2 PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL

 

2.1 ORIGEM HISTÓRICA

            Ao que tudo indica, a propriedade surgiu primeiramente de forma coletiva, tornando-se aos poucos em propriedade privada, porém não existem dados históricos suficientes que possam encerrar esta questão.

No período anterior a Roma, na era primitiva, a propriedade só se referia a bens móveis de uso pessoal, como vestuário e utensílios de caça e pesca. A terra era tida como de todos os membros da tribo, não havendo ninguém com poder de senhorio. Portanto, a propriedade primitiva coletiva, por certo, seria a primeira manifestação de sua função social.

 A propriedade coletiva assim se dava, nas palavras de Venosa (2013, p. 158), em virtude das:

 

 [...] condições de vida do corpo social de então. Os povos primitivos que ainda hoje sobrevivem, distantes do contato com o homem civilizado, mantêm a mesma organização. Enquanto os homens vivem exclusivamente da caça, da pesca e de frutos silvestres, não aflora a questão acerca da apropriação do solo. Admite-se a utilização em comum da terra pela família ou tribo. Não se concebe a utilização individual e exclusiva. Tanto a cultura do solo como a criação de animais são feitas em comum. Desaparecendo ou diminuindo os recursos naturais da caça, pesca e agricultura no território, o grupo social deslocava-se para outras terras. Não estava o homem preso ao solo, porque essa constante movimentação não o permitia.  

 

     Enquanto os povos antigos permaneciam nômades, a questão da propriedade privada não se fazia importante, pois à medida que os recursos das terras ocupadas iam entrando em escassez, os povos primitivos migravam para um novo solo para dali tirarem sua subsistência. No entanto, ao passo em que a humanidade evoluía, as tribos começaram a permanecer mais tempo utilizando a mesma terra, aprendendo a reutilizá-la. Neste curso, o homem começa a ter uma ligação mais profunda com o solo em que habita, surgindo daí a necessidade de ter para si uma parte daquela terra, surgindo desde então a transformação da propriedade coletiva para a individual.

No período da Roma primitiva, as primeiras formas de propriedade territorial datam da Lei das 12 Tábuas. A propriedade não poderia ser considerada privada, pois o individuo não poderia reivindicá-la, porém o Estado concedia uma porção de terra para os indivíduos cultivarem, no entanto, uma vez terminado o período de colheita, a terra retornava para a coletividade, havendo desta forma somente uma privatização da produção.

Conforme os anos se passam, as mesmas porções de terra continuam a ser concedidas as mesmas famílias, fazendo surgir no povo romano o sentimento de propriedade individual e permanente.

Nos primeiros séculos, o Direito Romano só admitia a aquisição de terras ex júris quiritium, ou propriedade quiritária. Esta forma de propriedade nas lições de Monteiro (2013, p. 95):

 

[...] pressupunha o concurso de vários requisitos, como capacidade pessoal (só o cidadão romano tinha essa capacidade), idoneidade da coisa (res mancipi) e modo de adquirir conforme o jus civile. Para sua garantia dispunha o proprietário da enérgica ação de reivindicação (rei vindicatio). A propriedade romana, no dizer de Pacchioni, era una signoria piena e ideale di una persona sopra una cosa.

 

Após a propriedade quiritária, surge também a propriedade bonitária, ou do jus gentium, a qual não necessitava de todos os requisitos de sua predecessora, porém era começou a ser protegida pelo pretor,logo, imagina-se que a propriedade quiritária começou a entrar em decadência. Afinal, Justiniano resolveu fundir os dois institutos pondo termo a conflitos existentes e sancionando as situações já consagradas. 

            Em decorrência das invasões bárbaras, houve um encontro entre as civilizações germânicas e romana, fazendo assim surgir um novo tipo de organização da propriedade. A nova forma de propriedade perde o caráter individual. Desta forma, o território mais do que nunca começa a ser sinônimo de poder, estando a propriedade ligada a soberania nacional. As terras dos feudos pertenciam todas ao Senhor Feudal, o qual as concedia aos seus vassalos em troca de lealdade e também aos servos, porém estes ficavam obrigados a cultivar e ligados as terras pelo resto de suas vidas, sem possibilidade de ascensão social.

            No século XVIII, tem inicio na França uma nova mudança no paradigma da propriedade. Nas palavras de Venosa (2013, p. 159):

           

A partir do século XVIII, a escola do direito natural passa a reclamar leis que definam a propriedade. A Revolução Francesa recepciona a ideia romana. O Código de Napoleão, como consequência, traça a conhecida concepção extremamente individualista do instituto no art. 544: “a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos”. Como sabido, esse Código e as ideias da Revolução repercutiram em todos os ordenamentos que se modelaram no Código Civil francês, incluindo-se a grande maioria dos códigos latino-americanos.

            No século XIX, com a Revolução Industrial e o surgimento das doutrinas sociais, a propriedade individual absoluta prescrita pelo Código Francês perde força e mais uma vez a propriedade sofre uma importante mudança, a qual até hoje se observa na maioria dos países ocidentais, que é a noção de propriedade vinculada a uma função social.

 

2.2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA PROPRIEDADE

           

            Na conceituação do emérito professor Monteiro (2013, p. 98):

 

Num sentido amplo, este recai tanto sobre coisas corpóreas como incorpóreas. Quando recai exclusivamente sobre coisas corpóreas tem a denominação peculiar de domínio2. A noção de propriedade mostra-se, destarte, mais ampla e mais compreensiva do que a de domínio. Aquela representa o gênero de que este vem a ser a espécie.

 

Levando-se em conta somente os elementos essenciais elencados pelo art. 1228 do Código Civil de 2002, pode-se definir propriedade, nas palavras de Gonçalves (2015, p.230), como “ [...] poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”.

            Quanto as característica, faz-se mister destacar o caráter “erga omnes” da propriedade, ou seja, o dever que se impõe a todas as pessoas de abstenção em relação ao objeto. Ao titular também é conferido o poder absoluto sobre o objeto, porém é importante ressaltar, conforme lições de Pereira (2001, p. 90), que o termo ‘absoluto’ “ [...] não foi empregado na acepção de ‘ilimitado’, mas para significar que a propriedade é liberta dos encargos inumeráveis e vexatórios que a constrangiam desde os tempos feudais”.

            Outra característica que merece destaque é o caráter de exclusividade que o dono da coisa possui, tendo a capacidade de excluir todas as demais pessoas de atuarem sobre seu bem. De acordo com Gonçalves (2015, p. 243):

 

         [...] a mesma coisa não pode pertencer com exclusividade e simultaneamente a duas ou mais pessoas. O direito de um sobre determinada coisa exclui o direito de outro sobre essa mesma coisa (duorum vel plurium dominium in solidum esse non potest). O termo é empregado no sentido de poder o seu titular afastar da coisa quem quer que dela queira utilizar-se.

            Vale ressaltar que, apesar das limitações e relativizações impostas pela lei, a propriedade plena é, em geral, perpétua e irrevogável por vontade de terceiro. Isto quer dizer que ela não estará perdida pelo não uso, a não ser que ocorra alguma das hipóteses previstas por lei, como a desapropriação por interesse social, a usucapião ou o perecimento.

 

2.3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

 

 A concepção da propriedade privada como um direito individual e absoluto que se destina, exclusivamente, à satisfação do interesse do proprietário, já foi há muito superada. Nas palavra da ilustre professora Diniz (2012, p.123):

 

 A função social da propriedade é imprescindível para que se tenha um mínimo de condições para a convivência social. [...] Com isso, a função social da propriedade a vincula não só à produtividade do bem, como também aos reclamos da justiça social, visto que deve ser exercida em prol da coletividade.

 

 

A propriedade, portanto, perde seu caráter estático, tendo agora o proprietário o poder-dever de usar o seu bem em prol da sociedade, ou nas palavras de Duguit ( apud Gonçalves; 2015, p.245):

 

[...] a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.

 

 

Da visão do referido autor, depreende-se que a moderna concepção de propriedade não mais comporta aquela noção de propriedade absoluta e intocável, na qual o proprietário tinha plenos poderes de gozo, uso e disposição. A propriedade se encontra, hoje, atrelada a uma missão social, onde através da própria riqueza o homem tem a condição de ajudar a aumentar a riqueza da comunidade.

 Desta forma, o Código Civil de 2002 proclama que:

 

 O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” (art. 1228, §1º); e que “São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (art. 1228, §2º).

 

 O novo Código Civil incorporou de forma clara o preceito constitucional inscrito no art. 5º, inciso XXIII, o qual estatui que “a propriedade atenderá a sua função social”. Desta maneira entende-se que o ditame constitucional que garante o direito de propriedade tem que ser entendido como uma norma constitucional de eficácia contida, tendo como limitação o cumprimento de sua função social. Desta maneira corrobora o renomado autor Monteiro (2013, p. 111)

 

A Constituição Federal, como já se viu, garante o direito de propriedade. Contudo, em seguida, impõe a subordinação da propriedade à sua função social, expressão de conteúdo vago, mas que, genericamente, pode ser interpretada como a subordinação do direito individual ao interesse coletivo.

 

            Existem duas visões com relação a natureza do instituto da função social da propriedade. Os que se filiam a visão liberal entendem a função social como um limite ao direito de propriedade, que pode ser flexibilizado e passageiro, podendo surgir novamente a possibilidade da propriedade ilimitada de outrora.

De outro lado, torna-se pertinente o entendimento neoliberal ou socialista sobre a função social não como uma limitação ao direito de propriedade, mas sim como um elemento que integra a estrutura deste conceito. Pensando desta maneira, a função social se tornaria um pressuposto para a caracterização da relação proprietária, conforme lição de Loureiro (2003, p. 94):

 

A função social não pode ser encarda como algo exterior à propriedade, mas sim como elemento integrante de sua própria estrutura. Os limites legais são intrínsecos à propriedade. Fala-se não mais em atividade limitativa, mas sim conformativa do legislador. São, em última análise, características do próprio direito e de seu exercício, que, de tão realçadas, compõem o próprio conteúdo da relação. Como resume Pietro Perlingieri, a função social não deve ser entendida em oposição, ou ódio, à propriedade, mas à própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a determinado sujeito.

 

Continua o mesmo autor:

 

Há sério desvio de perspectiva daqueles que confundem função social da propriedade com simples limitações ou restrições. Basta lembrar que a mesma figura da função social serve para proteger com incentivos a pequena e media empresa. Serve para subsidiar a instalação de indústrias em determinadas regiões do país. Serve para isentar do pagamento de tribuitos propriedades de valor histórico, preservadas ou tombadas. Serve para a concessão de credito em condições privilegiadas para a aquisição da casa própria ou para a instalação de indústrias geradoras de empregos. Serve para impedir a penhora sobre imóveis residenciais e suas pertenças. Em suma, fácil perceber que a função social pode servir de incremento e de incentivo a diversas formas proprietárias, ou de estimulo a determinadas condutas socialmente relevantes (Loureiro, 2003, p. 97).

 

Em face do exposto, é interessante destacar o que pondera Alvin Neto ( apud Gonçalves; 2015, p.246) quando diz que parece mais conveniente falar-se, no lugar de limitações ao direito de propriedade:

 

 [...] em elementos que participam do delinear dos contornos do direito de propriedade, do traçar o seu perfil, tal qual, hoje, se apresenta. Aliás, na realidade, em rigor, o que se ‘limitou’, ou seja, o que se tem concebido de forma diversa, não é a essência do direito de propriedade, mas a extensão da expressão pratica dos poderes afetados ao ‘dominus’, predominantemente.

 

            Do ponto de vista prático faz-se prudente destacar o ponto de vista do professor Coelho (2015, p. 83) quando explica:

 

Sob o ponto de vista tecnológico, isto é, da definição das pautas para nortear a superação de conflitos de interesses relacionados à matéria, é um tanto indiferente a qualificação dada à função social, se limitação ou elemento estrutural. Nas duas hipóteses, se determinado uso da propriedade não se admitir por incompatível com a função social, pouco importa se nisso foi extrapolado um limite imposto pela ordem jurídica ou desconsiderada a estrutura do direito. Tal uso não se admite e pronto.

 

            Apesar da opinião do ilustre professor, a perspectiva da natureza da função social da propriedade é sim importante do ponto de vista prático, pois se a função social for entendida como elemento estrutural do conceito de propriedade entende-se que caso o bem não cumpra sua função social, o mesmo poderá ser desconsiderado como propriedade, pois que falta ao caráter proprietário um elemento, qual seja: a função social. Ao passo que se a função social for entendida como mera limitadora, o fato de não estar cumprindo uma função social não lhe descaracteriza como propriedade.

 

 

2.4 RESTRIÇÕES AO DIREITO DE PROPRIEDADE

           

            Como já frisado anteriormente, a propriedade moderna, por não possuir mais caráter absoluto, sofre limitações de várias naturezas, desde limitações impostas pelo Código Civil de 2002 em razão do direito de vizinhança, até as de ordem constitucional e administrativa para preservação do meio ambiente, fauna, flora, patrimônio artístico, etc. Nas lições da ilustre autora Diniz (2012, p.279):

 

No direito moderno, o primado do interesse coletivo ou público vem influindo sobremaneira no conceito de propriedade. As medidas  restritivas ao direito de propriedade, impostas pelo estado em prol da supremacia do interesse publico, vêm diminuindo o exercício desse direito. De modo que os princípios gerais de direito como os da igualdade das propriedades e repressão ao abuso do direito foram sendo aplicados tão amplamente que o domínio passou a encontrar neles restrições cada vez mais fortes, acarretando o seu enfraquecimento interno e a consolidação da política de intervenção estatal.

 

            Interessante o que esclarece o professor Coelho (2015, p.83) acerca da legalidade infraconsitucional de leis que venham a limitar o exercício do direito de propriedade. Uma vez que o direito de propriedade é constitucionalmente previsto no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, é normal pensar que, caso uma lei ordinária traga em seu conteúdo preceitos que restrinjam o exercício deste direito, a mesma será considerada inconstitucional. Acontece que, caso esta mesma lei limite o exercício do direito de propriedade em prol do atendimento de sua função social, tem-se que a mesma será considerada constitucional em virtude da aplicação direta dos preceitos constitucionais indicados.

 É de suma importância destacar as restrições trazidas pela lei pátria, principalmente no tocante às de ordem constitucional, quanto ao uso, gozo e disposição do bem pelo proprietário, que não são poucas, mas que buscam, como objetivo maior, dar àquele bem a destinação correta para torná-lo útil para a coletividade e não mera fonte de especulação financeira.

A lei se preocupa tanto em dar a propriedade o seu uso correto, que criou, através da usucapião, instituto que será estudado no próximo capítulo, um instrumento que pretere o proprietário que não faz o uso correto de sua propriedade em favor do possuidor que o faça, ou nas palavras de Venosa (2013, p. 165):  

 

A proteção àquele que se utiliza validamente da coisa nada mais é do que revigoramento do usucapião. É obrigação do proprietário aproveitar seus bens e explorá-los. O proprietário e possuidor, pelo fato de manter uma riqueza, tem o dever social de torná-la operativa. Assim, estará protegido pelo ordenamento. O abandono e a desídia do proprietário podem premiar a posse daquele que se utiliza eficazmente da coisa por certo tempo. A prescrição aquisitiva do possuidor contrapõe-se, como regra geral, à perda da coisa pelo desuso ou abandono do proprietário. O instituto do usucapião é veículo perfeito para conciliar o interesse individual e o interesse coletivo na propriedade. Daí ter a Constituição atual alargado seu alcance. A finalidade do usucapião é justamente atribuir o bem a quem dele utilmente se serve para moradia ou exploração econômica. Cabe também ao Estado regular sua intervenção sempre que as riquezas não forem bem utilizadas ou relegadas ao abandono, redistribuindo-as aos interessados e capazes de fazê-lo.

 

No art.5º, inciso XXIV, a constituição prevê a desapropriação por necessidade ou utilidade publica, ou interesse social, mediante justa e previa indenização. Desta forma, é prevista também a utilização da propriedade particular em caso de perigo iminente, assegurado o pagamento da competente indenização (art. 5º, inciso XXV).

            A legislação sobre recursos minerais, especialmente o Decreto-lei nº 227/1967, contém grande restrição ao domínio, e a Constituição Federal de 1988 declara que os recursos minerais são bens da União, constituindo-se propriedade distinta da do solo, inclusive os do subsolo para fins de exploração (CF, art. 20, IX). Assim como também o art. 176 da CF/88 preceitua que as jazidas, minas e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial.

            A Carta Magna, em seu art. 182, parágrafo 4º, inciso III, ainda prevê a desapropriação do imóvel urbano não edificado, inadequadamente aproveitado ou sub-utilizado. E da mesma forma, em seu art 184, autoriza a União desapropriar o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.

Ao disciplinar a utilização dos imóveis rurais a lei cria muitas restrições ao direito de propriedade, em diversos aspectos, especialmente quanto à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, que é o caso do art. 184 da Constituição Federal de 1988:

 

 Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

 

É interessante, também, a disposição constitucional que obriga a pessoa estrangeira, física ou jurídica, que queira adquirir ou arrendar imóvel rural no Brasil, a solicitar autorização do órgão competente do Governo Federal, atendidas as exigências legais, conforme se depreende do art. 190, “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”. 

Prevê ainda a Constituição, no art. 243, o confisco de terras onde se cultivem ilegalmente plantas psicotrópicas, mostrando neste sentido claramente a intervenção estatal na propriedade privada em benefício da sociedade.

Com relação a propriedade empresarial, onde geralmente existe concentração de poder econômico, a CF/88 buscou regular no art. 173, §4º, a utilização dos bens de acordo com interesse da comunidade, coibindo ações de abuso de poder econômico, caracterizadas pelo domínio do mercado, quebra da concorrência e aumento arbitrário dos lucros.

E por último, os arts. 216, I a V, §§ 1º a 5º, 23, III e IV, 24, VII, colocam sob a proteção especial do poder público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas, limitando o direito de propriedade.

 

2.5 PERDA DA PROPRIEDADE

 

            A perda da propriedade pode se dar de maneira voluntária e também contra a vontade do proprietário. A alienação, a renuncia e o abandono são formas de perdimento da coisa de forma voluntária. Já o perecimento do objeto e a desapropriação são as formas de perda involuntária da propriedade. De todas as formas de perdimento citadas este trabalho irá dar mais ênfase na desapropriação por estar diretamente ligada a função social.

Na alienação há a transferência de titularidade mediante negócio jurídico. A renúncia acontece quando o sujeito renuncia seu direito como proprietário de ter o imóvel para si, porém esta renuncia deverá ser por escritura pública. Imagine um sujeito que recebeu uma casa como legado, porém, em virtude de uma hipoteca que recaia sobre aquele imóvel, o sujeito resolveu renunciar a titularidade em favor do credor hipotecário, fazendo, desta forma, desaparecer o ônus real. O abando se confunde com a renuncia, porém para que ocorra não são necessárias as formalidades desta. O abandono se configura quando o proprietário deixa de fazer uso, conservar e efetuar o pagamento dos impostos que recaem sobre aquela propriedade.

As formas involuntárias de perda da propriedade poderão ser através do perecimento da coisa ou da desapropriação. O perecimento ocorre quando, por exemplo, numa enchente encobre um imóvel e o mesmo desaparece e se torna impossível de ser utilizado. A desapropriação será estuda separadamente no próximo tópico.

 

2.5.1 DESAPROPRIAÇÃO

 

            A desapropriação é considerada a modalidade mais radical de intervenção do poder público na propriedade privada, pois implica a perda da propriedade privada. A desapropriação pode ser conceituada como o ato unilateral do poder público de despojar, compulsoriamente, o proprietário do domínio do sem bem, ou nas palavras de Monteiro (2013, p.216): “a desapropriação é ato unilateral de direito público, com reflexos no direito privado, por via do qual a propriedade individual é transferida, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, a quem dela se utiliza, no interesse da coletividade”.

Por ser uma medida bastante drástica, que gera bastantes entraves, a desapropriação deve ser devidamente motivada.  De acordo com a lei, este tipo de intervenção só se dará nos casos de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, exceto nos casos de desapropriação de imóveis rurais que não cumprem sua função social, os quais serão indenizados mediante títulos da dívida pública que poderão ser liquidados em até 20 anos, a partir do 2º ano da data de emissão, ressalvado o valor real com correção monetária.

Os casos de necessidade pública e utilidade pública estão exarados nos art. 1275, V e 1228, §3º do Código Civil de 2002. Doutrinariamente, a denominação de utilidade pública se estão compreendidas nas seguintes hipóteses: I — a fundação de povoação e de estabelecimentos de assistência, educação ou instrução pública; II — a abertura, alargamento ou prolongamento de ruas, praças, canais, estradas de ferro e, em geral, de quaisquer vias públicas; III — a construção de obras ou estabelecimento destinados ao bem geral de uma localidade, sua decoração e higiene; IV — a exploração de minas. Já a necessidade pública se refere ao seguinte: I - a defesa do território nacional; II — a segurança pública; III — os socorros públicos, nos casos de calamidade; IV — a salubridade pública.

Quanto ao interesse social, este foi regulado pela lei nº 4.132/1962, que definiu os casos de desapropriação por interesse social, esclarecendo que este instituto visa promover a justiça social, mediante distribuição da propriedade ou destinando seu à promoção do bem-estar social. As hipóteses relacionadas a esta modalidade de desapropriação foram elencadas pela referida lei em seu art. 2º, quais sejam: I — o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem cor- respondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população e que deve ou possa suprir por seu destino econômico; II — a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola; III — o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola; IV — a manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habitação, formando núcleos residenciais de mais de dez famílias; V — a construção de casas populares; VI — as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte, eletrificação, armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente aproveitadas; VII — a proteção do solo e a preservação de curso e mananciais de água e de reservas florestais.

A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária é de suma importância para a promoção da justiça social e está diretamente ligada a função social da propriedade. A lei 8.629/1993 foi criada para regular os dispositivos constitucionais que relativos à reforma agrária, informando no seu art. 2º que a propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º estará sujeita a desapropriação. O art. 9º traz que a propriedade rural cumpre sua função social quando simultaneamente cumpre os seguintes requisitos: I — aproveitamento racional e adequado; II — utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III — observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV — exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Importante destacar que este artigo menciona o cumprimento simultâneo dos requisitos, ou seja, mesmo que a propriedade cumpra três dos quatro requisitos mencionados, a mesma ainda estará sujeita ao encargo desapropriante. Nota-se claramente no regramento infraconstitucional brasileiro a preocupação de regulamentar o preceito constitucional da função social da propriedade, o qual deve ser cumprindo de forma sistemática sob pena de poder ser o proprietário expropriado de seu direito.