Todos os anos, a ilegalidade estabelecida pelo Código Penal sobre o tema, não impede a frequente prática de abortamentos no país. De acordo com as estatísticas obtidas pela Escola Nacional de Saúde Pública, em estudo realizado em 2005, são mais de um milhão de abortos praticados todos os anos, número que foi julgado baixo pela própria instituição, pelo fato de as mulheres em situação de aborto incompleto ou complicações decorrentes de aborto sentirem-se geralmente constrangidas ou terem medo de declarar que realizaram o procedimento quando são atendidas nos postos de saúde.

Nesse cenário, a criminalidade do aborto não só não inibe a prática abortiva, como corrobora para a formação de um problema de saúde pública, como já foi classificado no Plano de Ação da Conferência do Cairo, sobre População e Desenvolvimento, realizado em 1994, e na Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher, ocorrida em Beijing, em 1995.

Isso ocorre porque, à medida que são proibidas as condutas abortivas, as mulheres, em situação de desespero por não desejarem aquela gravidez, não deixam de praticá-las. Elas provavelmente já viram familiares ou conhecidas praticarem, e não são oprimidas pelo número desprezível de condenações criminais que incidem no crime de aborto.

Sob esse prisma, estimativas do The Alan Guttmacher Institute, de 1994, mostraram que metade das gestações no Brasil são indesejadas, e dentro desta estimativa, uma, em cada nove mulheres, recorre ao aborto como um meio de pôr fim à gestação não planejada.[1] Desta forma, os abortos clandestinos tomam espaço em uma sociedade na qual o Estado não fornece alternativas eficazes e seguras para essas mulheres.

Dentre os números de nascimentos por ano, o cálculo de abortos realizados é feito com base no número de internações anuais no SUS para fins efetuação de procedimentos pós-abortivos. Geralmente não constitui um número real, pois grande parte das mulheres esconde a prática do aborto voluntário, principalmente, por esta ser considerada criminosa. 

Não estão inseridas nessa estimativa as mulheres que morrem nas clínicas de aborto clandestino, ou que não procuram atendimento médico, por medo, ou até mesmo falta de acesso. Esse número, mesmo calculado com bastante deficiência de dados, já se mostra bem alto.

Ademais, a clandestinidade de clínicas abortivas, consequência da ausência de tutela do Estado, implica a não fiscalização e controle destas, o que resulta na prática de abortos por profissionais, muitas vezes, sem o conhecimento necessário para tal e em condições mínimas de higiene e assepsia.

Nessas condições, a ilegalidade do aborto não poderia deixar de gerar expressivo prejuízo à saúde feminina. De acordo com dados do SUS, cerca de 20% das mulheres que induzem de alguma forma o aborto, se socorrem ao hospital para curetagem uterina do que restou do embrião. São cerca de 238 (duzentos e trinta e oito) mil curetagens decorrentes de aborto por ano, cada uma ao custo médio de R$ 125,00 (cento e vinte e cinco reais) para o Estado. Ficaram daí excluídos, a exemplo, os custos com internações por período superior a 24 (vinte e quatro) horas, com UTI e os recursos necessários ao atendimento de sequelas decorrentes do aborto[2].

Além de problemas de saúde como os citados acima, há consequências ainda mais severas, como a mortalidade materna. Segundo o Anuário de Mulheres Brasileiras 2011, publicado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2007, a mortalidade materna causada por aborto foi de 3,4 por 100 mil crianças nascidas vivas. E segundo a OMS, foi admitido que das mortes maternas por aborto registradas a nível hospitalar, 90% correspondem a mortes por aborto inseguro, o que significa dizer que, no Brasil, o aborto clandestino ocupa a segunda ou terceira posição nas causas de mortes maternas[3].

Diante destes dados, impossível não concluir que a proibição do aborto não salva a vida de fetos, e ainda mata muitas mulheres em decorrência da prática de abortos inseguros, sem contar as graves sequelas à saúde da mulher.

Ainda vale citar a introdução do misoprostol no mercado, medicamento que provoca o aborto em 80% (oitenta por cento) dos casos, e que também pode deixar sequelas no corpo feminino. Além das possíveis sequelas, nem todas as mulheres tem acesso ao medicamento e, devido à exploração comercial, cresceram os relatos de pílulas adulteradas, ineficazes ao abortamento e que podem gerar graves danos também à saúde do feto.

Mas, não são todas as clínicas abortivas que fazem o aborto sem condições de higiene e sem profissionais adequados. Estas são clínicas que possuem maior custo que, por sua vez, não pode ser suportado pelas mulheres mais carentes, as quais são, infelizmente, as que mais se sujeitam às técnicas abortivas inseguras.

Estima-se que o preço cobrado por uma clínica de aborto nos centros urbanos, nas quais, apesar de ilegais, são realizados abortos em melhores condições de higiene e segurança, oscila entre R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais) e R$ 4.000,00 (quatro mil reais)[4]. Esses valorem implicam, necessariamente, na exclusão absoluta da maioria da população feminina brasileira, que se vê forçada a recorrer a métodos muito mais precários, que vão da ingestão de substâncias, como o misoprostol, até a introdução de objetos pérfuro-cortantes no útero.

O motivo de as mulheres mais pobres serem as que mais sofrem com o problema do aborto, não seria outro, senão a impossibilidade de arcar com os custos dos métodos contraceptivos, que não são fornecidos pelo Estado. Além disso, a deficiência no sistema de educação brasileiro e, principalmente para aqueles que não têm a possibilidade de pagar pelo conhecimento, gera uma expressa vulnerabilidade dos mais pobres, além de incentivar a continuidade da desigualdade social.

A ineficiência das políticas públicas também é determinante para a grande quantidade de gestações indesejadas. Ou seja, o Estado pune a saída que a mulher pobre brasileira encontra para evitar um crescimento familiar desgovernado e, ao mesmo tempo, não concede os direitos constitucionais individuais básicos para que ela seja autossuficiente na escolha de seu planejamento familiar.

Estudos ainda notaram que em estados mais desenvolvidos do país, há menor incidência de práticas abortivas, muito provavelmente pela amplitude na divulgação de informações, que é menor em estados menos desenvolvidos. 

Essa parcela excluída da população brasileira, que não tem acesso às clínicas abortivas de maior estrutura, demonstra-se vítima de diversos fatores, que em sequência tornam-se um problema sem fim na conduta abortiva insegura.

De acordo com um estudo disponibilizado pelo IBGE, apenas 68% (sessenta e oito por cento) das mulheres brasileiras faz uso de algum método de contracepção, e nesse conjunto, 24,6% usa pílula anticoncepcional, e 29,1% submeteram-se à esterilização[5].

Assim, essa mulher negra e pobre (perfil que lota os índices de aborto no Brasil), engravida por não ter acesso a métodos contraceptivos, e políticas públicas de educação sexual. Depois, ela decide abortar muitas vezes porque não tem condições financeiras de criaro primeiro filho, ou muitas vezes, mais um filho. E, por fim, em consequência da ausência de condições econômico-financeiras, ela é obrigada a procurar os métodos que lhe sejam acessíveis, portanto, os mais baratos que, como já explicitado acima, são os mais inseguros e perigosos para a saúde.

Nesse sentido, o Estado deixa de tutelar as mulheres nessas condições em três momentos: ao não fornecer integralmente a toda a população os métodos anticoncepcionais, bem como educação sexual necessária para evitar gestações indesejadas; depois, ao não garantir os direitos fundamentais àquele nascituro que após o seu nascimento, não terá educação e saúde em boas condições e gratuita, tornando ainda mais difícil a criação de um filho; e por último, ao não garantir a liberdade de escolha da mãe, que ao não desejar a criança em virtude das duas últimas assertivas, é compelida a realizar o aborto por métodos ameaçadores à sua saúde e quem implicam em perigo de vida.

Diante de todos estes aspectos que a proibição do aborto traz à tona, e ainda perante o fato de que a proibição não inibe a conduta, enfrentar esse fenômeno com seriedade torna-se imprescindível, o que significa entende-lo como uma questão de saúde pública e direitos humanos da mulher, e não mais como um ato de infração moral de mulheres levianas.

E, apenas trazendo a seriedade a esta discussão, é que será possível entender que muitas garantias constitucionais individuais não são atualmente respeitadas, no sentido de que a liberdade de escolha eficiente de cada indivíduo está atrelada ao poder de elaboração deste, o qual só pode ser atingido com o acesso à educação.

Seguindo os ensinamentos de Marx, o indivíduo deve ter tempo livre para se organizar e planejar uma vida digna, e a falta de acesso à educação o impede de ampliar suas perspectivas de vida, tornando-o incapaz de planejar em longo prazo, como seria o ideal na decisão de ter um filho.

Portanto, a falta de amplitude da tutela estatal em todos os aspectos que foram abrangidos pela questão do aborto, o torna uma prática desenfreada gerando inúmeros prejuízos a toda sociedade, que se sente desamparada por aquele de deveria zelar pelo seu bem estar: o Estado.

O abortamento inseguro cria um ambiente ameaçador não só à saúde física, mas também de violência psicológica e de culpabilidade que leva muitas mulheres a apresentarem sintomas de depressão, ansiedade, insônia e arrependimento da escolha realizada. O problema da gravidez não desejada deve ser enfrentado a partir de políticas públicas que reconheçam os direitos humanos reprodutivos das mulheres, que incluam os homens nessas políticas e criem nos municípios brasileiros com ações de saúde a cultura de ações de educação sexual e de atenção à anticoncepção[6].

Assim, além da descriminalização, todo o apoio destinado à gestante deve ser concedido pelo Estado, com acesso a tratamentos psicológicos que poderiam até evitar a prática abortiva, tornando a escolha da mulher muito mais consciente. Ou ainda, se se tornar desejo dela ter aquele filho, o Estado deve ter uma política concreta de auxílio à criança, garantindo o direito à saúde, educação, lazer, e demais necessidades que já são garantidas constitucionalmente.

No entanto, veja-se que não seria suficiente a simples descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, ainda que dentro de determinados prazos e condições. Isso pouco adiantaria se os procedimentos médicos e tratamentos psicológicos não pudessem ser realizados gratuitamente, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), pois, do contrário, as mulheres pobres continuariam fatalmente expostas aos mesmos riscos de vida experimentados com a atual legislação.

Quanto ao aumento da verba que hipoteticamente seria destinada aos procedimentos abortivos, não há que se falar em aumento de gastos do SUS. Tal assertiva se dá em razão dos atuais 29,7 milhões de reais gastos por ano, em procedimentos remediadores de danos à saúde das mulheres que realizaram o aborto clandestino e/ou procedimentos e tratamentos que se tornam necessários após essa prática ilegal, como a curetagem uterina, por exemplo.

Essa mesma verba, se convertida em medidas protetivas (concedendo métodos contraceptivos gratuitos, políticas de conscientização e o aborto seguro), dificilmente seria ultrapassada, e ainda com a grande vantagem de assegurar a saúde pública materna.

E, em decorrência de todas essas mudanças, da mesma forma como foi observado durante a flexibilização das legislações no exterior, um importante dado observado é que o número de abortos inseguros na Europa Ocidental é muito baixo, enquanto na América do sul, onde a maioria dos países ainda classifica criminosa a conduta abortiva, esta estimativa chega a três milhões[7].

Quanto a tais regulamentações, o aborto ainda deve ser considerado crime quando praticado sem o consentimento da mulher, a fim de que seja punida novamente a privação de liberdade de escolha feminina. De igual modo, não corresponderia aos princípios constitucionais e valores morais se praticado durante um estágio já avançado de gravidez, no qual o feto já sobreviveria em vida extrauterina, visto que o ordenamento jurídico brasileiro não deixou de tutelar os direitos do nascituro, porém, os adequou aos direitos já exercidos pela pessoa viva.

 



[1] (THE ALAN GUTTMACHER INSTITUTE. Aborto clandestino: uma realidade latino-americana. New York, p 5-32, 1994)

[2] Cf. Dossiê Aborto: Mortes Previsíveis e Evitáveis. Op. cit., p. 05.

[3] (Ahman, E et al, UN research group, The global burden of unsafe abortion in the year 2000)

[4] Adesse, Leila; Monteiro, Mário F. G.; e Levin, Jacques. Panorama do Aborto no Brasil: Grave problema de saúde pública e de justiça social. Revista Radis 66 – Fev/2008. P. 10.

[5]  IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Síntese de Indicadores Sociais 2005. Série estudos e Pesquisas: informação demográfica e socioeconômica, nº 17. Rio de Janeiro, 2006.

[6]  Araújo, Maria José de Oliveira, e Viola, Regina Coeli. O impacto da gravidez não desejada na saúde da mulher. in: Pitanguy, Jacqueline; Mota, adriana. Os novos desafios da responsabilidade política. Rio de Janeiro, Cepia, 2005, cap. 4, p. 101-138.

[7]  Cook, Rebecca, Bernard, Dickens, e Fathalla, Mahmoud. Saúde Reprodutiva e Direitos Humanos: integrando medicina, ética e direito. Tradução de Romani & Perrone. Rio de Janeiro, Cepia, 2004.