A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA E O CONSTRUTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO: Uma análise do critério espacial da hipótese de incidência do Imposto sobre Serviços – ISS, à luz da doutrina de Paulo de Barros Carvalho.

Cynthia Esteves de Andrade

Acadêmico de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB

Mariana Costa Heluy

Acadêmico de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB

Trabalho orientado pelo Prof. Me. Antonio de Moraes Rego Gaspar, professor, Mestre em Direito tributário, advogado.


RESUMO

O presente trabalho pretende analisar o critério espacial da hipótese de incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS, buscando entendê-lo sob a ótica da doutrina de Paulo de Barros Carvalho. Pretende-se verificar os parâmetros do critério espacial da hipótese de incidência da norma tributária, identificando, a partir do fato jurídico escolhido, inicialmente, os critérios material, temporal e espacial do ISS, com ênfase nest’último. Em seguida, analisar-se-á o referido tributo à luz do princípio da territorialidade e do âmbito de vigência territorial da norma para enfrentar o problema da possível inconstitucionalidade na cobrança do ISS pelo Município onde se encontra a sede da empresa geradora do tributo, quando o serviço foi realizado em Município diverso, trazendo posições jurisprudenciais relevantes para o caso.

Palavras-chave: Hipótese de Incidência, ISS, critério espacial, princípio da territorialidade, âmbito de vigência territorial da norma.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN ou ISS, tal como prevê o inciso III do art. 156 da Carta Magna, é de competência dos Municípios e tem sua definição em Lei Complementar, qual seja a LC 116/2003 (BRASIL, 1988; 2003). Nada obstante o art. 3º da LC 116/2003 preceituar que o imposto será devido no local do estabelecimento prestador ou no local do domicílio do prestador, com exceção das hipóteses previstas em seus vinte e dois incisos, mediante as quais considerar-se-á devido o imposto no local da efetiva prestação do serviço,  há na doutrina nacional recorrente dúvida: Qual seria o critério espacial de incidência do ISS: o local do estabelecimento prestador ou o local de prestação do serviço? (CARVALHO, 2009; FORTES, 2009; KOSSAR; SOMMA, 2008).

Considerando a significativa contribuição do ISS no quadro nacional das receitas tributárias (FORTES, 2009), entende-se que a busca por maiores esclarecimentos nesta seara reveste-se de relevância suficiente que justifique a escolha e delimitação do tema a ser abordado no presente trabalho.

Ao buscar respostas para a indagação levantada far-se-á um estudo acerca da regra-matriz de incidência desenvolvida pelo Professor PAULO DE BARROS CARVALHO, que serve como instrumento de interpretação da norma tributária, na medida em que apresenta uma análise minuciosa dos vetores que orientam os comportamentos humanos a fim de que seja atingida a meta da regra jurídica tributária: uma conduta verificável no mundo do ser que espelhe a conduta desejável no mundo do dever ser (CARVALHO, 2007).

A presente pesquisa terá como base teórica subsidiária, portanto, a proposta epistemológica do supracitado citado mestre, a qual procura explicar a incidência da norma tributária sob o viés da semiótica e da linguagem, com atenção aos critérios material, temporal e espacial, especialmente este último, que se subdivide em pontual, regional, territorial e universal (CARVALHO, 2009); o princípio da territorialidade do critério espacial e noções acerca do âmbito de vigência territorial da norma.

Objetivando calcar o presente estudo, a metodologia empregada dar-se-á por meio de pesquisa bibliográfica, permitindo a elucidação do assunto abordado tendo em vista a posição doutrinária elegida. Analisar-se-á, em seguida, como a jurisprudência vem se posicionando em relação ao problema apresentado.

 

2 A REGRA-MATRIZ TRIBUTÁRIA

 

Num primeiro momento, far-se-á uma apresentação, ainda que forma bastante resumida dada a limitação do presente paper e a complexidade de dita estrutura teórica, do “esquema lógico-semântico” construído pelo Professor PAULO DE BARROS CARVALHO, cuja base remonta aos ensinamentos de Augusto Becker e Geraldo Ataliba (CARVALHO, 2009, p.281), com atenção aos conceitos ali permeados de linguagem, realidade, teoria dos sistemas, semiótica, lógica, norma jurídica.

Para CARVALHO (2007), o direito é uma linguagem, enquanto “veículo de expressão” que manifesta normas jurídicas, que incide sobre a linguagem social da realidade em que vivemos (CARVALHO, 2007, p.13). É, portanto, o direito uma sobrelinguagem, que prescreve condutas e fatos juridicamente relevantes que, em ocorrendo no mundo fenomênico, no âmbito da linguagem social de base, deverão desencadear efeitos no mundo jurídico (CARVALHO, 2007). Percebe-se que a linguagem jurídica, como toda linguagem, “é redutora do mundo sobre o qual incide” (CARVALHO, 2007, p.13), ou seja, incidirá apenas naqueles aspectos da realidade social julgados relevantes pelo legislador ao criar a norma posta. Sobre essa seleção, pondera Aurora Tomazini de Carvalho (2009):

 

O legislador ao escolher os acontecimentos que lhe interessam como causa para o desencadeamento de efeitos jurídicos e as relações que se estabelecerão juridicamente como tais efeitos, seleciona propriedades do fato e da relação [...] Todo conceito é seletor de propriedades, isto quer dizer que, nenhum enunciado capta o objeto referente na infinita riqueza de seus predicados, captura apenas algumas de suas propriedades, aquelas eleitas pelo observador como relevantes para identificá-lo (CARVALHO, 2009, p.281).

 

Neste sentido, a hipótese da incidência normativa é aquela conduta ou fato que tem o condão de autorizar “o desencadeamento de efeitos jurídicos” a que a supracitada autora se refere, caso seja verificada sua ocorrência; e a esses efeitos dá-se o nome de consequente (CARVALHO, 2009). Essas especificações ou escolhas de acontecimentos, que requerem uma atividade prévia do legislador, cujo resultado são “proposições hipotético-implicacionais” (CARVALHO, 2007, p.88,89) estão no campo do dever ser, que é a seara do direito posto, e passarão a integrar o mundo do ser a partir da verificação prática real dessas hipóteses e seus consequentes (CARVALHO, 2007).

O acontecimento da hipótese, por óbvio, deverá ser ao menos genericamente identificado, como será mais detalhadamente visto no item 2.1 adiante, pelo seu aspecto material ou “propriedades da ação nuclear deste acontecimento” (CARVALHO, 2009, p.282), bem como pelos critérios temporal e local (espacial). Já o consequente requer sejam delineados os sujeitos e o objeto da relação, ou seja, a obrigação, proibição ou permissão que é imposta a um dos sujeitos em relação ao outro (CARVALHO, 2009). Tanto a hipótese quanto o consequente, construídos a partir da delimitação dos “elementos significativos” anteriormente mencionados, são “normas de incidência” e “normas produzidas como resultado da incidência”, respectivamente, sendo que as primeiras refletem normas gerais e abstratas e as segundas normas concretas e individuais, haja vista a subjetivação do objeto, tal como previamente explanado (CARVALHO, 2009).

Lembrando que todos os aspectos e conceitos até aqui mencionados podem ser usados na interpretação de todos os ramos do Direito, inclusive na seara do Direito Tributário (CARVALHO, 2007), sobre o qual o presente paper pretende se debruçar.

A regra-matriz de incidência tributária, enquanto “norma padrão de incidência” (CARVALHO, 2009, p.284) é, portanto, uma norma geral e abstrata que prevê acontecimentos genericamente delimitados no âmbito do dever ser, que, ao se concretizarem no mundo do ser, sofrerão as consequências da operação lógica de subsunção realizada pelo intérprete para, então, verificar-se, como resultado, a norma concreta e individual, que traz consigo “a descrição de um evento especificamente determinado” (CARVALHO, 2007, p.96). Ressalte-se que necessária é a subsunção, realizada pelo intérprete da norma, para que esta possa incidir juridicamente provocando os resultados que lhe são previstos. Explica-nos, com a facilidade que lhe é peculiar, o autor de Direito Tributário Fundamentos Jurídicos da Incidência:

 

Admitamos que um comerciante venda mercadorias, numa operação sujeita à incidência do ICMS. Não emite nota fiscal ou qualquer outro documento que possa atestar, lingüisticamente [sic], o evento. Digamos, também, que, ao comparecer ao estabelecimento daquele comerciante, o fiscal de rendas do Estado não tenha elementos (de linguagem) para certificar aquela operação. A conclusão é fulminante: juridicamente não aconteceu o fato e, portanto, nenhuma obrigação tributária se instalou (CARVALHO, 2007, p.97).

 

Outrossim, a análise da expressão “regra-matriz de incidência” revela o seguinte entendimento mediante a qualificação dos termos que a compõem: regra refere-se à norma jurídica que é construída a partir do Direito posto por meio da atuação do intérprete; matriz diz respeito à configuração de um “modelo padrão” na construção e aplicação da norma concreta e individual; e o termo incidência implica a previsão intrínseca de aplicação que consta dessa norma posta (CARVALHO, 2009, p.284).

Integram a regra-matriz de incidência (RMI), portanto, conforme já visto, os critérios material, espacial e temporal que identificam a hipótese, bem como as delimitações pessoais dos sujeitos da relação e, ainda, a obrigação ou prestação obrigacional que se impõe a um desses sujeitos em relação ao outro. Dada a dificuldade de visualização de tantos termos abstratos, recorremos aos efeitos ilustrativos, dispostos na tese de Aurora Tomazini de Carvalho, que melhor esboçam a tese do Professor Paulo de Barros Carvalho (CARVALHO, 2009, p.285):

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Figura 1: Regra-matriz de incidência tributária (CARVALHO, 2009, p.285).

Respeitando a delimitação a que se propõe o presente trabalho, far-se-á um estudo mais aprofundado apenas acerca dos critérios da hipótese no esquema lógico da regra-matriz de incidência, conforme o item que se segue.

 

2.1 Critérios da hipótese

 

Cumpre lembrar, primeiramente, que os critérios da hipótese visam servir de sinalização ao intérprete a fim de que este consiga identificar quando da ocorrência de um acontecimento juridicamente relevante para que possa nele incidir os efeitos predeterminados em normas jurídicas vigentes no ordenamento (CARVALHO, 2009). Imbuídos nesta finalidade os critérios de determinação da hipótese, da forma idealizada por PAULO BARROS DE CARVALHO (2007 apud CARVALHO, 2009), desenham contornos da ação ocorrida bem como suas coordenadas temporais e espaciais.

O elemento material da RMI é representado por um verbo, no tempo passado, um complemento e um agente que realizou a ação, operando mudanças no campo da realidade, sendo, portanto, um acontecimento no mundo fenomênico (CARVALHO, 2007). A principal mensagem que passa esse elemento é “a alteração que o enunciado proclama como tendo havido no campo dos objetos da experiência” (CARVALHO, 2007, p.148), de tal forma, que podemos observar, já especificamente na seara do Direito Tributário, os seguintes exemplos:

 

[...] fulano de tal prestou serviços tributáveis no Município, certa companhia industrializou produtos (IPI), a empresa X realizou operações relativas à circulação de mercadorias, a empresa Y importou produtos do exterior, a instituição Z praticou operações financeiras, o Estado E exercitou seu poder de polícia [...] (CARVALHO, 2007, p.148). à precisa deste colchete no começo e no fim da citação direta longa? sempre usei apenas nos casos de “saltos” no meio da citação.

 

Trata-se da descrição de um “proceder humano [...] condicionado no tempo e no espaço” relevante ao ponto de ser “promovido à categoria de fato jurídico”, sendo o núcleo delimitador da hipótese da regra-matriz de incidência (CARVALHO, 2009, p.281).

Já o critério temporal é o “feixe de informações”, disponível explícita ou implicitamente, que possibilita a identificação do exato momento em que se deu a atuação do agente no mundo fenomênico (CARVALHO, 2009, p. 298). PAULO BARROS DE CARVALHO (2007) prevê a existência de dois tempos diversos: o tempo do fato e o tempo no fato. O tempo no fato, referente a uma data cronologicamente anterior, representa o momento da “ocorrência concreta de um evento”, como por exemplo: “no dia 1º de janeiro de 1996, realizou-se o fato de alguém ser proprietário de bem imóvel” (CARVALHO, 2007, p.150). O tempo do fato configurar-se-á, com relação ao exemplo citado, quando ocorrer o respectivo “lançamento tributário, celebrado por agente competente da Fazenda Pública e devidamente notificado o sujeito passivo” (CARVALHO, 2007, p.150). Percebe-se que este último aspecto do elemento temporal está diretamente ligado com a inscrição da norma concreta individual no ordenamento do direito posto, enquanto o primeiro subentende a norma geral e abstrata (CARVALHO, 2007).

O critério espacial, a que este trabalho se dedica, da mesma forma que o elemento temporal, conforme visto, será encontrado explícita ou implicitamente e representará, com exatidão, o local em que ocorreu a ação realizada pelo agente do núcleo da hipótese normativa na RMI (CARVALHO, 2009). E, assim como no elemento temporal, há o lugar no fato e o lugar do fato, sendo o primeiro o local em que se dá a ocorrência da ação do verbo apontado na hipótese, enquanto que o segundo refere-se à “localidade em que se expediu o enunciado jurídico-prescritivo”, o qual compreende a norma concreta individual ingressando no ordenamento do direito posto (CARVALHO, 2007, p.151). A diferença é que no caso do elemento espacial esses dois locais podem coincidir, pois que “em muitas oportunidades, a produção do fato acontecerá no mesmo local apontado como tendo ocorrido o evento” (CARVALHO, 2007, p.151).

Ainda sobre as coordenadas espaciais, pode-se dividir esse critério em quatro âmbitos distintos: pontual, regional, territorial e universal (CARVALHO, 2009). O pontual refere-se a uma coordenada específica que aponta um “determinado local para a ocorrência do fato”; o regional traz informações que levem o intérprete a procurar apenas por acontecimentos ocorridos dentro de uma determinada delimitação geográfica; o territorial é uma delimitação mais genérica “onde todo e qualquer fato, que suceda sob o mato [sic] da vigência territorial da lei, estará apto a desencadear seus efeitos peculiares” (CARVALHO, 2009, p.294); e o universal extrapola os limites da competência legislativa uma vez que “alude a qualquer lugar, mesmo que fora do âmbito territorial em que a regra está apta a produzir efeitos jurídicos” (CARVALHO, 2009, p.196).

Mister ressaltar que uma teoria formulada, a exemplo da proposta epistemológica do Professor Paulo de Barros Carvalho, no âmbito do Direito importa sobremaneira aos operadores do direito que pretendam entender, ou “conhecer” a realidade jurídica, lembrando que a “teoria explica a prática e a prática  confirma ou infirma a teoria” (CARVALHO, 2009, p. 19). Desta forma passemos a uma verificação da teoria até então explanada, ainda que de forma sucinta, para, de fato, analisarmos a aplicação da regra matriz de incidência tributária considerando o critério espacial do Imposto sobre serviços – ISS.

 

3 CRITÉRIO ESPACIAL DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – ISS

 

O Imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN ou ISS) surgiu por meio da Emenda Constitucional nº 18, de 1º/12/1965, com previsão específica em seu art. 15, e substituiu o Imposto sobre indústrias e profissões (IPP) (SABBAG, 2012). A mudança, entretanto, deu-se em aspectos outros além da nomenclatura. O antigo IPP, que teve sua competência inicialmente estatal alterada para municipal, com a Constituição Federal de 1946 (SABBAG, 2012), previa a tributação sobre o “efetivo exercício de qualquer profissão lucrativa”, enquanto que o atual ISS apresenta como elemento material da hipótese de incidência a “efetiva prestação de serviços” (ARANHA, 2001, p.283).

A versão inicial do art. 156 previa em seu inciso IV a competência tributária municipal no que se refere aos serviços de qualquer natureza, excetuando-se os dispostos no art. 155, I, b, ou seja, serviços de transporte intermunicipal e de comunicação (BAPTISTA, 2005). Entretanto, o aludido artigo 156 sofreu alterações por meio das Emendas Constitucionais nº 03, de 13/03/1993, e nº 37, de 12/06/2002, e hoje está assim definido na Carta Magna (BRASIL, 1988):

 

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre [...]

III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. [...]

§3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:

I – fixar as suas alíquotas máximas e mínimas;

II – excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior;

III – regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

 

Percebe-se, desta forma, que por imposição constitucional “estão fora do campo de incidência do ISS os serviços cuja prestação é contemplada como hipótese de incidência de taxas, instituídas por qualquer das pessoas políticas, bem como do ICMS, de competências dos Estados” (BAPTISTA, 2005, p.178).

Outrossim, o ISS é um imposto municipal, que, embora dependa de lei ordinária, tinha, até 2003 (PIVA, 2012), sua “estrutura normativa” regulamentada pelo Decreto-lei nº 406/1968 (SABBAG, 2012, p.1016). Conforme o art. 12 do citado Decreto-lei, “considera-se local da prestação do serviço: a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador”, excetuando-se os casos de construção civil, nos quais a alínea b deste mesmo artigo prevê ser “o local onde se efetuar a prestação” (BRASIL, 1968). Entretanto, por força de decisões reiteradas, o Superior Tribunal de Justiça consolidou, por muito tempo, a exceção como sendo a regra ao estabelecer o local da prestação de serviços como delimitação do critério espacial do ISS (DERZI, 2004; PIVA, 2012). Notória é a insegurança jurídica advinda da abertura na norma abstrata geral proposta pelo art. 12 do Decreto-Lei citado, mais ainda quando entendimento jurisprudencial inverte as orientações precipuamente dispostas.

Buscando pacificar “os conflitos desencadeados” envolvendo a incerteza de delimitação do aspecto espacial do ISS (DERZI, 2004, p.61), a Lei Complementar nº 116, de 31/07/2003, “fixou a competência do Município de acordo com o território em que se situa o estabelecimento prestador – princípio da origem”, ratificando o disposto no art 12 do Decreto-lei nº 406/1968 (DERZI, 2004, p.65), entretanto ampliou as exceções a esta regra ao elencar vinte hipóteses em que o serviço “deverá ser considerado como prestado no local onde é executado” (PIVA, 2012). Sílvia Helena Gomes Piva (2012) delimita o problema a ser enfrentado:

 

[...] a utilização de todas essas regras em conjunto, sem que fosse estabelecido um equacionamento entre elas, também tem gerado a guerra fiscal, desta vez porque uma mesma prestação de serviços pode vir a ser tributada mais de uma vez, seja porque um Município entende que o ISSQN deverá ser pago no local do estabelecimento, seja porque outro Município pretenderá cobrar todos os serviços ocorridos dentro de seus limites territoriais, ainda que o prestador lá não se estabeleça, seja porque os tomadores poderão ser eleitos como responsáveis pelo pagamento do tributo sobre qualquer tipo de prestação de serviços e efetuarão a retenção deste, já recolhido no local do estabelecimento do prestador (PIVA, 2012).

 

Obviamente, as dúvidas acerca do critério espacial do ISS não cessaram, e aos intérpretes do direito cabe buscar meios de responder à questão recorrente: Qual seria o critério espacial de incidência do ISS: o local do estabelecimento prestador ou o local de prestação do serviço? (CARVALHO, 2009; FORTES, 2009; KOSSAR; SOMMA, 2008).

 

3.1 Princípio da territorialidade ou âmbito de vigência territorial da norma

 

Neste ponto do presente trabalho, será conduzida uma análise do fundamento da possível inconstitucionalidade na cobrança do ISS, buscando decidir se seria um caso de extraterritorialidade da norma ou de “confusão doutrinária entre o critério espacial e o âmbito de vigência territorial da norma”, como sugere Aurora Tomazini de Carvalho (2009, p.297).

Explica-nos BAPTISTA (2005), que a territorialidade é “o dado que permite traçar os limites do exercício da competência tributária entre os Municípios” (BAPTISTA, 2005, p.519). Para esse autor o critério material apenas incide na distinção da competência tributária de serviços no âmbito dos Estados e Municípios. Já na divisão de competências municipais o aspecto relevante repousa justamente sobre o critério espacial da hipótese normativa do ISS, ou seja, a partir da determinação de “incomunicabilidade territorial” entre Municípios (BAPTISTA, 2005, p.519). Continua sua análise acerca do polêmico caso do ISS, estudado nesse paper, para concluir que o equívoco foi do legislador complementar (LC nº 116/2003) ao considerar o local do estabelecimento ou do domicílio do prestador como sendo o local da prestação, uma vez que estaria extrapolando os limites, ainda que implícitos, abalizados pela Constituição Federal, que no seu entendimento seria conforme as palavras de GERALDO ATALIBA e AIRES FERNANDINO BARRETO (1984): “O aspecto espacial da hipótese de incidência é implicitamente extraível do Texto Constitucional. Se o arquétipo é a prestação de serviços, o aspecto espacial só pode ser reduzido ao local onde se efetua a prestação” (ATALIBA; BARRETO, 1984 apud BAPTISTA, 2005, p.525).

Mesmo entendimento apresentam KOSSAR; SOMMA (2008), ao considerarem que a territorialidade, enquanto princípio constitucional, deve orientar os conflitos existentes acerca da delimitação do critério espacial do ISS no sentido de que prevaleça o local da prestação do serviço e não o domicílio do prestador, como determina a LC nº 116/2003.

Neste ponto, é importante repisar que o local no fato, conforme visto no item 2.1, refere-se diretamente à “delimitação feita pelo critério espacial”, enquanto que o local do fato representa o “âmbito espacial de vigência da norma, como a delimitação territorial onde a regra está apta a produzir efeitos jurídicos” (CARVALHO, 2009, p.295). E é justamente esse o cerne da questão, conforme aponta CARVALHO (2009), para quem, no caso específico analisado, qual seja, o ISS, cujo critério de delimitação espacial da hipótese de incidência apresenta o subcritério universal, abordado no item 2.1, haveria uma recorrente “confusão doutrinária” visto que muito autores consideram inconstitucional “a cobrança do tributo pelo Município do local do estabelecimento comercial (LC 116/03), quando a efetiva prestação do serviço (fato jurídico tributário) se dá em outro município” (CARVALHO, 2009. p.297).

Para a supracitada autora o equívoco tem origem no fato de na maioria das vezes o critério espacial coincidir com o plano de vigência da norma (critério espacial territorial), e, portanto, quando o serviço a ser tributado pelo ISS ocorre noutro Município, para esses equivocados doutrinadores, data vênia, seria o caso de inconstitucionalidade da norma tributária devido à extraterritorialidade; quando, na realidade, a resposta resideria no critério pessoal do consequente normativo (CARVALHO, 2009). Sobre a alegada imposição constitucional de territorialidade, FORTES (2009) lembra que “A Constituição é fundada na livre iniciativa tem por objetivos reduzir as desigualdades e não garantir a territorialidade das leis” (FORTES, 2009, p.14).

Respeitadas as opiniões divergentes, lembra-nos PIVA (2012) que a lei posta no ordenamento vigente deve ser observada, portanto a LC nº 116/2003, apesar de carecer de certos ajustes, orienta o intérprete no sentido de considerar o estabelecimento prestador como abalizador do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, essa sendo, portanto, a regra geral. Percebe-se, outrossim, que o critério material também importa na definição do critério espacial do ISS (PIVA, 2012). E é nesse exato sentido o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme julgamento do Recurso Especial n. 1.117.121, em 14/10/2009, observado no voto da Relatora Min. Eliana Clamon:

 

[...] a partir da LC 116/2003, temos as seguintes regras: 1ª) como regra geral, o imposto é devido no local do estabelecimento prestador, compreendendo-se como tal o local onde a empresa que é o contribuinte desenvolve a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação, contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas; 2ª) na falta de estabelecimento do prestador, no local do domicílio do prestador. Assim, o imposto somente será devido no domicílio do prestador se no local onde o serviço for prestado não houver estabelecimento do prestador (sede, filial, agência,posto de atendimento, sucursal, escritório de representação); 3ª) nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, acima transcritos, mesmo que não haja local do estabelecimento prestador, ou local do domicílio do prestador, o imposto será devido nos locais indicados nas regras de exceção. (BRASIL, 2009, Relatório e Voto, p.5, grifo nosso).

 

Houve uma “alteração substancial da jurisprudência” do STJ, conforme aponta PIVA (2012), e pode-se afirmar que hoje o local da prestação dos serviços seria, portanto, regra de exceção indicada nos incisos I a XXII do art. 3º da LC nº 116/2003, prevalecendo o local do estabelecimento prestador como regra geral. Observa-se, destarte, o caráter universal do critério espacial da hipótese de incidência normativa do ISS, extrapolando os limites do âmbito de vigência da norma, ao ser desenhado pelos contornos do critério material “prestar serviços”, cuja análise remonta ao critério pessoal “quem presta os serviços” – o estabelecimento prestador.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Cumprindo a proposta inicialmente lançada, foi realizada uma pesquisa exploratória acerca do problema da suposta inconstitucionalidade de tributação do Imposto sobre serviços – ISS, considerando a dúvida recorrente sobre qual seria o critério espacial de incidência do ISS: o local do estabelecimento prestador ou o local de prestação do serviço. Para tanto, foi conduzido um estudo esclarecedor, ainda que resumido, da proposta epistemológica do Professor Paulo de Barros Carvalho, no que concerne a regra-matriz de incidência tributária, analisando os aspectos de delimitação dos critérios da hipótese, em especial o critério espacial, mais relevante para a pesquisa levantada.

Observou-se, no decorrer da construção deste paper, a discussão na doutrina quanto à aplicação da competência municipal do ISS de acordo com o critério do estabelecimento prestador, primeiramente orientada pelo art. 12 do Decreto-Lei nº 406/1968 e depois ratificada pela LC nº 116/2003, considerando o entendimento jurisprudencial do STJ até então, que tornava a exceção (local da prestação do serviço) a regra, bem como a questão envolvendo o princípio constitucional da territorialidade das leis, dada a possibilidade de tributação pelo Município fora do âmbito de vigência da norma.

Considerando, como pressuposto inicial, a importante distinção entre critério espacial e âmbito de vigência territorial da norma, bem como o caráter universal do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, que extrapola os limites territoriais do âmbito de vigência da norma sem implicar na extraterritorialidade desta, dada a autorização constitucional para tanto – considerando ainda a evolução jurisprudencial do STJ, que passa a entender ser a regra o local do estabelecimento prestador e a exceção o local da prestação do serviço, como preceitua a citada lei complementar – pode-se apontar como uma possível solução para a correta delimitação do caráter espacial da hipótese de incidência do ISS a verificação subsidiária dos critérios pessoal e material da norma tributária, debelando, desta forma, a insegurança jurídica até então observada.

 

REFERÊNCIAS

ARANHA, Luiz Ricardo Gomes. Direito Tributário: aprendendo. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. In: ANGHER, Anne Joyce (Org.). Vade mecum acadêmico de direito RIDEEL. 17.ed. São Paulo: Rideel, 2013.

______. Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968. Estabelece normas gerais de direito financeiro, aplicáveis aos Impostos sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Serviços de qualquer Natureza, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1968. In: ANGHER, Anne Joyce (Org.). Vade mecum acadêmico de direito RIDEEL. 17.ed. São Paulo: Rideel, 2013.

______. Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º ago. 2003. In: ANGHER, Anne Joyce (Org.). Vade mecum acadêmico de direito RIDEEL. 17.ed. São Paulo: Rideel, 2013.

______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1117121/SP/2009, S1 – Primeira Seção. Distrito Federal. Relator: Min. Eliana Calmon. Brasília, 14, out, 2009. Diário de Justiça Eletrônico, 29, out., 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200900908260&dt_publicacao=29/10/2009>. Acesso em: 19 out. 2013.

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