A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA À LUZ DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE[1] 

Aline Costa

Malane Mendonça[2] 

                                                           RESUMO

O presente trabalho vem explorar a temática da relativização da coisa julgada. Para tanto, destacou-se que a relativização da coisa julgada é uma tese extremamente polêmica defendida pelos tribunais e pela doutrina e tem como pressuposto que nenhum valor constitucional é absoluto, aplicando-se assim o princípio da proporcionalidade utilizado em caso de colisão entre princípios constitucionais, a fim de obter um ordenamento jurídico harmonioso. 

PALAVRAS-CHAVE

Coisa Julgada. Relativização da coisa julgada. Princípio da proporcionalidade. 

INTRODUÇÃO

O instituto da coisa julgada desempenha na nossa sociedade um papel de fundamental importância; uma vez que evita a possibilidade que decisões judiciais possam ser modificadas ou revogadas facilmente eternizando assim os conflitos que nunca teriam fim, ao não ser pela desistência das partes. Nesse sentido, esse instituto visa a manutenção da estabilidade nas relações jurídicas e sociais. Entretanto, sua manutenção não pode implicar em manifesto desrespeito a princípios tão importantes quanto o da segurança jurídica.

Assim sendo, a relativização da coisa julgada tem sido um assunto amplamente discutido no âmbito jurídico nacional. Doutrina e jurisprudência tem discordado e acordado em diversos aspectos, de modo que ainda não se tem um pensamento unificado em relação ao tema.

Nesse sentido, existem discussões a respeito da possibilidade de se relativizar tal instituto, de acordo com a análise do caso concreto, com vista a proteger outros princípios constitucionais fundamentais, com destaque aqui para o princípio da proporcionalidade. 

1 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Com o advento da Lei Fundamental alemã, pós Segunda Guerra Mundial, e com a jurisprudência do Tribunal Constitucional o princípio da proporcionalidade ganhou maior ênfase e tornou-se um princípio geral constitucional. Tal princípio é fundamental para garantir a adequada aplicação dos princípios fundamentais que norteiam um Estado Democrático de Direito, conforme ensina Bonavides[3]: 

“A vinculação do princípio da proporcionalidade ao Direito Constitucional ocorre por via dos direitos fundamentais. É aí que ele ganha extrema importância e aufere um prestígio e difusão tão larga quanto outros princípios cardeais e afins, nomeadamente o princípio da igualdade”.

 

 

A utilização do princípio da proporcionalidade é alvo de inúmeras discussões no meio jurídico pelo fato de não ser uma norma escrita e, portanto, segundo alguns, permitir uma interpretação muito ampla que não condiz com as limitações do poder judiciário. Entretanto, devemos observar que sua utilização deve sempre estar vinculada com a adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu (subprincípios ou elementos que o caracterizam). Portanto, devemos entender o princípio da proporcionalidade como uma espécie de balizamento cujo objetivo é delimitar a discricionariedade da atuação estatal, manter apropriada a relação entre o fim e o meio dos atos jurisdicionais.

Cumpre ressaltar que não se deve confundir o princípio da proporcionalidade com a razoabilidade, esta última, segundo definição de Leonardo de Farias Beraldo [4]:

 

“É a relação de congruência lógica entre o motivo ou o fato e a atuação concreta da Administração, que possibilita averiguar se o ato administrativo está dentro da moldura legal. Princípio que serve de parâmetro à interpretação das leis e aos atos da administração ao preconizar o bom senso na aplicação do direito, apoiando a legalidade e o respeito à Constituição”.

 

 

 A razoabilidade, portanto, não requer a existência de uma relação meio-fim, conquanto a sua aplicação ocorre analisando-se o caso concreto e as especificidades do(s) sujeito(s) envolvido(s). Este trata não de um exame abstrato do bem jurídico e da medida adotada para resguardá-lo, mas tão somente de analisar se a medida adota não implicaria em uma impossibilidade de realização por parte do indivíduo.

1.1) Subprincípio da adequação

Trata-se de uma relação entre meio e fim, ou seja, deve-se analisar no caso concreto se o meio escolhido é suscetível de alcançar o fim pretendido.

1.2) Subprincípio da necessidade (exigibilidade ou intervenção mínima)

Segundo esse princípio, deve-se escolher o meio menos oneroso, menos prejudicial para se alcançar o fim que se deseja, ou seja, o que se procura é a menor desvantagem com a menor ingerência.

1.3) Subprincípio da proporcionalidade stricto sensu

Aqui a idéia é balancear o ônus advindo dos meios, de modo que estes sejam menores em relação aos benefícios auferidos no fim. Segundo Canotilho ‘’os meios e os fins são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcional em relação ao fim’’[5].

 

2 COISA JULGADA E SUA RELATIVIZAÇÃO

A coisa julgada está assegurada pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXXVI e no Código de Processo Civil, artigo 467 e tem como objetivo assegurar a paz social e garantir a segurança jurídica através da imutabilidade da sentença e de seus efeitos.

Segundo maior parte da doutrina, a coisa julgada divide-se em coisa julgada formal e material. Neste sentir, Marinoni[6] realiza essa diferenciação, qual seja:

 

“Quando se alude à indiscutibilidade da sentença judicial, fora do processo, em relação a outros feitos judiciais, põe-se o campo da coisa julgada material, que aqui realmente importa e constitui, verdadeiramente, o âmbito de relevância da coisa julgada. Já a indiscutibilidade da decisão judicial verificada dentro do processo remete à noção de coisa julgada formal. A coisa julgada formal, como se nota, é endoprocessual, e se vincula à impossibilidade de rediscutir o tema decidido dentro da relação processual em que a sentença foi prolatada. Já a coisa julgada material é extraprocessual, fazendo repercutir seus efeitos para fora do processo, em relação a outros processos”.

 

 

Em outras palavras, a coisa julgada formal remete a qualidade dos efeitos que passa a dispor a decisão, caracterizando por sua imutabilidade e indiscutibilidade, não cabendo mais nenhuma espécie de recurso. E a coisa julgada material é a indiscutibilidade do conteúdo da decisão que fora proferida, sendo naquele processo ou em qualquer outro. Tem-se a pacificação estatal do conflito que foi posto para apreciação do órgão jurisdicional.

Dessa forma, observa-se que concluída a atividade jurisdicional e passado o prazo decadencial (dois anos) para a interposição da ação rescisória, estabelece-se entre as partes uma situação onde cada qual tem ciência dos direitos e obrigações que lhe assistem.

Portanto, a coisa julgada é imprescindível para que a sociedade se sinta segura com relação às decisões proferidas em juízo, de maneira a nos dá a certeza de que não veremos novamente ser discutido em juízo um direito que já foi proferido. Sem o mesmo podemos dizer que a sociedade viraria um caos, onde as sentenças judiciais não teriam valor algum. Fredie Didier Júnior lembra que a coisa julgada não é instrumento de justiça das decisões, mas sim garantia da segurança[7].

A questão da relativização de tal instituto vem à baila quando nos deparamos com situações onde, nas palavras de Dinamarco[8], ‘’não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternizaçao de incertezas’’. Torna-se fácil visualizar tais situações quando pensamos nas ações de pensão alimentícia, que envolvem reconhecimento de paternidade, quando sequer existia o exame de DNA. O que fazer em casos assim? Afastar a possibilidade de um reexame da questão que asseguraria, ou não, a certeza e, sobretudo a justiça em nome da segurança jurídica?

Para solucionar tal questionamento é que surge o divergente instituto da relativização da coisa julgada, ou seja, afastabilidade do caráter absoluto da coisa julgada. Sob esse instituto seria possível reavaliar situações em que o meio adotado para se chegar a um fim atentasse à moralidade, legalidade e aos princípios constitucionais.

 

3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

 

Com base no que já foi exposto, é inexorável mencionar que a relativização da coisa julgada vem corroborar com o entendimento de que nenhum valor constitucional é absoluto posto que um valor pode ser ponderado em detrimento de outro em razão da melhor solução para o caso concreto.

Neste sentir, Ada Pellegrini[9] aduz que o princípio da proporcionalidade significa que em caso de colisão entre dois ou mais valores que são tutelados pela Constituição Federal, prevalece aquele que no caso concreto mostra-se mais intimamente associado à índole do sistema constitucional. Acrescenta que a doutrina desconsidera a coisa julgada em processo próprio a fim de prevalecer outro bem constitucionalmente tutelado, de índole material.

 Observa-se que esse princípio deve obedecer a parâmetros para que não recaia no excesso de subjetivismo do juiz e são eles: a adequação entre meios empregados e fins visados; a proporcionalidade estrita, entendida como aferição e balanceamento dos valores em jogo e o menor sacrifício possível ao bem considerado.

Importa mencionar assim, a sentença que determina os alimentos. Tem-se que ela faz coisa julgada material e assim sendo, não pode mais ser reexaminada, ou seja, o que se discutiu em juízo passa a ser “imutável e indiscutível”.

Entretanto, em razão do princípio da proporcionalidade, há a possibilidade de o encargo alimentar ser reavaliado pela ação revisional a qualquer tempo para maior ou menor valor em decorrência de fatos supervenientes como a situação financeira dos interessados. Neste sentir[10] Berenice aduz :

 

“Se não ocorre alteração quer das possibilidades do alimentante, quer das necessidades do alimentado, o valor dos alimentos não pode ser alterado, exatamente por esbarrar na coisa julgada. Somente mediante a prova da ocorrência de mudança na situação de qualquer das partes, é possível alterar o valor dos alimentos. Proposta ação revisional e não comprovada mudança na situação das partes, as demandas não são aceitas: são julgadas improcedentes ou são extintas, sem julgamento do mérito, pelo reconhecimento da ocorrência de coisa julgada”.

 

 

Ademais, é observado a hipótese que enseja a possibilidade dos alimentos serem revisados por descumprimento ao princípio em tela, como bem pondera Berenice[11]:

 

“Deve ser respeitado o princípio da proporcionalidade também por ocasião da fixação da fixação dos alimentos. Desrespeitado tal princípio, é necessário admitir a modificação dos alimentos, para ser estabelecido o equilíbrio exigido pela lei. Ora, se os alimentos foram fixados sem atentar às reais possibilidades do alimentante ou às verdadeiras necessidades do alimentado, houve desatendimento ao parâmetro legal, e o uso da via revisional se impõe. Esta adequação pode ser levada a efeito a qualquer tempo, mesmo que inexista alteração nas condições econômicas ou na situação de vida de qualquer das partes. Nessa hipótese igualmente não cabe alegar coisa julgada, pois esta não se cristaliza se, quando da fixação dos alimentos, foi desrespeitado o princípio da proporcionalidade”.

 

Posto isto, tem-se que a imutabilidade da coisa julgada requer-se que sejam observados princípios como o da proporcionalidade a fim de harmonizar o ordenamento jurídico.

 

 

CONCLUSÃO

 

Portanto, observa-se que o instituto da coisa julgada formal pressupõe a extinção do direito ao processo; pela qual a sentença não pode mais ser reexaminada. Sendo assim, nem a coisa julgada formal, nem a material não configuram efeitos da sentença, mas qualidades da sentença e de seus efeitos.

Acrescenta-se que a relativização desse instituto é posicionamento de doutrinadores e da jurisprudência e para tanto, ressaltou-se o princípio da proporcionalidade que vem explicar a ponderação de valores constitucionais que estão na mesma hierarquia, mas que, entretanto, podem ser sopesados em caso de colisão entre eles.

Acrescentou-se ainda, que a sentença que fixa os alimentos apesar de fazer coisa julgada, a titulo de ação revisional, abarca o princípio da proporcionalidade pondo uma questão já julgada, ser reexaminada.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

BERALDO, Leonardo de Farias. A flexibilização da coisa julgada que viola a Constituição. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Org.). Coisa julgada inconstitucional. ed.5. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005.

 

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. ed. 7. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.

 

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. ed. 5. Portugal: Almedina, 2002.

 

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

 

 

DIAS, Maria Berenice. Princípio da proporcionalidade para além da coisa julgada. Revista Prática Jurídica.  Ano VI, n.60, março,2007.

 

DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Disponível em <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em 02 jun 2010.

 

JÚNIOR, Fredie Didier. Curso de Processo Civil. V.2, Rio de Janeiro: Podivm, 2007.

 

MARINONI, L.G, ARENHART, S. C. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

 



[1] Paper apresentado à disciplina de Processo de Conhecimento II, do curso de Direito Vespertino da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB), para obtenção da segunda nota ministrado pelo prof. Hugo Passos.

[2] Alunas do 5º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[3] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. ed. 7. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p. 356-397.

[4]BERALDO, Leonardo de Farias. A flexibilização da coisa julgada que viola a Constituição. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Org.). Coisa julgada inconstitucional. ed.5. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005. p. 172.

[5] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. ed. 5. Portugal: Almedina, 2002. p. 152.

[6] MARINONI, L.G, ARENHART, S. C. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 608.

[7]     JÚNIOR, Fredie Didier. Curso de Processo Civil. V.2, Rio de Janeiro: Podivm,2007,p.478.

[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Disponível em <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em 02 jun 2010. p. 32.

[9] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 329-330.

[10] DIAS, Maria Berenice. Princípio da proporcionalidade para além da coisa julgada. Revista Prática Jurídica. n.60.p.40-42, março,2007.

[11] Ibid p.41.