Manhã de 23 de outubro de 2005. Poderia ser mais um domingo nos quase 52 anos já vividos em minha história. Mas aquele domingo começou perturbador. Hoje vamos decidir sobre o desarmamento ou não no Brasil, lembrei.

Lá ia eu rodando até a minha zona eleitoral, estarrecido com a responsabilidade imposta a nós por um sistema que, exatamente naquele momento, padecia de credibilidade devido à forma com que se armou para conquistar poder em uma nação quase desiludida com a falsa gestão dos interesses públicos. A distância entre o Sim e o Não parecia tão tênue quanto decidir sobre a pena de morte.

Enxurradas de informações sobre os motivos do Referendo infernizaram nossas caixas de e-mails, jornalismo televisivo e impresso, debates entre amigos e por fim um absurdo programa gratuito de TV e rádio, produzido por duas redes de interesses visivelmente tendenciosas e absurdamente trabalhando para que nossa decisão fosse mais política que ideológica. Ideologia é mais questão de religiosidade e princípios éticos que as aberrações vomitadas por estrelas, defendendo o Sim, e quase anônimos, defendendo o Não.  Fernanda Montenegro, que admiro como atriz, que me desculpe, mas, como as estrelas do Sim haviam sido responsáveis pela eleição do atual sistema...

Até o cantor Fagner, em recente entrevista à revista Veja, desabafou: Fiquei louco com aqueles artistas posando de anjinhos ao lado do Sim, eles tinham que por a cara na TV para cobrar o Presidente Lula.

A distância entre minha casa e o local de votação nunca me pareceu tão longa.

Todas as opiniões que nos atormentaram nos últimos meses vinham agora à mente. Mas uma delas me parecia mais verossímil: se todos nós deixarmos de ter ou de, pelo menos, poder fazer de conta que temos uma provável arma em nossas casas, vai facilitar as ações de criminosos dispostos a tudo para invadir nossas vidas em busca de algo que, com muito custo, conseguimos conquistar. Logo eu que já havia passado por três assaltos à mão armada, um deles seguido de seqüestro relâmpago.

A incidência de seqüestros no Brasil é assustadora, tivemos casos de personalidades como o do publicitário Washington Olivetto, dos empresários Alexander Lucinski e Abílio Diniz, e da violência vivida por Patrícia Abravanel, filha de Silvio Santos, entre tantos outros. Se não existe um sistema eficiente de segurança pública para o combate à violência, como tomar esta decisão? Era preciso ser racional e não emocional, nesta hora. Optei pelo Não. Não?!?!

Senti-me condenado pela igreja; atormentado por notícias, como da morte de um adolescente que foi vítima de um disparo acidental da arma de um vizinho que fazia questão de mostrar a nova aquisição de seu pai. Eu era responsável pela manutenção deste estado de coisas. Esta foi a acusação que o sistema a favor do Sim fez questão de jogar em nossas vidas nos dia que se seguiram.

E o bandido, quem vai desarmar?

Todas as notícias a respeito do armamento de marginais têm como referência fontes ligadas, por exemplo, a arsenais de exércitos espalhados pelo mundo todo. Os sistemas oficiais são responsáveis por este estado de coisas. É comum o bandido estar munido de um equipamento somente usado pelo exército. Então, porque eu teria que votar a favor?

Quem seria O Senhor das Armas, afinal?

Recentemente eu e uma parceira de trabalho, a consultora Helena Ribeiro, responsável por uma consultoria de Treinamentos Vivenciais, Razão Humana, também vítima do constrangimento de quatro assaltos à mão armada, participamos de um encontro de negócios em um Café de um shopping e, após uma reunião estafante, resolvemos assistir uma sessão de cinema para descontrair. Um filme nos chamou a atenção. Compramos os ingressos e assistimos O Senhor das Armas. Não tínhamos referência sobre a qualidade do mesmo, mas, a simples presença do ator Nicolas Cage no elenco e a direção de Andrew Niccol, nos encorajaram na escolha, além do título, claro! Foi inevitável nossa revolta ante a constatação da importância documental do filme, em relação ao constrangimento do Referendo. Absurdo um filme, tão relevante e atual, ter entrado em exibição de forma quase anônima.

Ufa! Aquela catarse incomoda trouxe alívio para nossas consciências, por nossos coincidentes votos no Não. Um filme baseado em fatos reais que mostra a verdade sobre o tráfico de armas; em como as armas dos exércitos, em todo mundo, vão cair nas mãos de bandidos e guerrilheiros que, sem nenhum escrúpulo, colocam os interesses econômicos acima dos valores da vida.

Sérgio Rizzo, em sua coluna no Guia da Folha de São Paulo, diz: a trama é cínica e irônica, um filme inteligente e polêmico pelo fato de apontar os EUA como um dos maiores distribuidores de armas no mundo.... O filme não trata do comércio legal de armas, ao contrário, estão falando de contrabando, onde até pessoas de alto escalão, principalmente políticos, lucram com esse mercado. Não é de se estranhar a coincidência com o tráfico de drogas aqui no Brasil... .

O assunto me fez lembrar da peça teatral Dois Perdidos Numa Noite Suja, do teatrólogo Plínio Marcos; um texto escrito no início da ditadura militar, na década de 60, que demonstra como uma arma na mão de um cidadão qualquer, em circunstâncias adversas, acaba o encorajando ao crime. Em um determinado momento da peça, um dos personagens afirma: eu tenho a arma, eu tenho o poder!, numa alusão metafórica ao então sistema.

Uma coincidência interessante: eu, um publicitário que trabalha vendendo sonhos, que, em minhas consultorias, procuro chamar a atenção dos empresários para a importância do endomarketing, como condição básica para o sucesso de vendas, e uma consultora empresarial que trabalha vendendo a importância de se valorizar o ser humano para o sucesso das organizações, juntos, tentando entender paradigmas tão enraizados na cultura de interesses universais, cuja razão é unicamente o lucro fácil, colocando os sonhos e o bem estar do ser humano de se investir na vida e no futuro, na mira de uma bala.