A relação da moradia com a rua é uma das relações mais velhas dentro da existência humana. Apesar de não pensarmos nessa relação da casa e a rua como ciência, o Urbanismo a estuda e trata-a de forma tão importante como o sociólogo estuda a vida social, as relações entre os seres humanos e os seus fenômenos no decorrer da história. Assim como a sociologia estuda os fenômenos sociais, o Urbanismo estuda as cidades. O urbanista investiga as relações entre as edificações, a malha urbana e como tudo isso evolui através do tempo. Somos nós arquitetos e urbanistas os responsáveis pela compreensão de como essa transformação urbana afeta as pessoas e como ela direciona a evolução dos aglomerados urbanos.

Podemos estabelecer fundamentalmente duas relações entre a moradia e a rua. A primeira é a relação física: lotes, curvas de nível, linhas de divisa, afastamentos, calçadas, passeios, meio-fio, recuos, orientação solar, etc. A outra é a relação psicológica. Essa relação psicológica que não está escrita em nenhum lugar, mas é definida de maneira “não dita”, por conceitos ou tabus existentes no subconsciente ou na psique da sociedade.  Esses valores ou conceitos _ou pré-conceitos_ são muitas das vezes, mais fortes e tem um peso mais decisivo do que a relação física da edificação com a rua, por assim dizer. Isso porque em muitas sociedades a “Rua” é vista com um lugar de menor valor, um lugar mundano. As diversas expressões em encontradas em nossa língua sobre a rua exemplifica isso de maneira bem explícita: “Seu lugar é na rua”, “gentinha da rua”, “jogar você no olho da rua”, são alguns exemplos entre muitos outros. Através dessas expressões populares, a rua é colocada como um lugar sujo, de baixo nível ou que insinua vergonha!

 A rua nas antigas comunidades árabes, ou do Oriente Médio, era um espaço no qual as pessoas se encontravam, faziam compras, se relacionavam de modo informal. Essa dinâmica de inter-relação das pessoas se dava espelhando a relação das ruas com as moradias. As ruas serviam quase como uma “sala pública” aonde as pessoas se juntavam para se socializarem, conversar ou fazer negócios. Era comum nessas comunidades, a construção de vias de comunicação entre a rua e a edificações através de becos, vielas e passagens. As casas tinham comunicação com os nichos urbanos ou alcovas públicas de uma forma bem próxima. As pessoas dessas comunidades transitavam de maneira espontânea entre esses corredores e alcovas das comunidades de modo rotineiro, porque esse comportamento fazia parte da vida social. Na idade média, apesar das duras leis comportamentais impostas pela igreja católica, muitas das cidades europeias exibiam o mesmo modelo e desenho urbano. Esses espaços, além de servirem como meios de comunicação entre as casas e comércio, promoviam o convívio das pessoas numa atmosfera dinâmica. As ruas nessas sociedades possuíam uma interligação com a moradia diferentemente das comunidades ocidentais que conhecemos hoje. Nas cidades gregas, aonde não existiam muros em volta das casas, recuos de lote e toda essa parafernália urbanística de hoje, a relação entre a rua e a casa era dramaticamente diferente do que conhecemos nas cidades ocidentais modernas. Não havia os elementos urbanísticos contemporâneos, meio-fio, recuo de lotes, cercas, muros altos entre os lotes, e muitas vezes a calçada se misturava as vias de transito para o transporte da época. As favelas dos países da América Latina possuem parte dessas características, aonde os becos e ruelas interconectam com as casas, através de uma malha viva “desplanejada” dentro dessas comunidades. Existe uma relação muito mais próxima entre a rua e a moradia apesar da violência e alta criminalidade nessas comunidades. Talvez a ausência de infraestrutura planejada, a informalidade construtiva e a relação social menos sofisticada sejam os maiores fatores para esse fenômeno.

No decorrer do tempo a casa, nas cidades ocidentais, foi se afastando da rua. Aquele “namoro de muitos séculos entre esses dois elementos urbanos virou mais uma relação de negócio do que uma relação comunitária. Aquela coisa de sentar-se à “porta-da-rua” e curtir a vizinhança, olhar quem passava e conversar com as pessoas, praticamente acabou nas grandes cidades. Isso só acontece em pequenas comunidades ou em cidades do interior. Nas grandes cidades ocidentais, a rua passou a ser um encargo social com taxas de serviço, impostos e manutenção com um alto custo. A rua deixou de ser a “namoradinha” da casa e virou uma “ex-esposa” que entrou na justiça e ganhou uma pesada “pensão” pra ser mantida operante. Para manter a rua em funcionamento, o estado impõem pesados impostos de todos os gêneros (impostos predial e territorial, taxas de água, luz, esgoto, lixo etc.) para sua manutenção. No decorrer dos anos, os moradores das grandes comunidades trocaram a rua aonde os casais passeavam, aonde a comunidade se encontrava e as crianças brincavam livremente, por outros lugares mais formais como os shopping malls, clubes de fitness, bares e restaurantes. 

Nas grandes cidades da América do Norte, a relação da rua com a moradia passou a ser predominantemente econômica. Quando se pensa em negociar a compra ou a venda de uma casa, por exemplo, pensa-se na rua como um elemento que irá influenciar no preço da edificação. A rua nessas comunidades faz parte de uma complicada equação para se determinar o preço do imposto sobre a propriedade, chamado de property tax.  Se a via tem muito transito irá baratear o preço da casa, pois envolve questões de segurança e de altos seguros para a propriedade. Se a casa está localizada numa via principal predominante de muito comércio, isso também irá influenciar no preço da casa de forma depreciativa, e assim por diante. Se a via de acesso requer uma alta manutenção com remoção de neve, manutenção asfáltica e paisagística, maior iluminação pública esses fatores irão impactar diretamente nos impostos da moradia e consequentemente no seu preço de compra e venda.

Antigamente, os moradores das cidades queriam ruas com comodidades, comércio e serviços comunitários, porque o transporte público era escasso e as dificuldades de locomoção eram maiores. As pessoas queriam morar próximas ao comércio e os serviços urbanos, por isso a aglomeração maior de residências era na parte central das cidades. Em cidades do interior do Brasil, isso é ainda mais acentuado devido às poucas rodovias e as grandes distancias. Existia pouca distinção entre o centro da cidade e bairros. Hoje existe uma inversão de valores devido ao crescimento desordenado das cidades, a violência cotidiana, alto trânsito de veículos e as mudanças nas inter-relações das pessoas mesmo dentro da própria vizinhança.  A verdade é que as pessoas trocaram os deleites das calçadas, da conversa na “porta-da-rua” pela televisão e pelas redes sociais cibernéticas. As ruas com bares, rede de comércio e com vias mais generosas, são as menos procuradas pra quem quer comprar uma casa hoje em dia. Isso porque no subconsciente da sociedade dessas cidades, esses estabelecimentos potencialmente podem gerar barulho, algazarra, muito trânsito de automóveis e maior insegurança. Atualmente, os moradores querem uma rua limpa, com segurança e que irá influenciar de maneira positiva no valor de suas casas. Até ai tudo bem, nada de errado. Mas o que aconteceu com aquela relação de “namoro” entre a casa e rua? Aonde foi parar aquele senso familiar de relação com comunidade local e seus vizinhos? Do ponto de vista do arquiteto, do que vale ter uma rua limpa e bem cuidada se ela não possui vida? Se seus cidadãos não a usufruem, e se ela serve apenas como meio para circulação de automóveis? Fazendo uma análise inversa, pergunto: qual é o valor de uma rua numa vizinhança vibrante, aonde seus moradores sentem medo de sair à noite, aonde as calçadas são mal cuidadas e há riscos de acidentes?

Nas grandes cidades da América do Norte, a concepção de rua viva, aonde as pessoas se juntam para realização de festas comunitárias ou celebrações populares está desaparecendo. As festas e celebrações em vias públicas perderam o caráter comunitário e passaram a ser acontecimentos patrocinados pelo o estado, ou por empresas de cunho privado. Em certas comunidades norte americanas, aonde existe um recente fluxo de imigrantes, a relação da casa com rua está sofrendo um processo de transformação bastante profundo. A relação amistosa das comunidades sedimentadas, deram lugar à separação e desconfiança. Os novos fluxos imigratórios de etnias diversas, antes inexistentes, criaram uma diferente dinâmica dentro dessas vizinhanças. Por causa das diferenças na origem cultural e religiosas, e muitas vezes carregadas de estigmas pejorativos, esse processo imigratório leva ao esfacelamento dessas comunidades. Visto que a segregação e a migração dos antigos moradores para outros bairros, estão rompendo os laços comunitários antes presente nessas sociedades. Um fenômeno cada vez mais observado é o fato de vizinhos que moram lado-a-lado por vários anos e nem sequer se conhecem. Apesar da inexistência de muros altos entre as residências, às vezes, encontramos barreiras muito mais intransponível do que os muros decorados com cacos de vidro e arames farpados das comunidades latinas. Cabe a pergunta: de que vale viver numa rua limpa, bem cuidada do ponto de vista estético e quase impecável no seu esmero se essa rua não exibe vida? Não proporciona convívio entre seus moradores e nem promove o senso de comunidade entre as pessoas?

Um outo fator que colabora para distanciar a casa da rua nesses países, é o longo inverno. Com as duras temperaturas negativas, as pessoas são obrigadas a usarem mais seus automóveis para se deslocarem. O sistema de aquecimento dos veículos garante a locomoção muito mais confortável do que andar a pé pelas calçadas muitas vezes abarrotadas de neve. No Canadá e na parte do norte dos Estados Unidos, aonde o inverno persiste por seis meses com temperaturas extremamente frias, o deserto da rua é notório durante toda estação frígida. Isso de alguma forma também influencia no subconsciente das pessoas. Acostumadas com o longo inverno, aonde o carro é usado exaustivamente, as pessoas acabam esquecendo-se de usufruir das ruas residenciais mesmo no verão.

No Brasil e na grande parte da América Latina, historicamente e politicamente, a rua sempre foi relegada ao segundo plano das prioridades da administração pública nos vários níveis do poder. Mesmo que o aparecimento de inúmeras cidades no nosso país se deu por causa de atividades econômicas ou por proteção do território, o traçado inicial das ruas e o desenvolvimento da malha urbana das cidades se deram em função das edificações religiosas. Como via de regra, as ruas apareciam a partir da igreja que se posicionava num local estratégico e central da cidade. Na grande maioria das cidades brasileiras do período colonial, o adro ou largo central era construído junto às igrejas. Mesmo sendo um elemento urbano, esses largos que faziam parte das construções religiosas, eram uma extensão do canteiro da igreja. A partir daí as ruas eram criadas e delineadas. Apesar de existir uma orientação por parte do governo das capitanias para que se seguisse um padrão para o formato das ruas, quase sempre essa orientação era ignorada. A malha urbana era então construída obedecendo aos interesses políticos e religiosos de cada cidade. Segundo Gilberto Freyre em seu livro Casa Grande e Senzala, essa configuração urbana brasileira é “o resultado direto da influência de certas tipologias edificatórias e urbanas trazidas ao Brasil pelos portugueses, e de como estas eram estruturalmente ligadas ao tipo de sociedade estabelecida no Brasil.”

“A relação entre família rural e latifundiária da colonização portuguesa no Brasil, confrontada com a teocrática idealizada pelos jesuítas e com a espanhola e francesa, tem uma enorme importância na formação da cidade da América do Sul.” _ Aldo Rossi, A Arquitetura da Cidade.

 Depois do período colonial este cenário pouco mudou. Mesmo com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, poucos beneficiamentos foram feitos para dar à rua um lugar de destaque na paisagem urbana do Brasil. A cidade do Rio de Janeiro foi contemplada com abertura de avenidas e praças, logradouros públicos, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e alguns prédios como o Museu Nacional, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, durante a estadia da família real. Entretanto, essas interferências não foram radicais, isto é, não alterou o cerne da etnografia urbana brasileira. Como exemplo, podemos citar que a primeira real reforma urbana da capital federal de então, o Rio de Janeiro, só veio a acontecer em 1903 com Francisco Pereira Passos que assumiu o cargo de prefeito do Distrito Federal. Essa reforma era formada de 196 projetos, que dentro os quais, contemplavam o reordenamento da malha urbana, escoamento das aguas pluviais, reaproveitamento do solo urbano, melhoramento dos serviços da prefeitura, construção de novas escolas primárias, melhoramento do sistema de saúde público e abertura de avenidas litorâneas e melhoramento na distribuição de produtos para a população. Esses melhoramentos fizeram crescer o sentimento progresso na população do Rio de Janeiro que solicita renovação e ampliação do sistema de iluminação pública através da concessão desses serviços ao Grupo Light, uma empresa canadense que se instala no Rio de Janeiro nesse período.

Porém, a modernização das cidades brasileiras e de seu sistema viário, só acontece em alguns casos isolados e somente em algumas cidades mais importantes do Brasil. As ruas das cidades brasileiras continuaram, em geral, relegadas a um serviço mínimo de manutenção e cuidados.  Mesmo com a construção de Brasília e euforia popular gerada pelo desenvolvimento durante a administração do Presidente Juscelino Kubitscheck, a modernização das cidades e o melhoramento das condições urbanas em todo país não chegou a transformar a realidade ou mudar a concepção da população com relação à rua. A rua continua a ocupar um ranking secundário dentro do arquétipo sobre a paisagem urbana.

“Aliás, nunca seria demais insistir na importância dos fatores históricos no Brasil, mesmo numa época em que o país tenta libertar-se das limitações impostas pelo passado. A herança socioeconômica por ele deixada ainda hoje interfere na arquitetura da cidade: divisão dos terrenos em lotes –cujas dimensões e orientação em relação à rua só foram mudando gradualmente – e a organização interna das habitações, concebida em função das facilidades oferecidas pelo trabalho escravo, frearam consideravelmente o ritmo de evolução, que se deu muito lentamente, pelo menos até a época das grandes transformações econômicas e sociais decorrentes da revolução industrial e mesmo a revolução industrial não provocou o desaparecimento de tais influências, como veremos.” __ Yves Bruand, A Arquitetura Contemporânea no Brasil

Como podemos observar a rua foi marginalizada na psique da sociedade desde quando as cidades brasileiras foram fundadas. A concepção social foi formada para acreditarmos que a rua é o lugar sujo e mundano, enquanto a casa, ao contrário, representa um ambiente sagrado! Na nossa sociedade, a expressão “morar na sarjeta” representa decadência ou escória. Isso porque, essa expressão popular, além de aludir a falta de poder econômico, sugere que quem mora na rua, na qual o esgoto corria, é um lugar humilhante. Infelizmente, esse cenário de esgoto correndo pelas ruas é ainda comum em muitas cidades brasileiras nos dias de hoje. Como a nossa educação social sempre foi magra, além do esgoto, a população sempre depositou o lixo de toda a espécie em nossas via públicas, denegrindo ainda mais a imagem da rua. Ao contrário do comportamento social em cidades do mundo civilizado, aonde é inaceitável a prática de jogar lixo no chão*, nas cidades brasileiras, esse comportamento é aceitável e corriqueiro. Essa prática absurda de jogar o lixo nas ruas reforça ainda mais a imagem que a rua é um lugar “sujo” na psique da sociedade. Não é à toa que a sociedade facilmente associa quem mora na rua com a ideia de que esses indivíduos sejam sujos, de baixos princípios e sem educação! Como vemos aqui, existe uma caracterização falsa de que a rua é um lugar menos nobre, um lugar sujo. Isso porque os poderes públicos e a falta de educação social negaram à rua os cuidados fundamentais necessários que são tão comuns nos países desenvolvidos. Essa negligência econômica e moral do poder público para com a rua, e para com a própria população, produziram com o decorrer do tempo, grandes prejuízos para as cidades e para nossa sociedade. Além da deterioração física e a falta de manutenção, as ruas herdaram a imagem do “vilão” que não é merecedor de respeito. Isso pode ser comprovado pelo volume de lixo e detritos depositados em nossas ruas diariamente. Esse açoite cotidiano a esse elemento urbano é uma ação constante por parte do poder público e da população que, por não ser educada, a usa e a destrói ao mesmo tempo. A rua em nossa cultura urbana é a “Gení” das cidades!

E o que acontecerá se continuarmos nessa trilha destrutiva? É evidente que a moradia sem a rua não faz sentido, e o mesmo vale para o raciocínio reverso. Por mais que lancemos mãos de medidas paliativas ou ações pontuais, a verdade é, que esse é um processo que está movimento, ele não para. Enquanto houver seres humanos nesse planeta, a moradia e a rua estarão de alguma forma juntas. Por isso mesmo, precisamos achar soluções a longo prazo. Soluções que irão nortear essa relação para algo melhor e mais humano. É necessário que a nossa sociedade eventualmente compreenda que tanto a moradia como a rua merecem ser respeitadas igualmente. Devemos acreditar de novo nesse “namoro” e vê-lo além do patamar econômico ou de empreendimento imobiliário. É imperativo que a população usufrua da rua como antes, que as crianças se sintam seguras e que a comunidade volte a olhar para a rua como uma extensão de suas casas. É necessário que aprendamos com as nações mais desenvolvidas a cuidar melhor dessa relação e dedicar maior carinho à rua. Devemos dar melhor atenção a esse elemento urbano tão fundamental a qualquer comunidade, cidade ou país. Pois sem ele, a concepção de sociedade e organização urbana não existe.

* Em várias cidades do mundo civilizado, o cidadão que suja a rua recebe pesadas punições e pode ser sentenciado a limpá-las através de serviço comunitário. Singapura, Miami, Londres, Dublin, Dubai e em várias cidades ao redor do mundo, jogar lixo no chão é crime e os ofensores podem ser penalizados com pesadas multas e até mesmo ir para a cadeia.

Arq. Avelino Neto