Tentarei ao longo deste trabalho apresentar um interessante capítulo do livro: “Investigação acerca do entendimento humano” de David Hume, chamado “Dos milagres”. Neste capítulo o autor vai analisar a probabilidade da ocorrência desses fenômenos e como funciona o mecanismo que nos leva a crer em eventos miraculosos.  Hume vai deixar claro que não acredita na possibilidade de se atestar milagres e vai desenvolver um raciocínio argumentativo de desconstrução dos argumentos baseados em milagre e mostrar que a própria natureza deste fenômeno já aponta para um nível de improbabilidade alto, sempre o maior diante das outras explicações. Hume é um grande crítico do sistema metafísico e em sua crítica aos milagres, critica também a metafísica que esta pressupõe pelo fato de buscar falsas causas para fenômenos sem explicação científica, e principalmente pelo fato de que um milagre é na maioria das vezes uma falsa causa usada como aparato explicativo para eventos que nunca ocorreram.

        A pretensão de Hume neste capítulo do livro é mostrar o quão improvável é um milagre, dado sua própria natureza. Um milagre é uma possibilidade tão infinitesimalmente remota e situada num nível tão alto de improbabilidade que qualquer explicação natural por mais inconcebível que fosse, ainda assim seria mais plausível do que um milagre. Ora sabemos que o universo é governado pelas leis da Física e qualquer evento natural pode corroborar a precisão dessas leis. Sei que ao soltar esta caneta da minha mão ela provavelmente cairá, e embora essa certeza seja baseada na crença do hábito, há fundamentos na experiência que permitem concluir que a queda de minha caneta é a mais provável hipótese pela Lei da gravitação universal. Um milagre não tem fundamento na experiência, pois contradiz suas observações e acontece de maneira completamente diferente daquela prevista pelos nossos sentidos. Hume está longe de negar que os sentidos são infalíveis, mas diz que a experiência dos sentidos nos permite observar a regularidade de certos fenômenos da natureza e dessa regularidade nascem as leis. É altamente improvável supor um evento que contrarie de forma tão crassa a experiência que nos permitiu estabelecer essas leis:

Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência constante e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, devido à própria natureza do fato, é tão completa como qualquer argumento da natureza que se possa imaginar. (HUME, 1996, pag. 114).

      

       Ele observa que na maioria dos casos tenta-se fundamentar um milagre pela credibilidade do testemunho humano. Algumas pessoas de fato são tão dignas de confiança que o seu testemunho ganha maior grau de veracidade, ainda que o fato que se testemunha, situa-se num nível de alta improbabilidade. Quem nunca usou a Expressão: “Não acreditaria se não fosse você que houvesse contado”. Hume não nega que existam testemunhos humanos dignos de confiança, mas tratando-se de eventos miraculosos o critério deve ser muito mais minucioso:

[...] não há testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer [...]. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. (HUME, 1996, pag. 115).

       Isso quer dizer que o testemunho humano só poderia ser considerado prova para um milagre se a falsidade desse testemunho fosse ainda mais milagrosa que o próprio milagre. Ora sabemos que por mais confiáveis que sejam certos testemunhos humanos, sua falsidade não é de maneira alguma milagrosa, e isso não depende somente da boa vontade da testemunha, mas também das circunstâncias nas quais se encontra o evento. É pouco provável que um homem de grande confiança minta, mas é muito provável que se engane. O que está situado no mais alto patamar da improbabilidade é que o milagre tenha de fato ocorrido. Se um amigo no qual tenho grande confiança me conta que viu um morto ressuscitar, usando o critério de Hume, só poderia acreditar no milagre se a possibilidade do meu amigo mentir sobre o fato fosse um milagre ainda maior. Sendo assim jamais poderia acreditar no milagre, pois a falsidade de testemunhos humanos é tão natural que longe de se situar numa escala de pouca freqüência, trata-se de algo bastante corriqueiro. É muito menos milagroso que meu amigo tenha mentido ou se enganado e muito mais milagroso que mortos ressuscitem, usa-se o critério de hierarquia dos milagres, rejeitando o milagre maior e me decidindo pelo milagre menor. A explicação simples e natural é mais plausível do que a complexa e sobrenatural.

       Para refutar de vez os milagres justificados pelo testemunho humano, Hume define algumas circunstâncias ideais nas quais um milagre poderia ser aceito com base segura no testemunho humano e argumenta que jamais houve tais circunstâncias em todos os milagres conhecidos até então:

Porque, em primeiro lugar, não se pode encontrar em toda a história nenhum milagre testificado por número suficiente de homens de tão indubitável bom senso, educação e instrução que nos assegurassem contra todo logro de sua parte; de tão indubitável integridade que os pusesse fora de qualquer suspeita de querer enganar os outros; de tal crédito e de tal reputação aos olhos dos homens que perderiam muito se fossem descobertos em alguma falsidade; e, ao mesmo tempo testificando fatos realizados de um modo tão público e numa parte do mundo tão famosa que seria inevitável a descoberta da falsidade; todas essas circunstâncias são necessárias para fornecer-nos completa segurança no testemunho humano. (HUME, 1996, pag. 114).

       Segundo Hume, qualquer explicação natural, por mais improvável que pudesse ser, ainda assim seria muito mais provável do que um milagre. Um exemplo de uma dessas explicações é citado pelo Professor Bart Ehrman durante um debate sobre a possível historicidade da Ressurreição de Jesus. Jesus foi sepultado por José de Arimatéia, dois parentes de Jesus ficaram irritados por um desconhecido líder judeu ter enterrado o corpo. No fim da noite estes dois parentes roubam a tumba na calada da noite e levam o corpo para ser enterrado, porém soldados romanos na vigília os viram, lutaram contra eles e os mataram. Os soldados jogam os três corpos numa mesma vala comum, onde depois de três dias seria impossível reconhecer os corpos. A tumba está então vazia, pessoas vão à tumba e começam a achar que Jesus ressuscitou dos mortos. Elas começam a pensar que o viram, pois sabem que ele ressuscitou, afinal a tumba está vazia. Este é certamente um cenário improvável, mas todas as coisas descritas nele eram normais na época de Jesus: roubo de tumbas, assassinato de civis por soldados romanos, pessoas enterradas em valas comuns, mas por mais difícil que seja acreditar nesta teoria, ela é muito mais provável do que um milagre, afinal usamos apenas explicações naturais e fatos comuns de acontecerem. Não foi preciso violar nenhuma lei da natureza para formular uma explicação. Para Hume não importa o exemplo usado, uma explicação milagrosa por sua própria natureza será sempre a explicação mais improvável em quaisquer circunstâncias em que se analise.

       Outro importante fator a ser considerado para refutar os milagres é fato de que um milagre está sempre muito mais distante da experiência do que qualquer outra explicação, pela pouca freqüência com que ocorre. A proximidade com a experiência sensível aumenta o grau de relevância da prova e sempre tendemos a acreditar no argumento que se funda num maior número de experiências passadas. Usando novamente o critério de Hume para analisar a Ressurreição de Jesus, o que se funda num maior número de experiências? Pessoas que inventam relatos e se enganam ou homens que ressuscitam dentre mortos? Hume no caso dos milagres

conduz-nos a um ceticismo, pois demonstrado a impossibilidade de se estabelecer um milagre quando não há formas de recorrer a uma explicação natural, devemos simplesmente suspender o juízo diante de fatos duvidosos.

       Um importante aspecto a salientar é que o milagre é um fato intrìnsecamente humano, pertence somente aos humanos e é fruto do desejo pelo maravilhoso, pela superação da realidade terrena e ascese de uma realidade viva e onipotente, na qual os desejos mais íntimos são objetos de realização. A própria etimologia do termo milagre demonstra sua finalidade e sua relação com o humano. A palavra “milagre” vem do latim miraculum, do verbo mirare que significa "maravilhar-se”. O desejo pelo maravilhoso que move a afetividade humana em busca da superação da racionalidade. Hume diz que os homens têm uma tendência natural para o maravilhoso e para o extraordinário, e embora essa tendência possa ser refreada por um homem de bom senso, não se pode extirpá-la da natureza humana. O milagre, portanto, não existe fora da realidade humana, não existe um só milagre que não satisfaça um desejo humano, pois esta é a função do milagre, a realização desses desejos. A atividade finalística do milagre revela o anseio pela onipotência da afetividade humana. Ora quem não deseja fazer do seu ideal algo real? A fé está no alicerce do milagre, pois o milagre é o lado exterior da fé, é apenas um exemplo que atesta o poder da fé. É reveladora a constatação de que a o milagre não se relaciona com a verdade de modo natural, mas somente de modo afetivo e supra-racional. Temos a infantil tendência de tomar algo que é mais desejável como mais verdadeiro, pelo simples fato de ser mais desejável. Isso explica a adesão popular à crença nos milagres, pois o milagre é a atestação empírica da capacidade ilimitada da fé: “O milagre é um objeto essencial do cristianismo, um conteúdo essencial da fé. Mas o que é o milagre? Um desejo sobrenatural realizado-mais nada.” (FEUERBACH, 1900, pag.144).

       Hume certamente causa uma enorme ruptura nos sistemas metafísicos, e na sua crítica dos milagres conduz a uma descrença filosófica a respeito desses fatos. Sua ousadia filosófica chega a tal ponto que ele diz abertamente na conclusão deste capítulo que a religião cristã só pode ser creditada a partir da crença nos milagres, sendo esta crença uma condição necessária para a crença na própria fé do cristianismo: “[...] mesmo em nossos dias nenhum homem racional pode nela

acreditar (Religião cristã) sem um milagre.” (HUME, 1996, pag.149). É um brilhante trabalho antropológico que muito além de criticar os milagres, ilustra-os como parte fundamental do ser humano, uma inclinação para o maravilhoso que pode e deve ser controlada pelo bom senso. Hume não pretende de forma alguma dizer que um milagre é impossível de acontecer, mas deixa muito claro em sua argumentação que não há possibilidade de se atestar um milagre de modo a nos dar uma certeza absoluta de sua ocorrência. Percebe que os milagres sempre se dão em circunstâncias deveras duvidosas e não pode um homem de bom senso acreditar em fatos que transcendem a experiência e nela não encontram seus fundamentos.

Referências Bibliográficas

FEUERBACH. Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis. Vozes. 2007.

HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo. Nova Cultural.1996.