A Reconstrução da Ciência do Direito 

A Ciência Jurídica tem por objetivo produzir conhecimentos explicativos, pela crítica do conhecimento, de sua própria validade discursiva e, servindo-se dessa crítica, criar ou gerar novos conhecimentos e sistemas, que permitam a construção de investigação do conteúdo ou do sentido normativo do complexo jurídico.

Errado é pensar o direito como um sistema fixo de normas e princípios, a preordenar a convivência humana e suas estruturas, pois, o direito não precede à realidade, mas, antes procura compreendê-la.

As realidades humanas invadem sua existência, e são elas de natureza sociais e econômicas, que vão influir o sistema de normas sempre.

Se o sistema econômico e social for capitalista, o sistema jurídico móvel é o statuts quo dessa realidade, mas não é isso a essência do direito, pois o direito não está preso a esta realidade mínima, é apenas um ângulo dessa realidade.

O Direito interage com as realidades sociais e econômicas, procurando explicar os acontecimentos na forma de conhecimento e formular estruturas diferenciadas para a adequada regulação dos interesses mais prevalentes nesta ou naquela sociedade.

Em termos de sistema, o Direito é uma ciência que explica e esclarece. O Direito é construído pela humanidade como necessidade inapartável desta.

Isso é de fácil compreensão ao observarmos a teoria da argumentação de Alexy(*), que buscando em Habermas a justificação de suas idéias, apóia, demonstrando por nova argumentação, que novas idéias criam novas idealizações práticas para novas idealizações, explicando que Habermas ensinava acerca de uma instância discursiva.

O discurso, segundo ele, preconizava a pragmática universal como uma situação ideal visando os sentidos do próprio discurso para indicar um conjunto de idealizações linguísticas comuns que poderiam ser resolvidas neste plano, onde fosse bastante para isso o esclarecimento constante do problema.

Para Alexy, pensando em Habermas, é importante o retorno do pensamento kantiano, onde o filósofo dizia que o homem tinha de ser libertado da sua ignorância, sua principal prisão, pois tal situação o alienava, deixando-o à margem da vida e deste mundo.

Buscando algumas explicações, por exemplo, é fácil entender que o homem enquanto não tiver consciência de suas perspectivas reais e idéias, como o conhecimento de seus direitos perante todos, será sempre oprimido, sendo-lhe proposto uma idéia de Justiça que serve mais como uma amarra, para torná-lo cativo de sua realidade, aquela que ele de fato ignora. Justiça não é o Direito, este propõe uma rediscussão da situação humana de quando em vez.

Nos anos 80 do século XX, por exemplo, a crítica a um sistema injusto, às leis impostas contra os direitos, às ditaduras que se estabeleciam aqui e ali como regimes políticos, à constante pregação de ordem sem desordem, onde o homem não podia se contrapor e simplesmente seguir regras predeterminadas, completamente distantes de seu viver e de seu mundo, restabeleceu o discurso propondo uma libertação, mudanças, proteção aos direitos fundamentais, revolvendo antigas formas de pensar o Direito.

Surgiram novas idealizações jurídicas e políticas, confrontando verdades impostas como supremas, essa dialética sempre caminha no pensamento de estudiosos do Direito, afastando-as e substituindo-as por novas dimensões sociais e humanas, inclusive, econômicas.

É bastante óbvio, que essas possibilidades, como os pressupostos tratados por Alexy em suas teorias, dependem de arejamento para serem rediscutidas, como momentos não autoritários, onde todos concordem na busca de solução dos problemas, sendo o discurso democrático vetor capaz de permitir o embate neste sentido.

Por isso, nos anos oitenta, acenando-se com o fim do regime horroroso que nos oprimia, o discurso e consenso buscou novo conceito de Justiça, ainda que tendo de enfrentar resistências e casamatas opressoras, alienadoras do nosso povo.

A Justiça teve que ser repensada, inclusive a nossa, e o Direito busca argumentos válidos e constantes para refazer o justo. Isso porque o Direito é reavaliado por sua sustentação fundamental, ou seja, os conceitos e princípios assegurados pela Ciência Jurídica, sua reconstrutora.

Diferentemente, o termo Justiça, propõe-nos a idéia de uma realização concreta, como por meio de decisão resolver as questões em pendências litigiosas.

A Justiça, aquela idéia de balança, no mundo é apenas um sentido de busca e eterna da vida, em que tenta imaginar as soluções mais retas possíveis, como nos ensinou Antígonas em Sófocles.

Essa Justiça é compreendida pela Ciência Jurídica, que aproveita dela os mais nobres princípios vertidores da justiça reclamada pelos cidadãos.

A Justiça, no entanto, aquela dos tribunais e foros, não passa de aparelho repressivo criado pelo Estado, na forma de Juiz, para, em um momento apaziguar certos conflitos, e em outro momento, garantir o “status quo” de sua Elite ou Força Política.

O Direito destina-se a entender o comportamento social e normatizá-lo, faz isso auxiliado pelos mecanismos de apreensão e compreensão da Ciência Jurídica, e conforme a orientação sócio-econômica que receba do sistema, será mais ou menos liberal, sem nada ter a ver com o justo.

A insatisfação e os conflitos sociais e humanos, leva à necessidade de se estabelecer um comportamento mais normativo a fim de manter-se um equilíbrio na existência dessa sociedade. Daí, dizer-se que quando o Direito interage, explica e esclarece.

Segundo afirmava Horkheimer “o discurso científico pelo esclarecimento é a radicalização da angústia humana levada ao desespero da racionalidade”.

No entendimento do citado mestre, a busca da compreensão que leva o homem a um constante refletir de suas ansiedades no mundo social e econômico. O pensar assim leva a um constante refazer.

Os cientistas do Direito, diferentemente do que ensina o autor alemão, sempre expressando uma linguagem formalista e pouco dinâmica, preconizam a defesa de ordenamentos salvadores, montados em uma mecânica antagônica, obsoleta, como se fosse o pensamento jurídico algo estático.

Nós vemos isso sempre que ocorre uma reforma no Estado ou uma Revolução que depõe o sistema político vigente.

Isso acontece o tempo todo quando há a procura de reformar ordens jurídicas que vão se tornando ultrapassadas e deixam de servir a ordem posta.

Lá, no texto chamado “constitucional”, vão ser escritas as normas apontadoras da nova ordem e os princípios que levam tempo para serem interpretados e por isso, resultam em uma confusão na aplicação da lei, mesmo quando há um tribunal orientador, como no Brasil, que pressionado pelo poder político, abre novas pérolas jurídicas que estarreceriam os mais arbitrários julgadores.

O momento político molda o sistema ou o sistema molda o momento político, depende da pressão econômica do mundo sobre este povo ou aquela nação, pressão social, mais interna com evolução de costumes, modas e novo pensar, ou pressão externa que ameaçam este ou aquele país, a qualquer título ou interesse, face ao poder militar que dispõem outros.

Na verdade, esses processos se desenvolvem com muitas chantagens políticas e sob vários interesses colonialistas, podendo culminar até mesmo com a aniquilação do resistente, vide Iraque, e agora Líbia.

Todos interesses injustificados, injustos, mas que como no geral, o Direito Internacional também se ocupa de esclarecer o convívio mas não necessariamente de fazer justiça.

A Ciência, o saber humano evolui, e as pressões sociais e econômicas tornam o mundo volátil, insólito até, daí que regras fixas mal funcionam. A busca de padrões normativos, demonstra o padrão do cientificismo jurídico, ou seja, montar barraca em determinado lugar para hastear uma bandeira que envelhece ao sabor de chuva e sol e não protege ninguém.

O Direito não é um sistema fixo que finque e vincule a humanidade a princípios fixos e regras estáveis, como um cânone milagroso, é somente a compreensão da sociedade nas suas insatisfações e conflitos.

O Direito é permanente para vigiar as estruturas estressantes e opressoras, mas buscando uma reconstrução jurídica do sistema, de forma a humanizá-lo perante a realidade que compreende.

Muitas vezes precisa enfrentar os antagonismos sociais e econômicos, para remontá-los em uma compreensão mais dinâmica para o homem. Por isso, dizemos que o Direito está sempre construção, ou como queiram outros, em reconstrução, propondo novos caminhos, que permita que a realidade seja reelaborada.

Savigny, em muitas lições sobre a importância do Direito ao homem, sentenciou em uma delas que “O Direito progride com o progresso do povo, fortalecendo-se com ele, entrando em decadência e perecendo quando a nação perde sua personalidade” – v. Paulo Dourado de Gusmão, in Introdução à Ciência do Direito, Rio de Janeiro, Forense 1972, p. 279.

O Direito avança com a cultura do povo, mas esse avanço trata de uma reconstrução dos seus dogmas e compreensão, não se restringe ao mundo das normas, estas resultam do pensar jurídico afeito ao processo de controle, de pressão, de opressão às vezes, quando a norma aparece como monopólio do poder dominante ou elite governante, atuando nos seus casuísmos.

Muitas vezes, a lei não compreende o direito, porque não compreende o próprio caminhar do povo.

Para se ter uma idéia do enfrentamento que faz da realidade e da reconstrução que propõe, voltemos ao tempo da revolução industrial, onde nenhum governo ou governante se atrevia a por freios na ânsia dos exploradores capitalistas ante o trabalho humano, apreendendo o trabalho prestado como uma mercadoria de uso e fruto, mas que teve tal ânsia o recuo ante o embate social e moral do Direito do Trabalho ante os processos econômicos desumanos.

Em todas as eras, o Direito analisou os modismos do pensamento científico ou filosófico, seja em Marx, seja em Ricardo, em outros, para retirar deles a essência do controle massivo e dominador, denunciando sempre as estruturas desumanas, e o capitular requinte da Ciência Jurídica, de não estabelecer posturas divinizadas como pretenderam os articuladores do jusnaturalismo e do juspositivismo, ou do fatalismo marxista. Sua postura ante os sistemas, ordenamentos e realidades foi da crítica.

O mundo e os homens são cheios de modelos. Alguns nunca funcionam. Outros, funcionam mal. Mesmo assim, dificilmente são abandonados ainda que contrariem a realidade social e humana.

Já se ensinou que os homens montam hipóteses falsas, constroem mundos como ilhas de fantasias, governam nessa necessidade, embaralham fichas, cartas e pensamentos, e tentam frear como podem a realidade.

Quando apanhados fragorosamente nos erros e falhas, na cretinice de seus destinos, sem lamento, eles jogam fora a realidade, alegando nela o fracasso, e remontam suas novas hipóteses falsas.

Essa hipóteses resultam em modelos e arquétipos voltados apenas à dominação.

E sempre foi assim. Quando ainda era estudante, costumava festejar as idéias e o pensamento do professor ROBERTO LYRA FILHO, saudoso mestre e professor da UNB nos anos 80, principalmente quanto a uma nova orientação jurídica para o mundo com a sua Nova Escola Jurídica.

O mundo daqueles tempos era horroroso. Ditaduras e ditadores por tudo que era lado, a América Latina era um caos de opressão, o Brasil uma lástima nas mãos dos militares.

E o Direito era ensinado como um manual de bom proceder para os que quisessem ficar à margem das “porradas” e “prisões”, assim, era o ensino do Direito vítima daqueles manuais amarelecidos de ceguinhos do sistema, procuravam incutir nos mais jovens do espírito da ordem bem ordenada, o obedecer sem sentido, como dizíamos na roda de estudantes irrequietos: “ensinando o estudante das ciências jurídicas a dizer “Amém!”..

Daí a razão de seguir o mestre na visão, ou modelo de um Direito libertador.

Mas, o Direito não é isso, ou seja, libertador, ele é sim, esclarecedor. Esclarecer é entender como funciona a humanidade, para explicar que caminhos podem ser corrigidos ou melhorados, isto por regras, por meio de normas coesas, esclarecidas, democratizadas ou de constante entendimento dos sistemas sócio-econômicos que interessam a determinado povo ou país, pode-se melhorar de fato a vida de uma sociedade e entendê-la livre e forte, essa  é sua missão quando chamado a atuar no mundo humano.

Ocorre que voltando-se a Hockheimer, podemos entender que há uma libertação pelo processo angustiante que o homem vive ao sentir o uso da norma para sua opressão. No Direito Alemão Hitlerista, o Direito era opressor, na Ditadura Militar Brasileira, idem.

Diante disso, o Direito volta à cena, reclamando, antes, contudo, explicando a realidade, e depois, esclarecendo-a, nesse momento ele propõe a libertação ao homem, indicando a necessidade de reconstrução do realismo humano. Alguns juristas afeitos à necessidade de uma nova ordem, mais humanística, mesmo no Brasil, defendiam a ideia de um “Direito achado nas ruas” ou “Direito dos Oprimidos”, como o jurista francês Michel Miaille, que pregava a ideia de que a cidadania tem o direito de resistência a normas opressoras e ilegítimas.

Em todos os tempos, o Direito reage ao que considera injusto, sempre assim. Lembremos que após a Revolução Francesa se escreveu um capítulo fundamental para os direitos humanos, como o princípio da RESERVA LEGAL, que passou a existir nos principais códigos penais pelo mundo afora.

Claro que a contribuição alemã com o lema “Não há crime sem lei anterior que o defina, e nem pena sem prévia cominação legal”, atribuída a FEUERBACH, foi inspirado no ideário francês da liberdade do homem e do cidadão. Era o Direito dizendo ao Estado “Basta!”.

Novamente após a 1ª. Guerra, vieram as legislação sociais e trabalhistas, reduzindo a opressão econômica sobre o operário, depois o sistema legal positivo sofrendo modificação após o posicionamento do Tribunal de Nuremberg, e em nosso caso, a Constituição Federal de 1988, mandando recado aos que tentarem se apoderar do poder para repetir a tragédia dos anos de chumbo no Brasil.

O Direito sempre é chamado para esclarecer, para refazer, para reconstruir, compreendendo os rumos da humanidade e a necessidade de proteção à liberdade como um direito expressional, acima de todos os demais direitos aferidos no sistema jurídico e político.