A QUESTÃO DO MAL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA ONTOLÓGICO-METAFÍSICA COMO PRIVAÇÃO DE BEM

1. PREÂMBULO

A presente investigação bibliográfica objetiva analisar a questão do mal numa perspectiva ontológico-metafísica como privação de bem. Para melhor realizá-la, sistematizaremos nossa pesquisa em dois capítulos centrais. No primeiro deles, destacaremos alguns elementos apresentados pelas principais tradições religiosas (pérsica, grega e judeu-cristã) em torno do assunto pesquisado. No segundo capítulo do nosso trabalho, onde atingiremos o ponto central da nossa pesquisa, abordaremos o tema do mal caracterizado como ausência de bem.
Antes de qualquer coisa, devemos afirmar que a questão do mal se caracteriza como um tormento existencial ininterrupto à inteligência humana .
Por seu carácter radical, universal e abissal, têm provocado na história humana as mais graves e angustiantes perguntas, a ponto de ser qualificado como o quebra cabeça mais difícil de ser solucionado .
Jamais foi possível elaborar uma teoria plenamente satisfatória para a existência do mal. Assim sendo, constata-se a impossibilidade de se chegar ao aclaramento total desta realidade que, por assim ser, deve ser abordada sob o âmbito do mistério .
Isso tudo, no entanto, jamais fez com que a humanidade se deixasse render pela inexorabilidade deste mistério. Parece plausível destacar que, muitos pensadores, das mais diversas áreas científicas, em diferentes períodos históricos, sempre procuraram abordar, aprofundar e dar novos passos na discussão do referido assunto . No campo teológico, muitas foram as teorias que tentaram "resolver" a questão pendente.
Destacaremos, na seqüência, alguns elementos centrais de três tradições religiosas que muito contribuíram para a reflexão filosófico-teológica sobre o mal, a saber: pérsica, grega e judeu-cristã. Com isso queremos nos habilitar para o nosso estudo do mal como ausência de bem.

2. A COMPREENSÃO DO MAL NAS PRINCIPAIS
TRADIÇÕES RELIGIOSAS

Torna-se fundamental, neste ponto do nosso trabalho, deixarmos claro não pretendemos realizar uma abordagem sistemática em torno do mal a partir das principais tradições religiosas. O que queremos é apenas destacar alguns elementos básicos de cada tradição, os quais nos parecem fundamentais para a compreensão do assunto que nos interessa.
Segundo Antônio Moser, há uma certa unanimidade em afirmar que "Entre as concepções religioso-filosóficas, três nos parecem merecer especial atenção: o dualismo persa; a Moira Grega; a concepção bíblica" . Assim sendo, passaremos agora a estudar cada uma desta três tradições, respectivamente.

2.1. O dualismo persa

O dualismo cosmológico e religioso, características fundamentais das antigas religiões Pérsicas, tem suas raízes no pensamento do filósofo iraniano Zaratrusta. Zoroastro, que foi o reformador da religião que o precedeu, afirmava a existência de um ser supremo, o qual criou dois seres menores. Estes seres menores, que possuíam a mesma natureza daquele que os havia criado, eram chamados de Ormuzd e Arimann. Ormuzd permaneceu fiel ao seu criador e, por isso, foi considerado o deus bom, origem de todo bem. Em contrapartida, Arimann se rebelou contra seu criador, tornando-se, assim, o autor de todo mal existente na terra. O deus bom criou o ser humano e lhe deu todos os recursos necessários para sua realização. o deus mau, no entanto, frustrou essa felicidade, introduzindo o mal no mundo e criando as feras, plantas e répteis maus. Como conseqüência desta criação de Arimann, o mal é uma realidade inerente em toda as coisas existentes .
Entre Ormudz e Arimann, princípio das realidades existente, há uma luta permanente. Da mesma forma, os adeptos de Ormuzd e Arimann, seguindo seus criadores, travam uma incessante guerra. O otimismo deste mito oriental está na perspectiva de que chegará um momento em que os adeptos de Ormuzd serão vitoriosos e Arimann, bem como seus partidários serão condenados às trevas eternas .

2.2. A explicação mítica grega

A explicação mítica grega para o mistério do mal é oriunda de um ambiente marcado pelo dualismo. Como pano de fundo deste ambiente sempre surge a grande pergunta: por que o mal Toda tentativa de resposta a esta pergunta "... esbarra sempre de novo na moira, uma força que leva o homem a executar o que está previsto pelo destino, independente da sua vontade" . Trata-se, pois, de um certo determinismo que caracteriza o pensamento grego e faz algumas pessoas serem "condenadas" a praticar o mal.
Mesmo diante desta realidade, é importante observar que, embora na concepção grega o mal é compreendido como uma realidade determinante ao homem, e, por isso, o domina tornando-o praticante das ações más, o bem acaba triunfando sobre o mal por meio das ações dos "super-homens", auxiliados pelos deuses.

2.3. A concepção judeu-cristã

Todo o antigo testamento é percorrido pela questão do mal. O livro de Jó é a mais importante sistematização desta questão. Este personagem bíblico personifica toda a revolta daqueles que são tementes a Deus e são atingidos pelo mal. Sendo homem justo, Jó, diante da desgraça que ocorreu em sua vida, pergunta-se: "Por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos" (Jó 21, 7) .
O profeta Jeremias, da mesma maneira que Jó, não consegue conter sua revolta diante da prosperidade dos homens injustos. "Porque prospera o caminho dos ímpios Porque os apóstatas estão em paz" (Jr 12, 1b), pergunta ele a Deus. O salmista, que enfrenta a mesma situação de Jó e Jeremias, declara a Deus: "Por pouco meus pés tropeçavam, um nada, e meus passos deslizavam, porque invejei os arrogantes, vendo a prosperidade dos ímpios" (Sl 72, 2-3).
Por que os justos sofrem Eis a pergunta que percorre toda a Bíblia . O próprio Filho de Deus, aquele que veio para vencer o mal, encontra diante de si o mistério do mal e clama do alto da cruz: "Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes" (Mt 28, 46).
Entre tantas respostas bíblicas, as mais sábias e satisfatórias são as seguintes: "Falei de coisas que não entendia" (Jó 42, 3b) e "Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito" (Lc 23, 46b) .
A partir destas respostas nos é possível tirar duas conclusões: 1. o mal é um mistério insondável; 2. o triunfo do bem sobre o mal não parece possível no tempo presente .

3. O MAL NUMA PERSPECTIVA ONTOLÓGICO-METAFÍSICA COMO PRIVAÇÃO DE BEM

Após destacarmos os principais elementos em torno do mistério do mal a partir das principais tradições religiosas (pérsica, grega e judeu-cristã), resta-nos agora investigarmos o mal numa perspectiva ontológico-metafísica, tipicamente antiga e medieval, como privação de bem .
Do ponto de vista teórico estamos diante da seguinte pergunta: O que é o mal
Uma resposta à esta pergunta nos é dada por Albert Einstein: "O mal não existe, pelo menos por si mesmo... é simplesmente a ausência do bem? é uma definição que o homem criou para descrever a ausência de Deus.... é o resultado da humanidade não ter Deus presente em seus corações" .
Plenamente de acordo com Albert Einstein, o frei Hubert Lepargneur nos ajuda a responder melhor a questão em pauta. "O mal é aquilo que, em si, não se justifica, não tem sentido, não existe. O ser é que é. Toda explicação de mal tem que tomar recuo. O ser do mal é um certo não-ser" .
Para melhor fundamentarmos tais respostas, nos serviremos agora de Santo Agostinho, que conseguiu elaborar um pensamento digno de consideração para toda investigação em torno do mal sob o prisma que nos interessa.

3.1. O mistério do mal para Agostinho de Hipona

Ao grande mistério do mal, conseguiu Agostinho apresentar uma explicação que se tornou ponto de referência durante séculos e ainda hoje conserva sua validade. A pergunta que perpassa a investigação de Agostinho em torno do mistério do mal é a seguinte: Se Deus é autor de todas as coisas existentes e é sumamente bom, qual é a origem do mal
O Santo de Hipona, depois de ter sido vítima da explicação dualista maniquéia , encontra, a partir de Plotino, a chave para concluir que Deus não é a causa do mal. Mas, qual é a conclusão de Agostinho
Plotino interrogando-se sobre a definição e a proveniência do mal, afirma que "o mal é ausência, falta do bem", mas identifica esta falta e privação do bem com a matéria. Segundo o mesmo filósofo, o mal não pode residir naquilo que é nem no que transcende o ser. Ele só está presente nas realidades materiais, porque elas se acham mescladas de não-ser .
Da definição dada por Plotino, Agostinho aceita a primeira parte, ou seja, o mal como ausência ou falta do bem, mas não a segunda, porque segundo o Santo a matéria não pode ser má porque foi criada por Deus. Eis, então, a conclusão de Agostinho: "Todas as coisas que existem são boas, e aquele mal que eu procurava não é uma substância, pois, se fosse substância, ou seria substância corruptível, e então era certamente um grande bem, ou seria uma substância corruptível, e nesse caso, se não fosse boa, não se poderia corromper" .
Para Agostinho, nas palavras de Zampieri, "... o mal não é uma substância ou um ser. O mal é justamente a privação e a carência de ser. O mal é privação de uma perfeição que a substância deveria ter" . Rossi nos ajuda a melhor compreendermos que o mal não é uma realidade, mas constitui "... uma lacuna, uma falha, algo puramente negativo, isto é, o não ser de uma coisa que, sendo real, só pode ser um bem. O mal, portanto, é falta de vontade, é ausência de bem" . Ou ainda, "... o mal não é outra coisa senão privação ou corrupção do ser, da natureza que em si é um bem, mas, corrompida, torna-se má" .
Após ter concebido o mal como "privatio boni" (privação de algum bem), Agostinho aprofunda ainda mais a questão e examina o mistério do mal em três níveis, a saber: a. metafísico-ontológico; b. moral; c. físico .
Sob o ponto de vista metafísico-ontológico devemos destacar que, segundo Agostinho, não existem seres maus no cosmos. Até mesmo os animais mais ínfimos e peçonhentos em si mesmos são bons e se enquadram perfeitamente na ordem do universo . O que existe, segundo Agostinho, são graus inferiores de ser em relação a Deus, dependentes da finitude das coisas criadas. Estes graus inferiores, no entanto, embora possam parecer defeitos, uma realidade má, são seres bons sê analisados na articulação harmônica das coisas criadas .
O mal moral é o pecado. Ele depende exclusivamente da má vontade humana. Esta, no entanto, não se caracteriza como uma realidade má, mas, ao contrário, como um bem. É pelo mau uso desta capacidade que pecamos. A natureza original da liberdade humana deveria nos levar à busca dos bens superiores (Bem Supremo), no entanto, por existirem muitos bens criados e infinitos, ela pode tender a estes bens inferiores. Desta forma, a caracterização do mal moral é o mau uso da vontade livre que o homem possui .
O mal físico (doenças, sofrimentos, a morte...), para Agostinho "... é a conseqüência do pecado original, ou seja, a conseqüência do mal moral" . Desta forma, ele não pode ser atribuído a Deus, mas "São penas sofridas pelo homem devido ao primeiro pecado" .
A partir desta concepção de mal, conforme já fizemos notar, Santo Agostinho conseguiu elaborar um pensamento que se tornou ponto de passagem obrigatória para toda e qualquer investigação em torno do mal considerado a partir da perspectiva ontológico-metafísica da privação de bem.

4. EPÍLOGO

Chegamos às palavras conclusivas desta investigação bibliográfica que objetivou analisar o mistério do mal numa perspectiva ontológico-metafísica como privação de bem. Para realizá-las tomamos como ponto de partida as palavras do Apóstolo Paulo, que na sua carta aos Romanos afirma: "... não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero" (Rm 7, 19). Este "slogan" paulino nos ajuda a compreender o mal como uma realidade humana que parece ser determinante na nossa vida. A partir dele podemos nos perguntar: o mal realmente é uma realidade substancial do ser humano ou é uma realidade secundaria
Para responder esta pergunta partiremos daquilo que refletimos ao longo deste trabalho. A resposta dada por Agostinho à questão do mal é uma réplica à gnose (segundo a qual o mundo não passa de obra imperfeita de um demiurgo e não do Deus Supremo) e ao maniqueísmo. O maniqueísmo afirmava a existência substancial do mal.
Todo o pensamento agostiniano sobre o mistério do mal pode ser sintetizado a partir deste silogismo: A. Toda obra criadora de Deus é boa. B. O bem é uma propriedade de todo ser verdadeiro. A e B. Logo, o que aparece como mal (como não bom) não pode ser verdadeiro. O mal, portanto, deve ser entendido como ausência de bem e de ser. Ele não possui ser próprio, nem um princípio originário e específico. Ao contrário, o mal só se faz real em um bem. Assim sendo, não é uma substância, mas uma realidade secundária que se origina da ausência daquilo que deveria ser.
Este mesmo raciocínio nos ajuda a compreendermos a procedência do mal. Ele surge de uma ação má que deveria ser boa, mas não o foi. Por conseguinte, Deus não é o autor do mal. Na medida em que o mal existe realmente, no entanto, Deus, o criador de todo ser, julgou melhor tirar o bem do mal do que não permitir a existência de nenhum mal.
Ao concluirmos este trabalho afirmamos que seria muito mais fácil crermos, conforme a concepção dualista maniquéia, na existência de dois princípios (um bom e um mal) dos quais se originaria toda maldade existente no universo. Ou ainda, conforme a concepção grega, crermos num certo determinismo traçado por realidades externas a nós. Tais crenças nos isentariam de toda investigação acerca do mistério do mal, porque tudo estaria determinado.
Parece-nos, no entanto, mais plausível crermos no mistério do mal como carência e falta de ser, embora, está compreensão não esteja isenta de questionamentos. Ela nos põe diante do mistério do mal como uma realidade má que necessita de nossa colaboração para se tornar boa. Nos insere neste mistério e nos faz buscar, muito além das explicações, atitudes que aproximem nossas ações às ações propostas pelo Evangelho de Cristo.

5. REFERÊNCIAS BILBLIOGRÁFICAS

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