com a transformação da sociedade e dos indivíduos.

A ORIGEM DA CULPA NO DIREITO DE FAMÍLIA

 

 

É sabido que até a proclamação da República, em 15 de novembro de 1989, não havia separação entre o Estado brasileiro e a Igreja. Para esta, o casamento revestia-se da indissolubilidade, somente podendo ser desfeito em situações excepcionais.

A Igreja Católica, por meio do Direito Canônico, há vários séculos, instituiu a noção de culpa no casamento, em vista do cometimento do pecado original por Adão e Eva, que foram expulsos do paraíso. O casamento, para a Igreja, é eterno, um sacramento, portanto indissolúvel, não sendo tolerada, em decorrência, a separação do casal. O divórcio canônico era admitido em raríssimos casos, como adultério, abandono ou sevícia, isto é, quando do cometimento de ilícito penal. Em decorrência desse Direito Eclesiástico, surge o chamado princípio da culpa, como forma de manter edificado o casamento, que somente poderia ser desfeito mediante a comprovação de um culpado, que deveria ser punido.1

 

Foi com ainda sobre a influência dessa recente separação que o legislador do Código Civil de 1916 acolheu ainda a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Somente em 1977, com a promulgação da Lei 6.515, e após muita luta contra a pressão da Igreja que permanecia contra a dissolubilidade do vínculo conjugal, admitiu-se a dissolução do casamento por outra causa que não a morte.

Entretanto, pondera Alice de Souza Birchal2, que a relutância de alguns congressistas em aprovar a referida lei fez com que aqueles que a defendiam adotassem sistema dúplice, diferenciando as formas e os efeitos da separação e do divórcio em dois estágios, onde aquela apenas suspende alguns dos efeitos da sociedade conjugal, preservando válido o casamento, e este dissolve o vínculo jurídico do casamento.

Afirma a autora que, além da influência da Igreja, um dos motivos pelos quais se relutava em aceitar a dissolubilidade do casamento era o temor de que a esposa, extremamente submissa ao marido, não se sustentasse após o divórcio. Assim, esse contexto histórico-social fazia com que se acreditasse que o divórcio traria um grande caos social.

Logo, a adoção do sistema dúplice, da separação/divórcio, visa resguardar materialmente os membros da relação conjugal, já que se suspendem alguns efeitos do casamento (regime de bens e dever de fidelidade) mantendo-se outros (mútua assistência).

“Adotar a teoria da culpa foi outra grande idéia dos idealizadores da dissolubilidade do casamento civil, no Brasil. Segundo ela, só seriam permitidos a separação e o divórcio litigiosos se um dos cônjuges fosse culpado, motivando o rompimento do casamento, por ter ele praticado atos que infringissem quaisquer dos deveres do casamento (fidelidade e mútua assistência)”.3

A teoria da culpa, incluída pela Lei do Divórcio e conhecida como separação sanção, implicava em verdadeira sanção civil que recai sobre o cônjuge culpado por ter infringido algum dos deveres impostos pelo casamento.

A TEORIA DO DESAMOR

 

Como se sabe, a sociedade se transforma e com ela se transforma (ou deve se transformar) o direito. A mulher no século passado galgou seu espaço na sociedade brasileira, desde a conquista do direito ao voto até a igualdade constitucionalmente assegurada em 1988. Pelo Código Civil de 1916, a sociedade conjugal era dirigida pelo homem com colaboração da mulher, que era considerada relativamente incapaz. Birchal4 afirma que a constituição de 1988, ao trazer a igualdade entre os cônjuges, contribuiu definitivamente para que a teoria da culpa começasse a ser questionada entre os aplicadores do direito, afinal, a igualdade leva à independência de cada um dos cônjuges, mesmo na vigência da convivência.

Assim, passou-se ao questionamento da culpa desenvolvida no contexto histórico-social da sociedade de 1970, introduzida pela lei do divórcio, frente à Constituição de 1988, que garante os direitos à liberdade, intimidade da vida privada, igualdade, etc. Rodrigo da Cunha Pereira, apud Birchal, afirma que “no caso específico da culpa pela dissolução do casamento, não é diferente da idéia de vingança ou crueldade. Entretanto, o imperativo ético não deveria ser este. Aquele que rompeu deveres do casamento, sendo infiel, por exemplo, talvez seja o traído e não o traidor.”5

Welter6 adverte para o que chama de paradoxo existente no ordenamento jurídico brasileiro, que aceitou a laicização do Direito Estatal, afastando-o do Direito Canônico, que entende indissolúvel o casamento, ao introduzir o divórcio no país, mas que, por outro lado, não aceita a laicização, a abolição da culpa na dissolução das entidades familiares na fixação dos alimentos, na adoção do nome de casado(a), na perda dos bens e da meação ao cônjuge enfermo, que não houver pedido a separação judicial.

Eis então o que impõe a legislação brasileira: aceita-se a dissolubilidade da relação conjugal, desde que haja consenso entre os cônjuges ou que um deles haja incorrido na tão citada culpa (descumprimento de um dos deveres conjugais), além da espécie separação remédio.

Devido aos inconvenientes apontados pela doutrina7 que tal situação gerou, desenvolveu-se a Teoria do Desamor. Segundo esta teoria, é incabível a investigação da culpa do suposto cônjuge que teria dado fim ao vínculo conjugal, em respeito ao direito à intimidade, pois a causa última da falência da sociedade conjugal seria o fim do afeto, que é elemento indispensável a toda e qualquer entidade familiar. Conclui-se que “aquilo que aparentemente é causa da separação pode ser a conseqüência ”8.

Segundo Birchal, “o desamor passou a ser uma das causas possíveis para se sustentar o pedido de separação e de divórcio”. Conclui a autora que

ao contrário destas conquistas sociais e jurídicas, o Código Civil de 2002 retrocedeu e trouxe a culpa, tanto como causa de separação judicial litigiosa-sanção (art. 1.572, caput) como para fixação dos alimentos (arts. 1.694, § 2º, e 1.704, parágrafo único), e ainda como determinante da perda do direito de usar o nome (art. 1578, caput). Infelizmente, apesar de a doutrina e a jurisprudência negarem a teoria da culpa com veemência, o Código Civil de 2002 a confirmou, em flagrante atraso científico.9

 

Por tais razões, no Projeto de Lei 2.285/07 que tramita no Congresso Nacional, que institui o Estatuto das Famílias,

privilegiou-se o divórcio, como meio mais adequado para assegurar a paz dos que não mais desejam continuar casados, definindo em regras simples e compreensíveis os requisitos para alcançá-lo. Evitou-se, tanto no divórcio quanto na separação, a interferência do Estado na intimidade do casal, ficando vedada a investigação das causas da separação, que não devem ser objeto de publicidade. O que importa é assegurar-se o modo de guarda dos filhos, no melhor interesse destes, a fixação ou dispensa dos alimentos entre os cônjuges, a obrigação alimentar do não-guardião em relação aos filhos comuns, a manutenção ou mudança do nome de família e a partilha dos bens comuns.10

 

 

 

RESPONSABILIDADE CIVIL ENTRE OS CÔNJUGES

 

Sabe-se que o descumprimento dos deveres decorrentes do casamento, bem como da união estável, elencados nos arts. 1.566 e 1.724 do Código Civil, pode gerar a dissolução do vínculo conjugal (ou união estável) e outras conseqüências, entre elas o reconhecimento da “culpa”. Todavia, tema amplamente discutido e controverso na doutrina e jurisprudência brasileira, é sobre a responsabilidade civil entre os cônjuges decorrentes do descumprimento dos deveres conjugais, já que o ordenamento jurídico pátrio nada dispõe claramente sobre o tema.

Em princípio, falemos um pouco sobre os pressupostos da responsabilidade civil.

A pedra angular da responsabilidade civil encontra-se no princípio neminem laedere (a ninguém é dado causar prejuízo a outrem). Estabelece o art. 186 do Código Civil que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Com base neste artigo, conclui-se que os pressupostos da responsabilidade civil são três: ato ilícito, dano e nexo de causalidade.11

Admitamos como pressuposto a natureza contratual do casamento (e da união estável), mesmo que um contrato especialíssimo e de direito de família. Os cônjuges assumem entre si obrigações recíprocas que devem ser respeitadas. A inobservância de uma dessas obrigações inegavelmente pode gerar um dano ao outro. Ora, se os nubentes ao contraírem matrimônio assumem a obrigação de fidelidade recíproca, p. ex., o descumprimento dessa obrigação constitui um ato ilícito.

Welter12, com inegável maestria, mostra que não é o descumprimento de um dever inerente ao casamento que gera a obrigação de indenizar, mas sim a prática de ilícito penal, que geraria o dever de reparar independentemente da existência ou não da relação conjugal. Ao analisar a jurisprudência, afirma o autor que

em todos os casos, a alegada infração aos deveres do casamento e da união estável (art. 1.566 e 1.724 do CC), além de se constituírem em causas da ruptura dessas entidades familiares (art. 1.572 do CC), são condutas delituosas. É dizer, o dano que se reclama não é, na verdade, devido à desobediência aos deveres conjugais, mas sim, porque tipificam conduta delituosa a um dos cônjuges ou companheiros.

 

Observamos que o artigo citado foi elaborado no ano de 2003, ou seja, antes da descriminalização do adultério que veio com a Lei nº 11.106, de 29 de março de 2005.

Assim, se um dos cônjuges atenta contra a vida ou saúde do outro, caberá indenização por danos morais, mas não porque a agressão ocorreu na constância do casamento. A prática do ilícito penal em si já é causa para a configuração do dano moral, independentemente de ocorrer ou não na constância do casamento ou união estável.

 

 

 

 

Privilegiou-se o divórcio, como meio mais adequado para

assegurar a paz dos que não mais desejam continuar casados, definindo em regras

simples e compreensíveis os requisitos para alcançá-lo. Evitou-se, tanto no divórcio

quanto na separação, a interferência do Estado na intimidade do casal, ficando vedada

a investigação das causas da separação, que não devem ser objeto de publicidade. O

que importa é assegurar-se o modo de guarda dos filhos, no melhor interesse destes,

a fixação ou dispensa dos alimentos entre os cônjuges, a obrigação alimentar do nãoguardião

em relação aos filhos comuns, a manutenção ou mudança do nome de

família e a partilha dos bens comuns.

 

Para alguns o simples descumprimento de um dever conjugal é impulso apto a gerar direito a reparação civil, como assim afirma Regina Beatriz Tavares da Silva:

Por ser o casamento um contrato, embora especial e de direito de família, a responsabilidade civil nas relações conjugais é contratual, de forma que a culpa do infrator emerge do descumprimento do dever assumido, bastando ao ofendido demonstrar a infração e os danos oriundos para que se estabeleça o efeito, que é a responsabilidade do faltoso.13

 

 

 

 

Ora, da mesma forma que é incoerente exigir que um dos cônjuges permaneça na sociedade conjugal contra sua vontade

Se um os cônjuges permanecem na socieda

REFERÊNCIAS

 

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL-2285/2007Estatuto das Famílias. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/517043.pdf. Acesso em: 21 de junho de 2010.

WELTER, Belmiro Pedro. A secularização da culpa no direito de família. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=612. Acesso em: 31 de maio de 2010.

 

1 KLEIN apud WELTER, Belmiro Pedro.

2

3 Alice de Souza Birchal

4

5 P. 134.

6 WELTER, Belmiro Pedro. A secularização da culpa no direito de família. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=612. Acesso em: 31 de maio de 2010.

7 P. 134-6.

8 PEREIRA, Rodrigo da Cunha apud Birchal, p 134.

9 P. 136.

10 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL-2285/2007Estatuto das Famílias. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/517043.pdf. Acesso em: 21 de junho de 2010.

11 É esse o entendimento de Gagliano e Pamplona Filho (2009, p. 23-24), para quem “a culpa (em sentido lato, abrangendo o dolo) não é, em nosso entendimento, pressuposto geral da responsabilidade civil, sobretudo no novo código, considerando a existência de outra espécie de responsabilidade, que prescinde desse elemento subjetivo para a sua configuração (a responsabilidade objetiva).

12Ob. Cit.

13