A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E TEOLOGIA

Introdução

No decorrer da história do Cristianismo, sempre houve a relação muito complexa entre filosofia e teologia. O presente artigo demonstra como se deu essa relação, de forma panorâmica, no cristianismo primitivo, no período medieval e por fim no período moderno e faz algumas considerais sobre como está efetivada atualmente. Trata-se de uma reflexão que se inicia definindo estas duas ciências: filosofia e teologia, depois expondo suas relações e principais articulações nos três períodos da história mencionados acima. O ultimo intento desse artigo é indicar pistas para identificar essa relação no mundo contemporâneo.

Definindo os termos filosofia e teologia

A filosofia é antes de tudo um amor à sabedoria, uma amizade que se concretiza no ato de filosofar. O filósofo busca a sabedoria porque a ama, porque quer contemplá-la e vivê-la. Mesmo que não a alcance plenamente se satisfaz em continuar buscando, na verdade ele é consciente de que não a possui. Isso fica evidenciado na máxima socrática: “o verdadeiro saber consiste em saber que não se sabe”[1]. O não saber é o que move o filosofar, que é a busca pela sabedoria.

O sentido da vida do filósofo é a reflexão filosófica, ele deseja o saber pelo saber, sua relação não é interesseira. Sócrates também afirma isso: “uma vida sem meditação sobre a virtudes e outros assuntos não é digna de ser vivida”[2]. O Filósofo tenta entender o todo e articula sua vida à virtude, à medida que contempla a verdade. Sendo assim o bom filósofo não é o que constrói complexos sistemas abstratos distantes da vida concreta, mas o que é virtuoso. Ou seja, aquele que aplica a sabedoria no seu cotidiano. Por isso, a ética deve estar fundamentada na epistemologia, e uma epistemologia sem implicação ética é vazia e desprovida de sentido.

A teologia é uma ciência confessional para estudá-la é necessário fé, ou seja, é uma ciência da fé. Ela possui um método e rigor próprios, tendo em vista sempre compreender a revelação cristã e seu desdobramento na vida humana. Isso é propriamente teologia: uma reflexão séria que tenta resolver as dificuldades apresentadas à razão pela fé. Fazer teologia destina-se ao aprendizado da fé e a atitude de fé na vida. Sendo assim, se o bom filósofo é o homem virtuoso, o bom teólogo é santo, mas todo teólogo deve ser um homem de fé.

O objeto material da teologia é Deus. A fim de conhecer sua origem e como Ele se relaciona com seu povo as principais fontes da teologia são as Sagradas Escrituras e a Tradição Eclesial. Estes são os instrumentos do fazer teológico, cuja efetivação se dá no movimento dinâmico do auditus fidei (o ouvir da fé) e o intellectus fidei (o pensar a fé). Este é o método de construção teológica que mantém a unidade da teologia, sempre pensando sobre a mesma fé, bebendo em suas fontes para entender cada vez melhor a revelação de Deus em Jesus Cristo.

 

A relação entre filosofia e teologia no cristianismo primitivo

Tanto a filosofia quanto a teologia tentam dizer o todo. A filosofia a partir da razão e a teologia da revelação divina. Os filósofos antigos, diante disso, diziam que ambas são as mesmas ciências em veículos diferentes. De acordo com Pieper: “No ato de filosofar realiza-se a relação do homem com a totalidade do ser. Filosofar dirige-se para o mundo como um todo.”[3] Sendo assim, o filósofo é aquele que busca entender a totalidade da vida humana e responder às questões fundamentais que se impõe à razão: de onde viemos? Para onde vamos? O que é o mundo? Dentre outras questões que permanecem em constante construção no decorrer da história do pensamento.

Atualmente essa relação pode parecer abstrata, entretanto Ratzinger atesta que para os primeiros cristãos nunca foi uma relação abstrata. O filósofo não era entendido como alguém que pensa sobre a vida criando hipóteses mirabolantes, mas sim alguém que busca superar a vida enfrentando a morte. É sobre a morte que se une filosofia e teologia no cristianismo primitivo. A marca fundamental do filósofo nesse contexto é o fato de levar nas mãos o livro dos Evangelhos. Ratzinger afirma: “A fusão entre filosofia e cristianismo, que aqui, frente à questão da morte, manifesta-se como imagem da verdadeira questão da vida do homem, logo atinge uma densidade ainda maior. O filósofo passa a ser a imagem do próprio Cristo”[4].

O trecho supracitado relaciona o filósofo com Cristo, porque Cristo é o verdadeiro filósofo, compreendido no contexto do cristianismo primitivo. Ele consegue dar resposta para a morte e transformar a vida, isso fica evidenciado na ressurreição de Lázaro. Para Platão filosofar é morrer, porque o corpo aprisiona a alma impedindo-a de contemplar a verdade, que por ser imutável não está no mundo real, mas no inteligível. Nesse sentido, Cristo é o filósofo por excelência, de acordo com Ratzinger, uma vez que responde a vida mudando a morte e com isso mudando a vida.

No cristianismo primitivo o filósofo elaborava as ideias e conceitos sobre os quais se podiam entender a Revelação de Deus em Cristo. A mensagem cristã era refletida com as categorias e estruturas filosóficas. Existe, no entanto uma sútil diferença entre filosofia e conhecimento filosófico, dada por Santo Tomás de Aquino: “Filosofia é a razão pura procurando responder às questões últimas da realidade. Conhecimento filosófico é somente o conhecimento a que se pode chegar pela razão como tal, sem se recorrer à Revelação”[5]. Destarte, a filosofia por excelência era o próprio cristianismo, a relação entre filosofia e teologia era de profunda unidade e reciprocidade.

A relação entre filosofia e teologia no período medieval

O período medieval é criticado por muitos que o denominam como período das trevas. Há certo preconceito em relação à filosofia desse período, de um lado uns afirmam que existiu uma pseudofilosofia, uma espécie de teologia disfarçada de filosofia. Em outro extremo há os que defendem que a única e verdadeira filosofia foi construída no medieval. O melhor caminho é o bom senso, observar o percurso histórico realizado pela humanidade e reconhecer as contribuições de cada tempo.

De acordo com Etienne Gilson todo filósofo é filho de seu tempo, no sentido de que recebe influência do meio em que vive. A Filosofia medieval recebe o nome de filosofia cristã justamente por ter sido gestada num ambiente predominantemente cristão. Gilson a define assim: “É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distingue entre os domínios da ciência e da fé, demonstra suas proposições com razões naturais, e não obstante vê na revelação Cristã um auxílio valioso, e até certo ponto mesmo moralmente necessário para a razão.”[6]

Durante o período medieval a filosofia foi vista como serva da teologia, porque há uma relação estreita entre ambas, de tal modo que não há filosofia isenta de teologia. Mesmo o grande doutor da Igreja e expoente máximo do medievo, Santo Tomaz de Aquino, não faz separação entre as duas ciências. Cada uma tem o seu lugar, mas estão intimamente ligadas. Para ele: “O filósofo tira seus argumentos das essências das coisas, ou seja, de suas causas próprias. O teólogo, ao contrário, parte sempre da Primeira causa ou de Deus”[7]. Desse modo, a teologia medieval se reconhece como saber da fé, que utiliza a razão para compreender a Revelação de Deus explicando assim a fé. A filosofia como substrato racional fornece ferramentas e estrutura necessária à teologia nessa empreitada.    

A relação entre filosofia e teologia na modernidade

Grande representante do pensamento teológico moderno, o teólogo Karl Rahner afirma que a teologia deve estar articulada com a antropologia, e esta articulação se sustenta na filosofia. Sendo assim, o falar de Deus é mediado pelo falar do homem e sobre o homem. Faz-se teologia com centralidade antropológica. Trata-se de entender o homem em sua existência, com fundamentação na filosofia, para se refletir e discursar sobre Deus, enquanto expressão da própria confissão de fé cristã. Paulo Sérgio Afirma que para Rahner: “A preocupação fundamental da teologia é com uma produção teológica eficaz, e, para isso, vê na filosofia um partner interno à própria ciência teológica.”[8]

Tanto a filosofia quanto a teologia estão em decadência nos últimos tempos, devido a um problema de concepção, onde há separação da vida moral do teólogo e do filosofo e seu pensamento. Muitas são as produções, as discussões e as propostas, no entanto o mundo continua o mesmo. Na filosofia nunca se falou tanto de Ética, no entanto vivemos uma crise da Ética; na teologia nunca se falou tanto do pobre, no entanto a desigualdade social é cada vez maior. Talvez o melhor a ser feito seja aplicar na vida o que se contempla nas idéias.  



[1] PLATÂO. Diálogos. Coleção os pensadores. São Paulo: editora Nova Cultural, 1999. Pág 73

[2] Idem Pág 91

[3] PIEPER, Josef. O que é Filosofar?. Trad. Francisco de Ambrosis e Pinheiro machado. São Paulo: edições Loyola, 2007. Pág 55.

[4] RATZINGER, Joseph. Natureza e Missão da Teologia. Pág 14.

[5] Idem Pág. 15.

[6] BOEHNER, Philoteus. GILSON, Etienne. História da filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Trad. Raimundo Vier. 11 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.  Pág. 9

[7] Summa contra gentiles II, 4 in: Idem 6.  Pág 450

[8] GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Ontologia Hermenêutica e teologia. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2011. Pág. 25