A RELAÇÃO INTRÍNSECA ENTRE DOENÇA MENTAL E MORAL SOB A ÓTICA DE MICHEL FOUCAULT

Luiz Tiago Vieira Santos[1]

 RESUMO: Este artigo tem como objetivo estimular uma reflexão sobre a compreensão do conceito de doença mental e como este se atrela, historicamente, a uma moral construída socialmente. Para tanto, referenciaremos nossa análise na perspectiva de Michel Foucault, explorada com extrema propriedade em suas principais obras sobre essa temática: História da Loucura na Idade Clássica e Doença mental e Psicologia.

 PALAVRAS-CHAVE: Reflexão; Doença Mental; Loucura; Psicologia.

 1 INTRODUÇÃO

 É de fundamental importância, antes de expor propriamente as considerações sobre a temática elencada, que se conheça, ainda que de forma bastante sucinta, algumas peculiaridades do filósofo e psicólogo Michel Foucault, a fim de que possamos compreender melhor o contexto de sua formação e do amealhamento de sua produção intelectual.

Foucault nasceu aos 15 dias do mês de outubro do ano de 1926, na cidade provinciana de Poitiers, na França. Descendente de uma família de médicos, diga-se de uma família burguesa, procurou a princípio seguir, como carreira profissional, a medicina, comungando assim com a tradição existente em sua família. Contudo, apaixonou-se pela filosofia, que para ele, se tornaria o campo fértil onde poderia refletir as questões intrínsecas ao seu ser, bem como as questões nevrálgicas da sociedade de seu tempo.

Em 1946, em meio a Segunda Grande Guerra, ingressa na Escola Normal Superior da França e lá mantém contato com grandes pensadores franceses como o sociólogo francês Pierre Bourdieu e o filósofo, também francês, Jean-Paul Sartre. Certamente, os frutos dos inúmeros debates com estas e tantas outras personalidades da época, contribuíram para sua escolha pela filosofia em detrimento da medicina. De personalidade tida como difícil, sobretudo sempre lançando mão da ironia e do sarcasmo para com todos, é tido como louco por muitos. Contudo, essa forma de agir, antes de qualquer coisa, demonstra sua inquietude quanto aos caminhos e desejos que a sociedade de seu tempo possui, uma vez que não pensava como a grande maioria.

No ano de 1948, após tentar suicídio, é levado ao seu primeiro encontro com a “loucura”, isto é, com o modelo de hospital psiquiátrico da época. Isso, sem duvida, teve um grande peso e influência no pensamento de Foucault e em sua posterior produção intelectual, uma vez que suas primeiras obras abordaram a temática da loucura. Mais tarde, se tornaria professor de psiquiatria, devido a seu contato intenso e interesse pelos estudos nesta área. No ano seguinte, 1949, conclui seus estudos na Escola Normal Superior e se diploma em Psicologia.

Na década de 50, o mundo passava por grandes mudanças em todas as áreas da sociedade, sobretudo no campo político-ideológico. Era o período pós Segunda Grande Guerra. Na França de Foucault não seria tão diferente do resto do mundo. Lá, as idéias marxistas ganharam uma grande adesão por parte da juventude intelectual francesa, sobretudo pelo repúdio que esta sentia de seu país pelo seu apoio ao nazismo. Dentre esses intelectuais lá estava Foucault, que se filiou ao Partido Comunista Francês e que, mais tarde por problemas internos, veio a se afastar dele.

Outro aspecto importante sobre a vida de Michel Foucault diz respeito a sua orientação sexual, uma vez que era homossexual. Vivia sua sexualidade secretamente, devido à vergonha que ele mesmo sentia de sua condição, bem como devido à sociedade francesa da época ser muito conservadora e repressora. Isso, talvez tenha sido o fio condutor de uma série de eventos depressivos que o levaram a inúmeras tentativas de suicídio.

No ano de 1951, se torna professor de Psicologia na Escola Normal Superior da França, e de 1952 a 1976, sua produção intelectual se torna mais intensa. É o período em que escreve suas grandes obras. Dentre estas, destacam-se: Doença Mental e Psicologia (1954), publicada aos seus 28 anos de idade; História da Loucura na Idade Clássica (1961), obra que lhe conferiu o título de doutor e o afirmou como filósofo; O Nascimento da Clínica (1963); As Palavras e as Coisas (1966); Arqueologia do Saber (1969); Vigiar e Punir (1975), obra na qual analisa a disciplina do sistema prisional de sua época e enxerga nele uma forma de imprimir, nos presos, padrões de conduta tidos como “normais” no grupo social e; A Vontade do Saber (1976).

Contudo, por ser soropositivo para o vírus da AIDS e devido às inúmeras complicações decorrentes dessa doença, Michel Foucault falece no dia 25 de Junho de 1984, com uma obra ainda inconclusa: A História da Sexualidade. Nela, ele pretendia demonstrar que o sexo era utilizado pela sociedade como instrumento de poder.

 2 DESENVOLVIMENTO

 Depois de feitas tais considerações preliminares, podemos agora nos ater às questões norteadoras deste trabalho, procurando compreender como Foucault problematiza a moral a partir da relação existente entre saúde e doença. Em outras palavras, refletiremos sobre como o autor estabelece uma relação entre o que se conhece por doença mental e o padrão moral de uma determinada época.

Para tanto, nos utilizaremos de suas primeiras obras publicadas, a saber: Doença Mental e Psicologia, de 1954 e História da Loucura na Idade Clássica, de 1961. Como ambas englobam e abordam a temática da loucura, poderão sem dúvida, fornecer as reflexões das quais se necessita.

Em primeiro lugar, é de suma importância entender como a “loucura” foi problematizada ao longo da história, a fim de que se possa ter uma idéia mais ampla da relação a qual o autor tenta demonstrar existir entre a doença mental e uma determinada moral construída.

Durante a Idade Média, período que vai do século IV ao século XIV, o grande “mal” que assombrava a sociedade medieval era a Lepra. Para contê-la e afastá-la do meio social, criaram-se inúmeros leprosários. Estes eram espécies de hospitais onde eram enclausurados e retirados do convívio social os indivíduos contaminados por esta enfermidade. Com o fim da Idade Média, essa doença basicamente some do mundo ocidental e os leprosários, ou seja, estas inúmeras construções espalhadas por toda a Europa, basicamente perderam sua utilidade, pelo menos por um breve período.

Nos séculos seguintes, mais precisamente do final do século XIV até o século XVII, supõe-se que, como forma de dar utilidade às construções praticamente abandonadas, a sociedade urge por uma nova modalidade de “mal” a ser purificado e excluído socialmente. Nas palavras do próprio Foucault:

 Do século XIV ao XVII, vão esperar e solicitar, através de estranhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar do medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão. [...] A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado. (FOUCAULT, 1978. pp. 07-09)

 É notadamente visível que a finalidade dos leprosários não era a cura, mas sim o mero isolamento social do doente com vistas a mantê-lo a uma distância “segura” da sociedade. A idéia desse isolamento se justificava pelas imagens que se tinham associadas ao leproso, sobretudo advindas do medievo, como criatura tomada pelo mal, possuída, entre outras. São essas imagens e, principalmente, a idéia de exclusão social que, segundo o autor, vão transpor a barreira da lepra e se transfigurarão nas novas enfermidades que, posteriormente a sociedade desejaria reprimir:

 Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Freqüentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão – essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual. (Id. Ibid, 1978. p. 10)

 Ao final do século XV, nasce uma nova “lepra”. Dessa vez, as doenças venéreas surgem como sua substituta, uma vez que até mesmo os leprosos as temiam. Não foi difícil conseguir a adesão social a essa nova exclusão, pois a sociedade expressava todo seu repúdio a esta enfermidade e logo, assim como a lepra, queria mantê-la o mais distante possível. Embora fosse uma nova modalidade de “lepra” digamos assim, não são as doenças venéreas que assumirão no mundo clássico o mesmo papel ocupado pela lepra no medievo. Caberá a “loucura” essa substituição perfeita. Uma explicação básica para isso se deve ao fato de que as doenças venéreas logo assumirão um caráter mais estritamente ligado à medicina. O que não acontece com a loucura, pois a medicina não a alcançaria tão cedo:

 Fato curioso a constatar: é sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no século XVII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da loucura, num espaço moral de exclusão. De fato, a verdadeira herança da lepra não é ai que deve ser buscada, mas sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará pra se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.  (FOUCAULT, 1978. p. 12)

 Contudo, a própria definição de loucura sofreu modificações ao longo da história e das épocas. Durante muito tempo, sobretudo na Idade Média, o louco era tido como um ser possuído, ou quando não assim, a idéia de loucura estava atrelada a ideais místicos. Todavia, no renascimento, cria-se uma cultura de grande prestígio à loucura e sua conseqüente valorização. Esta agora passa a fazer parte de todos os setores sociais, principalmente nas artes.

 Há as festas populares em tôrno dos espetáculos dados pelas associações dos loucos, como o Navio Azul em Flandres; há toda uma iconografia que vai da Nave dos loucos de Bosch, a Breughel e Margot a Louca; há também os textos sábios, as obras de filosofia ou crítica moral, como a Stultifera Nazis de Brant ou o Elogio da Loucura de Erasmo. Haverá, finalmente, toda a literatura da loucura: as cenas de demência no teatro elizabetiano e no teatro francês pré-clássico participam da arquitetura dramática, como os sonhos e, um pouco mais tarde, as cenas de confissão: elas conduzem o drama da ilusão a verdade, da falsa solução ao verdadeiro desfecho. São uma das molas essenciais deste teatro barroco, como certos romances que lhe são contemporâneos: as grandes aventuras das narrativas de cavalaria tornam-se voluntariamente as extravagâncias de espíritos que não mais controlam suas quimeras. Shakespeare e Cervantes no fim do Renascimento são testemunhas do grande prestígio desta loucura cujo reinado próximo tinha sido anunciado cem anos antes, por Brant e Bosch. [...] Até cerca de 1650, a cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira a estas formas de experiência. (FOUCAULT, 1975. pp. 53-54)

 Em seguida, no século XVII, mais uma vez ocorre uma nova mudança na forma como a sociedade passaria a encarar a loucura. Quase que como uma retomada às antigas práticas da Idade Média, a exemplo do que se fazia com a lepra, e depois com os portadores de doenças venéreas, a loucura vê-se encarcerada no universo da exclusão e do isolamento social. Porém, nessa época, a idéia de exclusão de um grupo se ampliou a outros e, nos estabelecimentos de internação (antigos leprosários) surgem os hospitais gerais, agora não só destinados aos loucos, mas também a todos aqueles que se desviassem do padrão de comportamento estabelecido socialmente ou simplesmente aqueles os quais a sociedade, a bem entender, desejasse excluir.

 Nos meados do século XVII, brusca mudança; o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão. Criam-se (e isto em toda a Europa) estabelecimentos para internação que não são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma série de indivíduos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos segundo nossos critérios de percepção: encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertino de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação a ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de “alteração”. (FOUCAULT, 1975. pp. 54-55)

 Fato importantíssimo que não pode passar despercebido no que diz respeito a essa modalidade de internamento que se difundiu no século XVII é que não havia a finalidade de cura, igualmente à questão da lepra. Mais uma vez, a finalidade era isolar e, mais ainda, havia uma idéia de punição moral pelas supostas “transgressões” dos internos. Essa sanção, que muitas vezes incluía trabalhos forçados, não só se fazia pela transposição dos “bons costumes sociais”, mas também pela ociosidade em que estas pessoas se encontravam, uma vez que não produziam riquezas. Na burguesia que aí começava a se formar, a ociosidade era algo repugnante.

Estas casas não têm vocação médica alguma; não se é admitido aí para ser tratado, mas porque não se pode ou não se deve mais fazer parte da sociedade. O internamento que o louco, juntamente com outros, recebe na época clássica não põe em questão as relações da loucura com a doença, mas as relações da sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos. [...] No hospital geral, como nas Workhouses, na Inglaterra, que lhe são mais ou menos contemporâneas, reina o trabalho forçado; [...] Mas a obrigação do trabalho tem um papel de sanções e de controle moral. É que, no mundo burguês em processo de constituição, um vício maior, o pecado por excelência no mundo do comércio, acaba de ser definido: não é mais o orgulho nem a avidez como na Idade Média; é a ociosidade. A categoria comum que grupa todos aqueles que residem nas casas de internamento, é a incapacidade em que se encontram de tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo das riquezas (seja por sua culpa ou acidentalmente). (Id. Ibid. 1975. pp. 54-55)

 Em meados do século XVIII, devido certamente à Revolução Francesa e sua introdução, no meio social, dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, a questão dos internamentos é posta à prova, à revisão, mais precisamente. Começa-se a horrorizar essas casas de internamento, sobretudo por conta das arbitrariedades que existiam no recolhimento dessas pessoas ao cárcere. Então a sociedade, sacudida pelos ideais iluministas, clama pela abolição dessas medidas de exclusão tão execráveis.

Contudo a abolição do internamento não é possível a todos. Os que se beneficiaram dessa medida foram todos aqueles que sofreram recolhimentos arbitrários. Já os loucos, de acordo com o pensamento até mesmo dos reformadores, se libertos, poderiam causar perigo para a própria família e para a sociedade. Logo, a solução encontrada foi que estes estabelecimentos passariam a ser de seu uso exclusivo.

 Apesar de as medidas de internamento adquirirem agora uma pseudo-significação mais próxima da realidade médica, por conta dos ideais humanistas e do início da construção de uma medicina mais positiva, houve distorções graves quanto as práticas do internamento. A partir desse momento, todas as antigas práticas de exclusão e isolamento pautadas nas punições morais, antes praticadas, agora se voltam exclusivamente aos loucos, porém, com uma camuflagem de que o internamento deveria servir ao louco como se este estivesse em sua própria casa, numa família.

 De fato, ele é submetido por isso mesmo, a um controle social e moral ininterrupto; a cura significará reinculcar-lhe os sentimentos de dependência, humanidade, culpa, reconhecimento que são a armadura moral da vida familiar. Utilizar-se-ão para consegui-lo meios tais como ameaças, castigos, privações alimentares, humilhações, em resumo, tudo o que poderá ao mesmo tempo infantilizar e culpabilizar o louco. [...] O louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, rebaixado nas suas pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado nos seus erros: a sanção tinha que seguir imediatamente qualquer desvio a uma conduta normal. E isto sob a direção do médico que está encarregado mais de um controle ético do que de uma intervenção terapêutica. Ele é, no asilo, o agente das sínteses morais. (FOUCAULT, 1975. p. 57)

 O que é mais repugnante nisso tudo é a utilização, até mesmo, de castigos físicos com vistas a “curar” o “doente”. Destarte, todas as práticas utilizadas eram puramente repressivas e punitivas. Ia desde uma ducha gelada na cabeça do louco até mesmo girá-lo inúmeras vezes com a intenção de colocar nos eixos os “pensamentos desvirtuados”. Todo esse conjunto de práticas, mais torturadoras do que terapêuticas, na visão de Foucault, é ainda utilizado no início do século XIX, porém, se é que assim pode-se dizer, de modo aperfeiçoado.

 O século XIX aperfeiçoa o sistema dando-lhe um caráter estritamente punitivo: a cada manifestação delirante faz-se girar o doente até desmaiar, se ele não se arrependeu. Emprega-se também uma gaiola móvel que gira sobre si mesma segundo um eixo horizontal e cujo movimento é tanto mais vivo quanto mais agitado esteja o doente que aí é preso. (FOUCAULT, 1975. p. 58)

 Uma questão importante que se faz presente nesta época é que, neste novo mundo de internamento, com o advento de uma ciência positiva, a questão da loucura sofre uma ruptura definitiva com as idéias mágicas ou religiosas com as quais durante muito tempo foi associada. Agora, a loucura, nesse universo moralizador e repressor, passa a ser intrínseca a alma humana, isto é, a interioridade do sujeito. Foucault destaca aí que, nesse momento, a loucura adquire toda uma significação e status psicológico, mas critica essa psicologia que mais parece servir à moral do que mais precisamente ter a finalidade terapêutica.

 Pela primeira vez, no mundo ocidental, a loucura vai receber status, estrutura e significação psicológicos. Mas essa psicologização é apenas a conseqüência superficial de uma operação mais surda e situada num nível mais profundo – uma operação através da qual a loucura encontra-se inserida no sistema dos valores e das repressões morais. (FOUCAULT, 1975. p. 58)

 E completa: “Toda esta psicologia não existiria sem o sadismo moralizador no qual a ‘filantropia’ do século XIX enclausurou-a, sob os modos hipócritas de uma ‘liberação’” (Id. Ibid. 1975, p.58)

Em uma de suas obras destinadas ao estudo da loucura, mais precisamente em Doença Mental e Psicologia, Foucault faz uma análise das diversas abordagens que tentavam explicar o surgimento da doença. Contudo, tanto a evolução orgânica, como a história psicológica, bem como a situação do homem no mundo, puderam apenas demonstrar as formas de manifestação da doença. Segundo o autor, as origens da doença mental se encontram dentro de uma cultura construída em determinada fase da história.

 Boutroux dizia, no seu vocabulário, que as leis psicológicas, mesmo as mais gerais, são relativas a uma “fase da humanidade”. Um fato tornou-se, há muito tempo, o lugar comum da sociologia e da patologia mental: a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal. [...] Daí cada cultura formará da doença uma imagem cujo perfil é delineado pelo conjunto das virtualidades antropológicas que ela negligencia ou reprime. [...] Nossa sociedade não quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou que encerra; no instante mesmo em que ela diagnostica a doença, exclui o doente. As análises de nossos psicólogos e sociólogos, que fazem do doente um desviado e que procuram a origem do mórbido no anormal, são, então, antes de tudo, uma projeção de temas culturais. (Id. Ibid. 1975. pp. 49-51)

 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Diante do exposto, é possível perceber que ao longo da história, a sociedade sofreu inúmeras modificações que a impactou profundamente, principalmente no que diz respeito à questão da saúde e sua relação com a doença.

Ao final da Idade Média, a lepra sai de cena, tornando basicamente inúteis os espaços utilizados para o internamento dos leprosos. Pouco tempo depois, na ânsia de tornar novamente úteis esses lugares, busca-se um novo “mal” como algo a ser excluído do meio social: as doenças venéreas. Porém, como estas adquirem mais estritamente um caráter médico, também precisam ser substituídas. Daí cabe à loucura assumir seu lugar.

Entretanto, até mesmo a idéia de loucura sofre inúmeras modificações de acordo com as mudanças pelas quais a sociedade vai passando. A princípio, na Idade Média, o louco era um possuído e por isso era isolado do convívio social, isto é, o ideal era o de exclusão plena. No Renascimento, continuam-se as internações, porém, neste período da história, há a criação de uma cultura de valorização da loucura. No século XVII, as antigas idéias de isolamento e exclusão social, transcendem o universo da loucura e se estendem a todos aqueles que a sociedade julga, a seu bom grado, impróprios para viverem no grupo social. No século XVIII por força dos ideais iluministas, a sociedade clama pelo fim dos internamentos, porém há um grupo que não será beneficiado com a liberdade: os loucos. Estes continuam sendo julgados, por sua “nocividade”, como impróprios ao convívio social. Nesta época, o mundo das exclusões destina-se exclusivamente à loucura. No século XIX, as internações assumem um caráter meramente de punição moral e, no século XIX, aperfeiçoa-se esse esquema de sanções.

Importante frisar que, só com o advento de uma ciência médica positiva que haverá uma definitiva ruptura com as idéias místicas e religiosas associadas à loucura. A partir daí, esta passa a ser considerada como sendo algo da interioridade do sujeito e adquire dimensões psicológicas, sendo, portanto, objeto de estudo da psicologia.

Portanto, é evidente e de óbvia constatação que, em todas as épocas descritas, o que prevalece quando se fala em doença mental ou loucura, não é o aspecto de cura ou a idéia de um tratamento terapêutico, mas sim um discurso de verdade criado culturalmente para exercer o poder sobre um grupo considerado diferente. Foucault, assim, problematiza a doença mental argumentando que, durante toda a história, esta sempre esteve atrelada a um conjunto de padrões sociais, estabelecidos como “normais” e, todos aqueles que se desviassem deles, deveriam ser retirados do convívio social. Logo, a moral construída socialmente é quem sempre esteve por detrás das conceituações do que seria ou não doença mental e, principalmente, dos jogos de exclusão e do isolamento social praticados durante toda a história da humanidade.

4 REFERÊNCIAS

 CAIXETA, Paula Vanessa de. Esboço biográfico: Michel Foucault. 08 de março de 2010. Disponível em: <http://www.ded.ufla.br/generoesexualidade-ei/imagens/foucault.pdf>

 FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

 _____________. Doença mental e psicologia. Trad. Lilian Rose Shalders. Coleção Biblioteca Tempo Universitário. Vol. 11. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

 
 


[1] Possui LICENCIATURA PLENA EM CIÊNCIAS NATURAIS pela UNIVERSIDADE TIRADENTES - UNIT (2009), com experiência docente na Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio) nas disciplinas Ciências e Biologia respectivamente e na Educação Técnica (área da saúde) na disciplina Microbiologia e Parasitologia Humanas. Atualmente é graduando do BACHARELADO EM DIREITO pela UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE – UFS (Currículo Lattes)