A PSICOPATIA E A (IN) IMPUTABILIDADE PENAL

 

Sérgio Murilo Fonseca Marques Castro

 

          Problema que gera complexidade e dificuldade à comunidade jurídica, especialmente àqueles que labutam nas lides forenses, diz respeito à definição do status penal de delinqüentes acusados da prática de crimes bárbaros, perpetrados com requintes de crueldade e insensibilidade anormais, seja em relação a outros seres humanos, seja ainda em relação a animais, seres estes cuja vida e integridade física também se acham tutelados pelo Direito brasileiro.

         Indagação que sempre vem à mente daqueles que conhecem, ao menos en passant, o artigo 26, caput e parágrafo único, do Código Penal Brasileiro, consiste em saber: pessoas capazes de praticar delitos de anormal gravidade, crueldade e frieza, não seriam portadoras de doença mental, ou, ao menos, de perturbação mental que lhes retiraria, total ou parcialmente, a aptidão para compreender o caráter ilícito de sua conduta, ou de determinar-se de acordo com este entendimento?

         A resposta a esta indagação possui importância concreta no destino que a legislação penal reserva a estes criminosos. Se considerado portador de doença ou perturbação mental, com nula ou reduzida capacidade de entendimento ou de auto-contenção, o criminoso está sujeito não a uma pena, no sentido técnico, mas sim a uma medida de segurança.

         E isto porque, para os jurisconsultos em Direito Penal, os criminosos nesta condição não possuem imputabilidade penal, que é aquele juízo de reprovabilidade social que recai sobre a conduta do criminoso. Eles são, em verdade, considerados apenas indivíduos perigosos, mas que, por não terem a consciência ou o autocontrole próprio das pessoas sãs, não detêm a chamada “culpabilidade penal”. E, sem culpabilidade, não temos pena, e sim medida de segurança.        

         Condenados a cumprir medida de segurança, que via de regra impõe sua internação em instituição de tratamento psiquiátrico, o criminoso não está sujeito a um prazo para privação de sua liberdade, nos termos do artigo 97 do Código Penal. Assim, enquanto perdurar o quadro psico-patológico originador da prática criminosa, perdura a internação. Não existe um tempo de internação previamente definido na sentença, assim como ocorre com as penas aplicadas aos criminosos reconhecidos como sãos, e portanto imputáveis.

         Pois bem, estabelecida, em suma, a distinção de regime jurídico-penal para um e outro caso, percebe-se a importância de se determinar se aquele indivíduo, perpetrador de um delito cometido de forma assombrosamente cruel, denotando frieza e insensibilidade sobrehumana à vida de outrem, deve ser considerado imputável ou inimputável sob a ótica do Direito Penal.

         Guilherme de Souza Nucci, em sua obra Código Penal Comentado (Ed. Revista dos Tribunais, 3ª Edição, p.174), traça vários exemplos de doenças mentais que afastariam o criminoso de uma pena, no sentido técnico, e o sujeitariam ao regime da medida de segurança. São elas a esquizofrenia, epilepsia, histeria, neurastenia, paranóia, demência, senilidade, etc.

         A questão é: e os portadores de psicopatia, carecedores que são, segundo especialistas, de um mecanismo interno (presente nos indivíduos sãos) que lhes permite sentir piedade, remorso, compaixão ou comiseração com a dor alheia - mormente quando esta dor provém de uma conduta por eles próprios infligida? São eles portadores de uma doença ou perturbação mental que lhes retira ou atenua a capacidade de entendimento ou de autocontrole perante ações criminosas?

         Em outros termos, uma pessoa que agride, humilha,  vilipendia ou extermina outra, apresentando tamanha indiferença à sua dor ou à sua vida, deve ser considerada portadora de uma doença mental para fins penais, ficando sujeita à medida de segurança ao invés de uma pena, e sendo considerada apenas perigosa, ao invés de culpável?

         E é importante ter-se em mente que, na visão da literatura psiquiátrica, a psicopatia que atua como mola propulsora para a prática de crime não se restringe apenas à esfera dos crimes contra integridade física de outrem, mas também se desenvolve no campo da criminalidade financeira, ou de ludibrio da fé pública para fins de um enriquecimento ilícito.

         Fato é que, segundo se depreende de lições assentes na literatura psiquiátrica, os criminosos considerados psicopatas não possuem, em regra, uma diminuição de sua capacidade intelectiva. Ou seja, quando erram, incorrendo em um ilícito penal, eles sabem que o fazem, detendo a aptidão psicológica para distinguir entre o certo e o errado. E ainda pelo contrário, despojados que são dos sentimentos naturais de arrependimento e sensibilidade com a vida ou patrimônio alheio, revelam acurada destreza em inventar versões que o absolvem de sua culpa, ou mesmo em simular arrependimento ou piedade.    

         Nesse diapasão de idéias, cotejando-se a literalidade do artigo 26 do Código Penal, que rege precisamente o tema atinente à inimputabilidade penal, e as características descortinadas pela literatura psiquiátrica acerca dos criminosos portadores de psicopatia, é de se concluir pela imputabilidade penal destes indivíduos, uma vez que o distúrbio de personalidade de que são portadores não afeta sua aptidão psicológica de entender a desconformidade de sua conduta com a ordem jurídica e social imperante, sendo eles, assim, não apenas indivíduos perigosos, mas, notadamente, culpáveis em relação a seus atos delituosos.

 

Referência bibliográfica:

Nucci, Guilherme de Souza: Código Penal Comentado, Ed. Revista dos Tribunais, 3ª Edição.

 

Sérgio Murilo Fonseca Marques Castro

Defensor Público Federal