Rosana Pereira de Souza

A problemática questão da valorização do negro dentro do contexto literário está sendo bastante discutida atualmente devido às várias manifestações sociais e culturais de grupos afirmativos em sua etnia.

Nesta vertente a obra Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro denota certa preocupação com a valorização do negro no Brasil tendo em vista que a obra trata-se de um romance histórico, do qual o autor faz uma recontagem de cinco séculos da história do Brasil, desde a época da invasão holandesa até 07 de janeiro de 1977, data comemorativa da independência de Itaparica, em todo este contexto a obra mostra uma grande parcela de participação da população negra na construção social e econômica do país.

E por colocar o negro tanto ativo na sociedade brasileira quanto ele próprio o dono de um discurso político em prol de sua afirmação étnica e luta por seus direitos, o romance de Ubaldo se insere nos romances de temática pós-modernas que apresentam uma das prioridades resgatar as vozes das minorias que foram por muito tempo silenciadas, as minorias segundo Jacques Derrida (1970) são constituídas de grupos que fogem aos padrões denominados falocêntricos, no qual o centro de uma verdade cultural deveria ser algum indivíduo que fosse um homem, adulto, branco, rico, europeu e judaico cristão e desta forma aqueles que não compunham este modelo como negros, índios, mulheres, homossexuais, etc, (minorias), eram estigmatizados pela sociedade.

Com o advento das teorias pós-modernas houve um ressurgimento desses grupos que ansiavam pelo reconhecimento de suas identidades.Entende-se como tórias pós-modernas, os estudos defendidos pela Pós Modernidade que corresponde a condição sócio-cultural e estética do estágio do capitalismo pós-industrial, baseadas fundamentalmente em serviços e trocas de bens simbólicos ou abstratos, como a informação, a televisão, o computador, e a internet entre outros, segundo François Lyotard (1987) a Pós-Modernidade pode ser vista como um verdadeiro rompimento com as antigas verdades absolutas.Porém no campo da estética, devido a seu caráter multifacetado não se é possível falar de um "estilo pós-moderno" muito menos de um movimento pós-moderno.Tais conceitos prescindiram de um certo nível de organização ou mesmo intercambio que simplesmente não existe entre os produtores de estética.

Em Viva o povo brasileiro nota-se um rompimento com os modelos tradicionais porque além da grande presença negra na obra, o negro mantém um discurso político acerca da situação degradante da qual este inserido na sociedade, esta ruptura é evidenciada pela construção da personagem Maria da Fé, pois é uma mulher negra, a detentora de um discurso político, eivado de consciência morale ideais de liberdade e igualdade entre as pessoas.

Maria da Fé defende sua identidade étnica, e valoriza tanto a sua historicidade quanto a cultura afro-descendente e a população negra, contrapondo dentro da narrativa o discurso de Amleto, outro personagem negro que não aceita sua descendência africana e defende os ideais de uma sociedade tradicional branca e européia, este personagem passa dentro de obra pelo chamado embranquecimento cultural como ressalta MUNANGA(1988, p.27).

[...] o embranquecimento do negro realizar-se –a principalmente pela assimilação dos valores culturais do branco.Assim o negro vai vestir-se como europeu, e consumirá alimentação estrangeira, tão caso em relação a seu salário.O rompimento das fronteiras de assimilação acontecerá pelo domínio da língua colonizadora...Num grupo de jovens africanos de qualquer país de seu continente, aquele que se expressava bem e tinha controle da língua não materna (francês, inglês ou português) era muito respeitado.

Desta forma ao não assumir sua identidade étnica Amleto passa pela auto rejeição, ou seja, comete preconceito a si mesmo e com isso Ubaldo levanta um problema de ampla abrangência no contexto social, no qual boa parte da população negra não se assume em sua etnia, pois tem a mente o mito de que só os brancos podem melhorar de vida, e serem bem sucedidos, assim no decorrer da narrativa Amleto percorre uma trajetória de perda de identidade cultural por seu próprio desejo, pois só para citar alguns exemplos, domina a língua padrão utilizada pela minoria branca na época, despreza todos os escravos, casa-se com uma mulher branca e rica, alisa o cabelo e chega ao auge da auto rejeição quando compra de um reverendo uma certidão falsa de nascimento para alterar sua origem afro-brasileira e colocar um sobrenome de origem inglesa.

[...] Reverendíssimo! - Respondera Amleto, que, poucos minutos antes, tinha retido, no topo da lista das providências: "Certidão Dutton" Tomou o papel, chegou-lhe a fazer um pequeno rasgão numa das margens, tal a avidez com que desenrolou, leu em voz alta – Amleto Henrique Nobre Ferreira Dutton! Ferreira Dutton! Não acha Vossa Reverendíssima que soa bem, soa muitíssimo bem?(VPB, p.233).

Uma trajetória inversa é vivenciada pela personagem Maria da Fé, a qual afirma-se como uma negra e rejeita todas as tentativas de assimilação de valores do branco, pois esta sabia que estando em contato com pessoas ou até mesmo, elementos da cultura européia da qual estão inseridos os brancos, ela poderia perder sua identidade e omitir também sua historicidade. Esta questão pode ser observada na rejeição de um possível casamento com Patrício Macário (um branco), Dafé consciente de que essa união de um branco com uma negra ou vice e versa era muito utilizada por algumas pessoas negras que tinham o pensamento de auto rejeição de considerar que um casamento deste tipo constituía uma melhora de vida. E através dessa união uma das identidades seria absorvida pela outra, ou seja, Dafé tinha medo de perder sua diferença ao se unir a uma pessoa branca.

[...] não posso ser tua mulher. Mesmo que não houvesse dificuldades, por eu ser preta ou ser mulata (...) Vê bem que, para que pudéssemos viver juntos, um de nós teria de deixar que ser quem é. E não é certo eu deixar de ser o que soue fazer o que faço. VPB (1984, p.512-3)

Dafé não queria ser vista apenas como uma mulher, mas sim como uma mulher negra, pois gostaria que as pessoas respeitassem sua diferença cultural e desta forma ela teria sua etnia reconhecida, mas ela sabia da impossibilidade desse reconhecimento, isto é o que Frantz Fanon (2003) diz sobre a equivalência dentre a imagem e identidade, ou seja, olhar sem ser vista.

[...] o sujeito não pode ser apreendido sem a ausência ou invisibilidade que o constitui - "pois ainda agora vocês olham, mas nunca me vêem"-de modo que o sujeito fala, e é visto, de onde ele não est;a; a mulher migrante pode subverter a satisfação perversa do olhar racista e machista que denegava sua presença, apresentando-a como uma ausência ansiosa, um contra olhar que devolve o olhar discriminatório que nega sua diferença cultural e sexual'.FANON ( 2003, p.80).

Desta forma Dafé ansiava por sua identidade reconhecida histórica e culturalmente, ou seja, a identidade vista não somente pela aparência, mas sim por sua profundidade,(Ibid.,p.83).

[...] do nosso ponto de vista, esta verticalidade é significativa pela luz que projeta sobre aquela dimensão de profundidade que da à linguagem da Identidade seu senso de realidade (...) que emerge do reconhecimento de minha pessoa, para mencionar apenas algumas das qualidades através das quais normalmente articulamos nossa autoconsciência.

João Ubaldo através desses dois personagens explora os conceitos de afirmação e negação de identidade étnica, tendo em vista que Amleto ao defender os ideais de uma minoria branca, conseqüentemente defende os ideais da classe dominadora enquanto Maria da Fé os da classe dominada.

De acordo com este posicionamento Maria da Fé não defende apenas os negros, ou as mulheres, sendo os dois elementos que ela deveria se ater já que é uma mulher negra, ela funciona como uma voz coletiva que defende o conhecimento como forma de poder, desta forma ela defende sua identidade étnica como parte de todo um povo, ou seja, o povo brasileiro que é constituído não apenas dos brancos, mas dos negros, índios, mestiços, enfim de toda classe trabalhadora." Quem é que trabalha, não é o povo?.Não é o povo que sustenta? Então é o povo que vai mandar.(VPB, p.373).

Enquanto Amleto falece no decorrer da narrativa acometido de uma neurose, provavelmente pela aversão que tinha não só pelo povo, mas por tudo o que não fosse de origem européia, desde a alimentação, às pessoas que convivia, e principalmente pela própria auto rejeição.Maria da Fé termina sua trajetória até de maneira mítica, pois não se sabe se ela morreu ou se mesmo existiu, isto é devido aos seus feitos heróicos de luta pelo cumprimento dos direitos do povo, o resgate de escravos prisioneiros, enfim por todo o respeito que adquiriu por onde passou, ela ficou considerada como uma lenda.

A obra de Ubaldo coloca o negro como atuante na construção social e econômica do país, valoriza a cultura afro-descente no Brasil, relaborando desta forma a história oficial na qual estes elementos foram marginalizados, e colocando o negro dentro da narrativa é uma forma de demonstrar sua cultura, historicidade e principalmente sua consciência e sua voz diante da condição social da qual esta inserido.

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