O artigo objetiva comparar as perspectivas dicotômicas apresentadas por Paulo Prado (1869-1943) e Gilberto Freyre (1900-1987) quanto à questão racial nos seguintes ensaios: “Retrato do Brasil. Ensaio sobre a Tristeza Brasileira” (1928) e “Casa-grande & Senzala” (1933) respectivamente. Haja vista suas contribuições para a literatura brasileira, bem como para seu pensamento social. Em um segundo momento, visa discorrer sobre a concepção de identidade nacional e sua complexidade.

Assim, ao pautar este estudo nos meandros da história comparada são identificadas as causas e as origens de suas formulações sobre a temática racial. Parasafreando Marc Bloch (1886-1944), a história comparada tem importantes funções: pesquisar e entender aspectos específicos e gerais de cada fenômeno, os quais auxiliam na compreensão de suas “causas” e “origens” (THELM e BUSTAMANTE, 2003, p.5). Mais ainda, mostra que as indagações do presente são o que fazem o historiador voltar ao passado, ao mesmo tempo, ressalta a liberdade do historiador de efetuar o recorte histórico no intuito de melhor compreender os acontecimentos históricos. Nos casos de Paulo Prado e Gilberto Freyre, ambos buscam sentidos e causas para a miscigenação e para tanto, discorrem sobre a ideia de raça.

            Paralelamente, uma breve passagem sobre a biografia de Paulo Prado nos revela a versatilidade do autor, no que tange à sua vida pública. Nos termos de Waldman (2010): “as diversas personas sociais intrínsecas a ele; “aristocrata paulista”, “produtor e exportador de café”, “dândi[1]”, “jornalista”, “historiador”, “bacharel em direito”, “mecenas”, “ensaísta”, “editor”, “colecionador” e “fomentador da arte moderna”. (WALDMAN, 2010, p.20). Paulo Prado nasceu em 20 de maio de1869, a partir deste período são elucidadas as causas de seu olhar polêmico para a nação brasileira. Destaca-se assim, enquanto marcos temporais fundamentais para compreensão do autor, o momento da transição da Monarquia à República (1889) da escravidão negra à mão-de-obra livre, do apogeu da exportação do café aos primórdios da industrialização. Nesses meandros, o autor era oriundo de família abastada de aristocratas rurais, bem como bisneto do Barão de Iguape, fluente em três línguas e perito em cavalaria e espadachim. O seu pai Antonio Prado (1840- 1929) foi deputado provincial (1862-1864), assim em1888 a família Prado é uma das principais incentivadoras da Abolição da Escravatura, seu pai então fica conhecido como o ministro da Abolição. Por último, o teórico em diferentes ocasiões viajou para Europa, especificamente Paris, onde sofreu maciça influência dos ditos “ares civilizados” (IBIDEM, 2010).

Inicialmente, nos estudos comparativos, convém assinalar a proximidade temporal na publicação destes ensaios, bem como a influência cabal das ideias exógenas, sejam elas européias ou americanas nas suas leituras sobre a realidade nacional. Em segundo, cabe destacarmos que ambos reescrevem o passado colonial (1500-1888) com ênfase nos três elementos constituintes da sociedade: o negro, o índio e o português. Atentando para a herança deste passado nas relações raciais contemporâneas.

Nesse ímpeto, a obra supracitada de Paulo Prado versa sobre o complexo amálgama racial brasileiro. Sob olhar impreciso e ambíguo o autor expõe as vicissitudes do modelo de colonização adotado pela coroa portuguesa e as patologias acarretadas neste processo.

            O ensaio é composto de quatro capítulos: a Luxúria, a Cobiça, a Tristeza, o Romantismo e um Pos-Scriptum[2], no qual estão resumidos os primeiros capítulos do livro. Na introdução da obra, o autor reflete sobre a transição da mentalidade teocêntrica para a antropocêntrica. Ao sabor de sua observação, este fenômeno histórico-social marcou o ímpeto pela colonização européia, bem como facilitou o intercâmbio material e cultural entre os povos. Entretanto, esse novo cenário de novos caminhos, rotas, terras, ao mesmo tempo em que trouxeram a “civilização” e o cristianismo aos “povos atrasados”, também despertaram a cobiça no português (IBIDEM, p.75).

            O historiador revela que o trabalho escravo, bem como a exploração excessiva da terra, fomentou a cobiça e a luxúria no povo brasileiro. De acordo com ele, a cobiça estaria relacionada às riquezas naturais aqui existentes: o pau-brasil, as especiarias, o ouro e as pedras preciosas. O autor vislumbra que o português teria sido movido pelo desejo de enriquecimento fácil, assim; extraiu, acumulou e enriqueceu. Posteriormente, retornou ao seu país de origem, sem nada produzir. Este seria o denominado transeocenismo (IBIDEM, p.80).

Ademais, Paulo Prado faz-se polêmico por eleger características negativas inerentes à tríade racial, as quais seriam: a passividade infantil africana, a ingenuidade sensual indígena e a depravação erótica portuguesa. Por intermédio deste diagnóstico, compreende que todas essas características reunidas desembocaram em atos libidinosos e perniciosos à sociedade. Em última instância, o autor, relata que a Igreja católica também teria fomentado a disseminação da promiscuidade em tempos coloniais, cujos padres se fizeram expoentes da libertinagem. (IBIDEM, p.37).

             Segundo Paulo Prado, a luxúria seria fruto da lascívia, dos encontros sexuais descomedidos entre as três raças. Para o autor, a visão idílica da colônia desenhou um país habitado por descendentes de Adão e Eva. Em outros termos, o Romantismo europeu fez com que os primeiros navegantes enxergassem uma terra permeada de riquezas naturais (ouro e pedras preciosas) e nativas exuberantes, algo extraordinário comparável ao paraíso bíblico (IBIDEM, p.26).

A frase célebre do autor “uniões de pura animalidade”, insere no pensamento social brasileiro a polêmica do cruzamento entre as três raças e sua estreita relação com a concepção de identidade nacional. O dilema vivenciado por Paulo Prado resvala na ambigüidade da figura do mestiço. Este ator social seria o produto genuíno da mistura racial, simultaneamente, suscitaria dúvidas e questionamentos no autor quanto às possibilidades de progresso sócio-econômico do país.

É importante notar que seu parecer pessimista advém do racismo científico disseminado pelo francês Conde Arthur Gobineau (1816-1882) no Brasil. As teses racialistas encontradas em seu ensaio postulavam que haveria raças superiores e raças inferiores, as primeiras por suas habilidades físicas e psíquicas estariam propensas ao ápice da civilização. Por outro lado, as raças inferiores, por sua debilidade física e psíquica, estariam fadadas ao fracasso como nação. Ademais, Gobineau estava afinado com a poligenia, esta por sua vez considerava que, de grosso modo, desde os primeiros tempos foram gerados centros e independentes e desiguais de criação da humanidade. Portanto, para ele, as raças superiores seriam movidas pela razão, enquanto as inferiores, pela emoção (CHOR, 2010, p.58). Destarte, por tais admoestações são elucidadas as causas, ou o porquê de Prado apresentar um olhar hierarquizante para as “raças” amalgadas e principalmente, o elencar de atributos psicológicos aos seus agentes formativos.

Partindo desta premissa, a terapêutica formulada pelo autor refere-se ao branqueamento da população, à luz do empreendimento civilizatório, visto que para ele o mameluco paulista (mistura do branco com o índio) é um exemplo cabível de “raça civilizada”. Haja vista que o isolamento geográfico, bem como a topografia montanhosa corroborou a formação de uma “raça singular”. Contudo, a controvérsia de seu exame faz-se na refutação da mistura racial e concomitantemente, na proposição do “branqueamento” como solução, ou seja, na miscibilidade de dois tipos étnicos específicos: o branco e o índio, teríamos tido tipos aptos a trilhar o caminho rumo à evolução (IBIDEM, p.130-137).

Além disso, Paulo Prado apresenta outros vícios decorrentes da colonização: o romantismo e a tristeza. O romantismo citado pelo autor se refere ao sentimentalismo dos bacharéis, a preocupação e admiração que estes nutriam pela escrita pomposa e pelas idéias exógenas. Tais idéias preconizadas por eles baseavam-se na transplantação dos modelos revolucionários, tais como: a Revolução Francesa (1789) e Revolução Americana (1773), respectivamente. Em outras palavras, as elites almejavam uma revolução, mas uma revolução dentro da ordem, cuja arraia miúda continuaria inconsciente de seu papel político social. Portanto, temas como: democracia racial e participação política estariam de fora das discussões acaloradas da nata da sociedade (IBIDEM, p.115).

Outrossim, as elites parasitárias, ao sabor de sua observação, gerenciavam as instituições públicas como se suas fossem (IBIDEM, p.126). Todas essas prescrições apontadas pelo historiador mostram a preocupação que o afligia quanto aos rumos da nação e sua conformação racial.

Para finalizar, o autor expressa que a tristeza, um dos males que acometia o povo brasileiro, tinha fundamento nos seus excessos sexuais. Em outros termos, a atividade psíquica do colono definharia por sua exagerada vida sexual, o que paralelamente, ascenderia seu viés negativo quanto à existência de uma nação laboriosa (IBIDEM, p.91). Nas suas palavras: “A luxúria, a cobiça e melancolia. Nos povos, assim como nos indivíduos, é a seqüência de um quadro de psicopatia: abatimento físico e moral, fadiga, insensibilidade, abolia e tristeza “(IBIDEM, p.124-125).

 No cômputo geral, estes foram os principais elementos verificados por Paulo Prado quanto ao nosso processo constitutivo, bem como seu olhar peculiar para a mestiçagem. No findar da obra, em seu pós-scriptum, o autor refere-se a uma guerra e uma revolução. Entretanto, mesmo com o presságio de uma revolução, o autor não diz como esta se processaria, seus objetivos e quais seriam seus possíveis atores (IBIDEM, p.153).

Em suma, o parecer do autor pode ser resumido nestas linhas: “O Brasil vive e cresce como cresce e vive uma criança doente no lento desenvolvimento de um corpo mal-organizado” (IBIDEM, p.200). Ou mesmo nesta outra afirmação: “um corpo amorfo, de mera vida vegetativa, mantendo-se pelos laços tênues da língua e do culto” (IBIDEM, p.148).

Afinado com as considerações de Prado, Marco Aurélio Nogueira em “Um Banquete no Trópico” (2008) infere que o autor estaria denunciando uma nação estragada pela colonização e pela escravidão e que ainda não havia experimentado o progresso. Para além e acima disso, esclarece que sua tarefa foi bastante ambiciosa, ao mesmo tempo irônica e imprecisa. Nos termos de Nogueira: “ao programa deste intelectual que tentou recompor as origens da nacionalidade por meio de uma viagem à colônia, à experiência dos primeiros séculos, ou seja, perscrutar nosso passado para entendermos o que somos hoje” (Apud Mor, 2008, p.53).

Em linhas opostas, Gilberto Freyre nascido em quinze de março de 1900 era oriundo de família abastada, tradicional de Recife é visto durante a infância, como retardado mental por seus pais, por conta das dificuldades de aprendizado que se desdobraram até os oito anos de idade, mas acaba por ser alfabetizado, em inglês, pelo professor Mr. Williams. Posteriormente, estudou no Colégio Americano Batista do Recife (BURKE, 2005, p.55) Sob influência anglicana torna-se admirador de sua literatura, principalmente dos escritos de Shakespeare. Outros autores como: Thomas Carlyle (1795- 1881) e Herbert Spencer (1820-1903) aguçam-no a desenvolver a arte de tratar assuntos variados e triviais sob escrita graciosa e original. Em 1920, ele viaja para os Estados Unidos e, especificamente no Texas (Waco), à princípio, corrobora às teorias eugênicas, o fenômeno do passing[3] e o racismo efetivado contra os negros, porém em segundo momento, reflete sobre os efeitos e as interferências do meio-ambiente na desenvoltura e adaptação das raças nas sociedades (BURKE, 2005).

Nesse ímpeto, Gilberto Freyre inaugura a leitura “adocicada” das relações raciais brasileiras. Na obra “Casa-grande & Senzala” (1933) as três raças são depositárias de contribuições imprescindíveis a nossa formação. Em seu ensaio o autor reescreve as origens brasileiras, debruçando-se sobre o Nordeste monocultor, latifundiário e patriarcal, com vistas a descrever um país mestiço. Gilberto Freyre atenta para a proximidade física entre senhor e escravo, cuja realização faz-se através da casa-grande e a senzala. Os dois primeiros elementos, senhor e escravo, adquirem papéis centrais em sua análise. E, sob seu exame, esse locus possibilita o soterrar das animosidades entre os elementos distintos.

Não obstante, Freyre descortina em nossa convergência cultural prova fulcral do hibridismo brasileiro ou mesmo da democracia racial brasileira. Em perspectiva comparada a Paulo Prado, Freyre estabelece características positivas à tríade caldeada. O indígena, para Freyre, teria sido parceiro do português no adensamento territorial, seja a partir da defesa colonial contra os corsários, seja por seus adendos culinários, ou mesmo pela introdução da higiene corporal. A exemplo do banho de rio, hábito comum dos índios incorporado pela sociedade portuguesa.  Em breves linhas: “As primeiras gerações de mamelucos serviram de calço ou de forro para a grande sociedade híbrida que ia constituir-se. Mas, é a mulher gentia que irá introduzir valioso costume na cultura brasileira, na alimentação, no conhecimento de drogas ou remédios de tradições ligadas ao desenvolvimento da criança, utensílios de cozinha e a higiene do corpo, através do banho de rio” (FREYRE, 1933, p.285).

O negro africano em sua análise é figura de destaque, Freyre antagônico a Paulo Prado, identifica a diversidade de negros africanos aqui transplantados e, além disso, Freyre almeja elevar a “raça negra” aos quesitos valorativos de civilização. Segundo o autor, por sua docilidade, beleza, inteligência os negros africanos foram personagens centrais para o sucesso da empresa colonizadora portuguesa. Em seus termos: “Para o Brasil vieram os escravos mais nobres, inteligentes capazes. O melhor da cultura negra da África” (IBIDEM, p.472).

Contudo, os antagonismos de raça não deixam de ser descritos por Freyre, em sua narrativa a escravidão é exposta em minúcias, principalmente nas suas atrocidades. A dilaceração física e moral dos negros, as relações de concubinagem entre senhor e escrava, os filhos bastardos que serviram como brinquedos para os filhos legítimos do patriarca, bem como a inveja acalentada pelas sinhás por suas escravas refletem os dilemas vivenciados no processo escravocrata. Em contraponto, o afeto nascido das relações sociais entre os elementos diferenciados evidenciam estes mesmos antagonismos equilibrados. De acordo com Freyre, os moços e as sinhás criadas pelas amas-de-leite muitas vezes as incorporavam a estrutura familiar como se fossem de sangue. E os filhos ilegítimos, eventualmente, recebiam o sobrenome de seus genitores e sua fortuna por herança (IBIDEM, p.535).

Neste contexto, o autor aponta para a proximidade física e a fusão de culturas distintas, no qual as mediações entre culinária e religião descritas constituem provas cabais da interpenetração cultural do cotidiano brasileiro (FREYRE, 1936).

Nas similitudes com Paulo Prado, Freyre também inicia um estudo comparativo entre a colônia portuguesa e as colônias inglesas, discorrendo sobre a seleção étnica do negro a ser trazido para o Brasil. O que segundo Freyre, não teria sido feito nos Estados Unidos. Em outros termos, o negro africano incorporado ao trabalho escravo teria sido escolhido tão somente por sua energia bruta.

Em patamar diametralmente oposto, faz-se importante atentar para as disparidades metodológicas adotada pelos autores. Freyre pautando-se na antropologia, nos postulados dados por Franz Boas (1858 - 1942) quanto ao relativismo cultural, distanciou-se de Prado, cujo exame fez-se a partir da historiografia. Nesta perspectiva, Boas explicita que as raças deveriam ser observadas nos locais aos quais estivessem inseridas, tendo em vista os fatores biológicos e sociais, estas por sua vez seriam as variáveis dependentes para a plena adaptação de uma raça e produção de cultura. Nos termos de Freyre: “Diante da possibilidade da transmissão de caracteres adquiridos, o meio, pelo seu físico e pela bioquímica, surge-nos com intensa capacidade de afetar a raça, modificando-lhe caracteres mentais que se tem pretendido ligar a somático.” (IBIDEM, p.461).

Todavia, Ricardo Benzaquen em “Guerra e Paz” (1994) adverte que Freyre estaria fazendo em seu ensaio seria o neolamarckianismo de raça, isto é, baseando-se nas ilimitadas aptidões dos seres humanos para se adaptar às mais diferentes condições ambientais. Cabe explicitar que o neolamarckismo é a capacidade dos indivíduos de transmitirem os caracteres adquiridos aos seus descendentes, ou mesmo os fatores genéticos da evolução orgânica de um indivíduo de acordo com o meio-ambiente ao qual estivesse inserido. Nas suas palavras: “ele estaria enfatizando acima de tudo, a sua capacidade de incorporar, transmitir e herdar as características adquiridas na sua variada, discreta, interação com meio físico (ARAÚJO, 1994, p.37)

Em perspectiva comparada a Paulo Prado, Freyre assinala que o português teria sido plástico, estável emocionalmente e experiente no que tange à colonização de outros povos, cujo modelo preponderante discorrido pelo autor é a Tomada de Ceuta em 1415. Freyre pontua que esta experiência foi profícua aos portugueses, pois possibilitou aos últimos, ares propícios à mestiçagem. Por tais percepções, o autor assegura que a similitude física observada pelo português entre a índia brasileira e a moura, o conduziu a miscigenar e aumentar o contingente populacional da colônia (FREYRE, 1933, p. 445).

Em última instância, Freyre procura evidenciar as qualidades do português, ressaltando que este ator social não teria nutrido valores de raça “ariana” tão fortemente arraigada. De acordo com o autor, a localização geográfica intermediária na Europa fez com que o português fosse passível à mistura. Em patamar diametralmente oposto, Paulo Prado entrevê o português como um mestiço, degradado, aventureiro, a escória da Europa.

Cabe dizer que as “três raças”, em Freyre são elementos dinâmicos em seu enredo, componentes necessários a estrutura social, as suas funções sociais coadunam ao ideário de nação. Em outras palavras, eles transitam na colônia, amparados por suas características singulares, de modo a costurar a trama social brasileira. Ao fim e ao cabo, Freyre aspira mostrar como a sociedade brasileira é harmônica, no que concerne às suas relações raciais. Nas suas palavras: “Somos duas metades confraternizadoras que se vêem mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas, quando nos completarmos num todo, não será o sacrifício de um elemento ao outro.” (IBIDEM, p.535).

Sob viés comparativo, Paulo Prado atenta para as etnias em questão de maneira estática ou inerte. O negro, o índio e o português são vistos como agentes que se fazem reféns da estrutura social, vivem à deriva, sobre o signo frouxo dos laços territoriais. O autor almeja com sua obra ordenar os rumos nacionais, ou elaborar um projeto de nação, a partir de uma precisão cirúrgica, deseja extirpar os males herdados durante nossa gênese histórica. Diferente de Freyre que contempla nossa realidade social e através de lentes culturais, em alguns momentos assertivas, noutras polêmicas, busca identificar os alicerces de nossa sociedade.

Os caminhos distintos, confluentes e divergentes, traçados pelos autores nos revelam as implicações das teorias antropológicas para a vida dos indivíduos transplantados além-mar, e/ou catequizados em seus próprios territórios. Para além e acima disso, as complexas trocas culturais efetudas por colonos e colonizadores, atenciosamente percebidas por Freyre a partir da mestiçagem, indicam que estas perpassam os paradigmas etnocêntricos europeus, racialistas, principalmente em seus absolutismos étnicos, concomitantemente, concedem um destino comum aqueles que são fruto da diáspora, bem como expõe as especificidades da filiação nacional ou a coesão de um estado-nação (GILROY, 2001, p.35-36).

Nesses meandros, assinalamos as entraves encontradas pelos intelectuais deste estudo, quanto à formulação da identidade nacional. Entretanto, para tal é imprescindivel que façamos o esvaziamento desse conceito. De acordo com Anthony Smith (1997) para que haja a identidade nacional, seguindo os parâmetros ocidentais de nação, é necessário que seus indivíduos tenham uma consciência de comunidade política, o que subentende algumas instituições comuns e um único código de direitos e deveres para todos os membros da comunidade, bem como um espaço social claro, um território bem marcado e limitado, com qual seus membros se identifiquem e assim possam gerar o sentimento de pertença. Em segundo, a ideia de patria, uma comunidade de leis e instituições com um único propósito político, dar expressão a sentimentos e objectivos políticos colectivos (SMITH, 1997, p. 22-23).

Em resumo, o âmago do conceito de identidade nacional concebe uma consciência de igualdade legal entre os membros dessa mesma comunidade, o que também pressupõe uma quantidade de valores e tradições comuns entre a população, ou pelo menos, da sua comunidade central. Abarcando seus mitos ou suas memórias históricas comuns. Nas palavras do autor: “as nações devem ser medidas por sua cultura comum, uma ideologia cívica, um conjunto de critérios e aspirações, sentimentos e ideias, que unam sua população na terra natal” (SMITH, 1997, p.24).

A partir das elucidações feitas acima compartilhamos ou alcançamos quão caro e complexo era a temática racial, tanto para seus ideólogos, quanto para a sociedade brasileira. Outrossim, vislumbramos no passado colonial brasileiro, habilmente rememorado pelos autores, uma estreita ligação entre a ausência das prerrogativas vicejantes de uma identidade nacional e, em linhas opostas, a necessidade do constructo de uma identidade nacional vernacular.

Em síntese, as propostas suscitadas por Paulo Prado e Gilberto Freyre descortinam a imagem de uma nação solapada por suas vias colonizadoras, de modo antagônico, evidencia o caráter alienígena, alhures, circunscrito à agenda sociológica desses mesmos intelectuais. Os seus ensaios partem de pressupostos teóricos estrangeiros, os quais entreviam o país como um “laboratório da mestiçagem” (SCHWARCZ, 1993). Todavia, as suas prescrições, análises ou reflexões, não deixaram de ser profícuas ao se pensar a identidade nacional brasileira.

De um modo geral, José Carlos Reis (2006) reintera que a identidade brasileira também corrobora à ideia de uma “comunidade simbólica”, “comunidade imaginada[4]” legitimada pela cultura nacional que congregou discursos, imagens, símbolos, que expressam os sentimentos com os quais os membros do grupo se identificam. Para os quais, a historiografia, a literatura e as narrativas míticas de origem alimentariam e propiciariam o “espírito nacional” (REIS, 2006, p.16). Nesse contexto, ambos os pensadores a partir de lentes difusas propuseram elos, apontaram caminhos obstruídos pelos entraves sociais e raciais, bem como enriqueceram a difícil discussão quanto à identidade nacional brasileira nas décadas de 1920 e 1930.

 

                                                                                                     

Referências bibliográficas

 

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005

 

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 20º edição. Rio de Janeiro: Editora Livraria José Olympio S.A., 1980. [1933]

 

_______________2004. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 15º ed. São Paulo: Global. [1936]

 

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. Rio de Janeiro: Ed. 34 /Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

 

HALL, S. Identidade cultural na pós-Modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Touro. 10.ed. Rio de Janeiro:DP&A, 1999.

 

MAIO, Marcos Chor. Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil./organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos_ Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010.

 

MOR, Lourenço (organizador). Introdução ao Brasil: Um Banquete no Trópico. (organizador). São Paulo: Editora Senac, 2004.

 

PRADO, Paulo. Ensaio sobre a Tristeza Brasileira. In Retrato do Brasil. 2ª Edição. São Paulo: IBRASA, 1997. [1928]

 

SCHWARCZ, Lilia Moritz.  O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.  São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

SMITH, Anthony D. A Identidade Nacional. Trad. Cláudia Brito. Portugal: Ed. Gravida, 1997.

 

THEML, N., Bustamante, R, M. da C. História Comparada: Olhares Plurais. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v.XXIX, n.2,p.7-22, 2003.

 

WALDMAN, Thaís Chang. Dissertação de Mestrado intitulada: Moderno Bandeirante: Paulo Prado entre Espaços e Tradições. Defendida em: 2010-01-21. São Paulo (USP). Área: Antropologia Social.

 

 



[1] Homem elegante, que se traja com apuro, jano.

[2] Em Latim, significa literalmente “escrito depois”; no início, indicava algo que julgamos necessário acrescentar a uma carta após o seu encerramento (depois do fecho, da assinatura, etc.).

[3] O termo foi inventado nos Estados Unidos para descrever uma pessoa de herança genética mestiça, em detrimento de uma maioria branca que durante tempos, de acordo com as convenções sociais e legais de hipodescendência, classificou como uma minoria sujeita a segregação e discriminação.

[4] Stuart Hall (1999) discorre sobre a identidade nacional na modernidade tardia, tendo em vista a fragmentação dos sujeitos. Ademais, a nacionalidade é uma metáfora, não é genética. Assim, é um sistema de representação cultural, a chamada comunidade simbólica ou imaginada.