Camila Coelho
Flaviana Noronha

Sumario: Introdução; 1 A coisa julgada material como norma Constitucional; 2 Surgimento da idéia de relativização da coisa julgada e o principio da proporcionalidade; 2.1 A coisa julgada nas ações de investigação de paternidade- doutrina e jurisprudência; 3 A excepcionalidade da relativização da coisa julgada; Conclusão. Referência

RESUMO
Analisa-se, primeiramente, a necessidade de demonstrar a importância do fenômeno da coisa julgada material como norma constitucional, na medida em que, sobre ela, não pode recair qualquer desconsiderações, pois já existe o mecanismo de ação rescisória para tal, além de subsidiar o princípio da segurança jurídica a todos os seus jurisdicionados. Verifica-se o surgimento na contemporaneidade, entre os doutrinadores, de uma discussão sobre a possível relativização da coisa julgada material, em que se passa a dar valor relativo a uma decisão judicial de mérito, que transitou em julgado. Nota-se que, para solucionar determinados casos concretos, sendo a principal delas a discussão sobre o exame de DNA, que mesmo com sentença imutável e indiscutível, deve ser desconsiderada sua decisão sob pena de não garantir a justiça aos sujeitos do determinado caso concreto. Descreve-se, por fim, que o fenômeno da relativização da coisa julgada material só deve ser buscado em casos excepcionais, devendo o magistrado verificar cada caso concreto, pois caso contrário gerará conflitos e insegurança jurídica.

PALAVRAS-CHAVE
Coisa julgada material; Excepcionalidade; Relativização

INTRODUÇÃO
Percebe-se que por muito tempo a coisa julgada era revestida de um caráter imutável e intocável. Com o término de todos os meios recursais, seu conteúdo restaria imutável, ainda que não estivesse em conformidade com o direito, em decorrência da estabilidade das relações jurídicas. Diante desta realidade, muitos doutrinadores se manifestaram acerca do tema e passaram a admitir a possibilidade da relativização da coisa julgada. Desta forma, o presente trabalho possui como problemática a análise se a coisa julgada inconstitucional deve ser mantida em decorrência ao principio da segurança jurídica ou relativizada em decorrência à possibilidade de julgamentos injustos. Apresentando ainda como objetivo geral demonstrar que ainda que se admita a relativização da coisa julgada, esta possibilidade se dará em casos excepcionais e não nos gerais, pois caso contrato abalaria a segurança jurídica das decisões.

1. A COISA JULGADA MATERIAL COMO NORMA CONSTITUCIONAL
Deve-se, primeiramente, antes de abordar a relativização da coisa julgada, explicitar esse fenômeno com o escopo de melhorar a compreensão da mesma. Desta forma, verifica-se que não cabendo mais interposição de recursos torna-se irrecorrível a decisão judicial, ocorrendo assim seu trânsito em julgado e fazendo surgir a coisa julgada. Este fenômeno é definido por Câmara como sendo a imutabilidade do comando emergente de uma sentença , ou seja, a coisa julgada torna imutável a sentença, fazendo com que aquele ato processual se torne insuscetível de alteração em sua forma, assim como seus efeitos.
Necessário relatar a diferenciação entre a coisa julgada formal e a coisa julgada material. Destarte, a coisa julgada formal refere-se à imutabilidade da sentença, tendo resolvido ou não o mérito da causa, e não cabendo mais recursos contra ela, tornando-se imutável e indiscutível, possuindo assim um efeito endoprocessual, ou seja, destinado só para as partes do processo. Já a coisa julgada material diz respeito à imutabilidade dos seus efeitos, produzindo efeitos para fora do processo, não podendo ser mais discutida em nenhum processo. A expressão "coisa julgada" a que se faz referência nas normas quer dizer coisa julgada material .
Destarte, tratando neste momento da importância jurídica da coisa julgada, é fato que a coisa julgada material é expressamente garantida como direito fundamental no art.5 XXXVI, da Constituição Federal, referindo-se também ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Nota-se assim, que o escopo do legislador ao constitucionalizar a coisa julgada foi a de garantir estabilidade a determinadas manifestações do Estado-juiz, pondo a salvo também os efeitos de novas leis que pudessem eliminar aquelas decisões, e seus efeitos . Assim sendo, ela surge como forma de garantir maior segurança jurídica aos jurisdicionados como norma constitucional.
A coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário. Neste sentido de nada adianta falar em direito de acesso a justiça sem dar ao cidadão direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente. Assim, se essa definitividade da coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar, em razão disso, que ela seja desconsiderada . Deste modo, verifica-se a grande importância da coisa julgada material que não pode ser relativizada a qualquer modo.
Deve-se verificar, também, que a simples afirmação de que o Poder Judiciário não pode emitir decisões contrárias a justiça, a realidade dos fatos e a lei, não pode ser vista como um adequado fundamento para se declarar a desconsideração da coisa julgada material. Isso decorre do fato de que o juiz não pode decidir deste modo, sendo que, todavia não ignora essa possibilidade, pelo simples fato de ser cabível a ação rescisória, que é a única exceção prevista em lei para desconstituir a decisão de mérito transitada em julgada, como dispõe o art.485, do CPC. Assim, o que aconteceu foi à expressa definição das hipóteses de rescindir a coisa julgada, em que se objetivou, a um só tempo, dar atenção a certas situações absolutamente discrepantes da tarefa jurisdicional sem eliminar a garantia de imutabilidade e indiscutibilidade .
Portanto, verifica-se assim a grande importância da coisa julgada material como norma constitucional, na qual se deve levar em consideração a efetividade do direito de acesso a justiça, o principio da segurança dos atos processuais (principio da segurança jurídica) e a conseqüência estabilidade da vida das pessoas advinda da coisa julgada material.

2. SURGIMENTO DA IDEIA DE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Após análise do conceito de coisa julgada e sua correlação com a Constituição do país, faz-se necessário mencionar a respeito de sua relativização realizando um encadeamento com o princípio da proporcionalidade.
Percebe-se que em nosso ordenamento jurídico este instituto da coisa julgada sempre foi tido como um direito absoluto, sendo vedada a sua desconstituição frente à inovação legislativa. Os adeptos desta interpretação, a qual fornece o caráter absoluto da coisa julgada material (com ressalva dos casos de cabimento da ação rescisória), baseiam-se no princípio da segurança jurídica, afirmando que a coisa julgada é uma garantia constitucional. Além disso, tem-se os limites estabelecidos na própria lei processual, pois o art. 471 e 474 impedem qualquer juiz após o transito em julgado da sentença apreciar em processo posterior, aquilo que já fora discutido. Contudo, uma parte da doutrina mais contemporânea vem sustentando o caráter relativo da coisa julgada, isto é, em alguns casos, em virtude do princípio da proporcionalidade, quando se verificar a existência de um conflito aparente de normas constitucionais, poderia haver a necessidade de o dogma da imutabilidade ter seu alcance reduzido.
Deste modo, para Alexandre Câmara a injustiça não vem a ser fundamento suficiente para a relativização. Desta forma, o autor expõe sua opinião mencionando que só poderia desconsiderar-se a coisa julgada quando a mesma tenha incidido sobre uma sentença inconstitucional .
Nota-se que Dinamarco vem a ser adepto a esta doutrina mais recente que defende a relativização da coisa julgada, no seu dizer: "a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios", não intencionando assim, minar imprudentemente o instituto da coisa julgada, para tornar regra geral a sua infringência, mas apenas afastar absurdos, injustiças e fraudes à Constituição, em situações extraordinárias, uma vez que as decisões dos juízes não podem ser regidas por um caráter absoluto e imutável.
Percebe-se assim, que os adeptos a esta relativização se baseiam no princípio da proporcionalidade em análise ao caso concreto. Deste modo, observa-se que ao admitirmos a relativização deste instituto, dois valores fundamentais para qualquer sistema jurídico conflitam: a segurança jurídica, demonstrada através da coisa julgada material e a decisão justa, demonstrada através da possibilidade de rever uma decisão que já fora tomada. Assim, o principio da proporcionalidade, terá como função primordial proporcionar um equilíbrio a fim delimitar a discricionariedade estatal e ao mesmo tempo garantir segurança jurídica.
Deste modo, é fato que a coisa julgada material é de extrema importância para garantir a estabilidade nas relações jurídicas, proporcionando assim maior segurança em saber que a decisão tomada não será modificada. Contudo, faz-se necessário através do princípio da proporcionalidade que a segurança ceda lugar à justiça nas decisões. Desta forma, verifica-se que ao admitir a relativização, não se pretende aniquilar de vez a coisa julgada, mas sim excepcioná-la em raras hipóteses, mediante o critério da proporcionalidade, o qual se mostra o mais adequado quando da resolução de conflitos entre direitos constitucionais.

2.1 Análise da relativização da coisa julgada nas relações de paternidade- doutrina e jurisprudência
Apesar de toda a discussão sobre a possibilidade ou não de se relativizar o dogma da irretroatividade das leis frente à coisa julgada, já encontramos em nosso ordenamento jurídico casos em que a coisa julgada será preterida frente à ocorrência destas situações.
Verifica-se que o caso mais importante de desconsideração da coisa julgada material diz respeito aos processos em que se busque a declaração de existência ou inexistência de relação de parentesco, assim, com a evolução científica e o surgimento do DNA, nasceu a discussão da possibilidade de relativizar a coisa julgada nas ações de investigação de paternidade, quando essa já houver sido declarada. Observa-se que naquelas ações em que a paternidade não fora declarada por ausência de provas, antes da possibilidade da realização de exames de Impressão Digital do DNA e que a ação rescisória já não possa mais ser proposta, a doutrina e a jurisprudência divergem sobre a possibilidade da propositura de nova ação para auferir a paternidade .
O posicionamento que contraria a propositura de uma nova ação se baseia na estabilidade jurídica trazida pela coisa julgada, fundamentando a impossibilidade de julgamento da nova ação pelo disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal e no art. 471 do Código de Processo Civil. Para essa corrente o valor preponderante é a segurança trazida pela coisa julgada, não interessando o surgimento de novo meio de prova.
Compartilha dessa posição a corrente majoritária da jurisprudência pátria, por isso ainda atualmente encontra-se várias jurisprudências neste sentido, como exemplo tem-se o Recurso Especial nº 107248/GO, STJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU 29.06.98, p. 160. Ele menciona que seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada que confere ao processo judicial força para garantir a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. A regra do art. 468 do CPC é libertadora, assegura que o exercício da jurisdição completa-se com o último julgado, que se torna inatingível, insuscetível de modificação. Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada.
Contudo, percebe-se que algumas decisões dos tribunais brasileiros, por diversos fundamentos, têm aceitado esse posicionamento de relativização. A exemplo disse tem-se como jurisprudência Agravo de Instrumento nº 70004042958, TJRS, Des. Maria Berenice Dias, data de julgamento: 15.05.02. Ele menciona que a coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca, sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade.
Desta forma, percebe-se que ainda encontra-se na doutrina e jurisprudência bastante divergência a respeito da possibilidade ou não da relativização da coisa julgada, apresentando como argumento a justiça nas decisões por parte dos defensores e a segurança jurídica para os opositores.
3. A EXCEPCIONALIDADE DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Após as considerações expostas faz-se importante relatar que a coisa julgada material está apoiada no princípio da segurança jurídica, em face de que a relativização da mesma se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana, pela qual pleteia uma nova discussão mediante a desconsideração da sentença transitada em julgada. Deste modo, antes de abordar, especificamente sobre o emprego excepcional desse mecanismo, deve-se mencionar sobre esse conflito acima referido.
Analisa-se a necessidade de haver a imutabilidade da sentença em que tenha ocorrido o trânsito em julgado, em razão da segurança jurídica e da uniformidade de decisões, que se mostram princípios imprescindíveis no nosso ordenamento jurídico vigente, sem os quais não se faz justiça. Assim sendo, a segurança jurídica é um bem protegido pelo Estado em defesa da sociedade como um todo, segundo a qual as decisões judiciais são imutáveis e incontestáveis, pondo termo ao litígio, definitivamente, e impossibilitando qualquer julgamento posterior sobre o mesmo assunto por determinação legal, por assim o querer o legislador. Entretanto, a segurança jurídica sendo um princípio, não pode ser interpretada separadamente de todo o sistema jurídico vigente e ser levada ao extremo. Não se trata de um princípio superior aos demais, e deve ser sopesado no contexto em que se insere .
De acordo com o que foi discorrido, verifica-se que há colisão de princípios em que, como no caso de ação de investigação de paternidade e a coisa julgada, colido os princípios da segurança jurídica e do direito fundamental da criança a dignidade, respeito e convivência familiar ( art.227, caput, CF). Nestes casos cabe ao magistrado realizar a ponderação desses princípios, verificando a necessidade ou não de desconsideração da coisa julgada diante do caso concreto devido à necessidade de pleitear a segurança dos atos processuais.
Não podendo a coisa julgada ser verificada de forma absoluta, ou superior aos outros princípios que, o Ministro Jose Augusto Delgado do STJ, manifestou sua posição afirmando que, não se pode conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios maiores da Constituição Federal e contra a realidade imposta pela natureza. Não se pode aceitar, em sã consciência, que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios, obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente desconheça que o branco é branco e que a vida não pode ser considerada morte, nem vice-versa.
Em contra partida, nota-se que a relativização trata-se de uma temeridade jurídica, que na verdade relativiza ainda mais a segurança jurídica da sociedade, já tão vulnerada pela própria morosidade judiciária e pelos sobressaltos do Estado brasileiro em relação ao cumprimento das leis e aos contratos que assina . Deste modo, imagine o caos causado numa sociedade em que se permite, incessantemente, a revisão judicial das controvérsias advindas de uma mesma lide. Nunca seria efetivada sentença judicial alguma, a não ser provisoriamente, e se eternizariam os conflitos desta feita. Seria o fim da segurança jurídica, a desestabilização social, um verdadeiro caos nas relações humanas, ainda pior do que a situação que conhecemos atualmente. Logo, deve haver a análise de caso a caso para que se possa concluir pela necessidade ou não de desconsiderar determinada decisão judicial que esteja gerando conflitos.

CONCLUSÃO:
Diante do exposto, resta salientar, que a relativização da coisa julgada material deve ocorrer somente em casos excepcionais, invocando assim, o magistrado, em situações extraordinárias que tenha o escopo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes à Constituição, entre outros. Portanto, com essa análise não se desqualifica a grande importância constitucional e social da coisa julgada no mundo jurídico, pois permanecendo como regra geral, a coisa julgada só deverá ser desconsiderada como fenômeno excepcional baseado em casos concretos, com o escopo de manter na sociedade brasileira a segurança que todos almejam.

REFERENCIAS:
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de direito processual civil: procedimento comum ordinário e sumario. Vol2. Tomo I, 3 3d, ver. e atual, São Paulo: Saraiva.
CAMARA, Alexandre Freitas. Licoes de Direito processual civil. Vol1, 19 ed, rev. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
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DELGADO, Jose Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Palestra proferida no IV Congresso Brasileiro de Processo Civil e Trabalhista, Natal/RN, 22/09/2000. in Coisa julgada inconstitucional ob.cit.
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MARINONE, Luis Guilherme. Relativizar a coisa julgada material? . Dispoonivel em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Luiz%20G.%20Marinoni%284%29%20-formatado.pdf. Acesso em:18/05/10.