A propositura de ação de improbidade administrativa pelo Estado

Christiane Mina Falsarella

1. Introdução

A Constituição Federal, em seu artigo 37, § 4°, cuidou dos atos de improbidade administrativa, estabelecendo como conseqüências de sua prática a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e na gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Além disso, determinou que as ações de ressarcimento ao erário são imprescritíveis (§ 5°).

            A ação de responsabilização por atos de improbidade administrativa foi regulada pela Lei nº 8.429/92. A lei trata dos seguintes tipos de atos de improbidade administrativa: atos que importam enriquecimento ilícito, atos que causam prejuízo ao erário e atos que atentam contra os princípios da Administração Pública.

            Caracterizado um desses atos, incumbe ao Ministério Público ou à pessoa jurídica interessada propor a ação de responsabilização por improbidade administrativa, nos termos do artigo 17, caput, da Lei nº 8.429/92.

            Defende-se aqui que o Estado deve efetivamente valer-se de sua legitimidade para a propositura da ação de improbidade administrativa[1], bem como utilizar-se dos mecanismos voltados ao ressarcimento do erário, tendo em vista o interesse público. Para tanto, no caso específico do Estado de São Paulo, tem papel de destaque a Procuradoria Geral do Estado, como instituição responsável pela advocacia do Estado, inclusive com atribuição expressa para propor a ação civil pública, gênero do qual faz parte a ação de improbidade.

2. Legitimidade para propositura da ação de improbidade administrativa

            A Lei nº 8.2429/92 prevê como legitimados ativos para a ação de improbidade administrativa o Ministério Público e a pessoa jurídica interessada. Trata-se de legitimação concorrente e disjuntiva, na medida em que ambos podem exercer o direito de ação, de forma independente.

            Uma questão que se levanta em tema de legitimidade é a abrangência que assume a expressão “pessoa jurídica interessada”. Discute-se se estariam incluídas apenas as entidades que integram a Administração Pública ou também aquelas mencionadas no parágrafo único do artigo 1° da Lei nº 8.429/92[2], que, a despeito de não integrarem a Administração, recebem de algum modo verbas públicas. Sobre o assunto leciona Wallace Paiva Martins Júnior:

“Assim, a solução a ser dada é aquela que compreende como legitimadas ativas as entidades componentes da Administração Pública direta, indireta ou fundacional, porque elas têm o dever primário de obediência aos princípios do art. 37 da Constituição Federal, razão pela qual as constantes do art. 1°, caput, são legitimadas ativas, ao passo que as referidas no art. 1°, parágrafo único, por não integrarem a Administração Pública, não têm legitimidade ativa, não obstante os atos de improbidade administrativa contra elas praticados sejam alvo da proteção legal específica (porque recursos públicos integram o seu patrimônio). Nesse caso, é o próprio Poder Público que terá legitimidade ativa, ao lado do Ministério Público.”[3]

            Argumenta o autor que o objetivo da Lei nº 8.429/92 é proteger o patrimônio público investido em tais entidades privadas, motivo pelo qual a legitimidade para a ação de improbidade cabe à Administração Pública, a par do Ministério Público[4]. Tais entidades, todavia, podem ingressar na lide como assistentes[5].

            De qualquer modo, com relação à Administração Pública e ao Ministério Público, não resta dúvida de que possuem legitimidade para a propositura da ação[6].

            Caso a ação tenha sido proposta pelo Ministério Público, aplica-se o disposto no artigo 6°, § 3°, da Lei nº 4.717/65[7], podendo a Administração Pública contestar o pedido, manter-se inerte ou atuar ao lado do autor. Já na hipótese de ter sido proposta a ação pela pessoa jurídica interessada, o Ministério Público atuará, obrigatoriamente, como fiscal da lei.

            Segundo Hugo Nigro Mazzilli, a legitimidade ordinária para a ação é da Fazenda, cabendo ao Ministério Público a legitimação extraordinária. De acordo com o autor, o Ministério Público somente deve propor a ação quando falhar o sistema de legitimação ordinária[8].

            Na prática, no entanto, verifica-se que a maior parte das ações de improbidade tem sido ajuizada pelo Ministério Público. A Fazenda Pública pouco tem utilizado sua legitimidade para propor ações de improbidade.

            O número reduzido de ações propostas pela pessoa jurídica interessada pode ser explicado pelas dificuldades enfrentadas no ajuizamento de ações de improbidade contra seus próprios administradores, o que inclusive justifica o estabelecimento da legitimação concorrente[9]. Todavia, a despeito desse obstáculo, a Administração Pública deve se empenhar para obter a responsabilização por atos de improbidade e o ressarcimento ao erário, considerando seu interesse na proteção do patrimônio público. Para tanto, conta com esse importante instrumento que é a ação de improbidade administrativa, que deve ser efetivamente utilizada também pelo Estado.

3. As Súmulas n° 28 e 35 do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo

            A despeito da intensa atuação do Ministério Público como autor de ações de improbidade, nota-se uma tendência do órgão em estimular a propositura de tais ações pelas pessoas jurídicas interessadas. Tal tendência pode ser depreendida da Súmula n° 28 editada pelo Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo no ano de 2000, com o seguinte teor:

Súmula n.º 28. “Salvo a hipótese prevista no artigo 9º, da Lei 8.429/92, o Conselho Superior homologará arquivamento de inquéritos civis ou assemelhados que tenham por objeto a ocorrência de improbidade administrativa praticada por servidor que não exerça cargo ou função de confiança e que esteja situado na base da hierarquia administrativa. Neste caso, caberá ao Ministério Público apenas verificar se o co-legitimado tomou as medidas adequadas à hipótese, já que eventual omissão dolosa constitui ato de improbidade.”

Na oportunidade foi apresentada a seguinte fundamentação para a edição da súmula:

“Fundamento: O Ministério Público, de uns tempos a esta parte, vem recebendo representação de Municípios buscando o ajuizamento de ações de improbidade administrativa em face de servidores.  Contudo, nos termos da Lei 8.429/92, é a pessoa jurídica interessada co-legitimada para propositura de tais ações.  É conhecida a sobrecarga do Ministério Público na área dos interesses difusos, conceito no qual se insere o da probidade administrativa.  O ideal seria que nossa estrutura permitisse a apuração de todo e qualquer ato de improbidade administrativa, ainda que cometido por funcionário sem qualquer poder decisório.  Contudo, não mais é dado desconhecer que no momento atual a realidade demonstra que isto não é possível.  Urgente a racionalização do serviço, sendo imperioso que sejam traçados os caminhos prioritários na área.  A proposta tem esta finalidade, buscando-se maior eficácia na atividade ministerial.  Ressaltou-se acima que as pessoas jurídicas interessadas são co-legitimadas para o ajuizamento da ação.  O caminho do Ministério Público deverá ser o de evitar omissões dolosas, incentivando-se o co-legitimado a buscar, quando o caso, a responsabilização do servidor ímprobo.  Assim, a proteção do interesse difuso em questão, além de não sofrer prejuízo com a súmula ora apresentada, melhor será defendido, já que a atuação ministerial será voltada contra quem tem o dever de responsabilizar o servidor.  Fica excluída a racionalização quando a hipótese encontrar amparo no artigo nono da lei, que trata da improbidade administrativa na modalidade enriquecimento ilícito, em face da extrema gravidade de tal conduta.”

Assim, na situação mencionada pela súmula, salvo a hipótese de enriquecimento ilícito, será homologado pelo Conselho Superior da instituição o pedido de arquivamento de inquérito civil que apure a prática de ato de improbidade, verificando-se apenas se o co-legitimado tomou as medidas pertinentes.

Hugo Nigro Mazzilli critica a súmula em questão, afirmando que “a melhor forma de o Ministério Público estimular o administrador a buscar a responsabilidade dos servidores é, ao mesmo tempo em que acione o servidor ímprobo, também acionar o administrador omisso no cumprimento de seu dever. E não apenas arquivar a representação...[10]”.

Na mesma linha de promover a iniciativa da pessoa jurídica interessada foi editada pelo Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo a Súmula nº 35, com a respectiva fundamentação:

Súmula nº 35: “No exercício da tutela regulamentada pela Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, e nas hipóteses em que, pela natureza e circunstâncias do fato ou pela condição dos responsáveis, o interesse social não apontar para a necessidade de pronta e imediata intervenção Ministerial, o Órgão do Ministério Público poderá, inicialmente, provocar a iniciativa do Poder Público co-legitimado zelando pela observância do prazo prescricional previsto no art. 23 da citada lei e, sendo proposta a ação, intervindo nos autos respectivos como fiscal da lei (art. 17, § 4o), nada obstando que, em havendo omissão, venha a atuar posteriormente, inclusive contra a omissão, se for o caso. A promoção de arquivamento será lançada nos autos da representação, peças de informação, inquérito civil ou procedimento preparatório após a juntada de cópia da petição inicial, eventual aditamento do Ministério Público, da decisão ou relatório da autoridade administrativa, sempre que as providências ou iniciativas adotadas forem suficientes à satisfação do objeto, desmembrando-se o feito se isto se der apenas parcialmente (art. 127 “caput” c/c art. 129, IX, da CF-88; artigos 17, 22 e 11, II, da Lei nº 8.429/92). ”

                   “Fundamento: Tanto quanto o Ministério Público, o ente público tem legitimidade para promover a ação civil nos termos da Lei nº 8.429/92, com a finalidade de obter a anulação do ato, o ressarcimento do dano ou perda do enriquecimento ilícito e a imposição de sanção prevista na mesma lei. Sendo concorrente e disjuntiva a legitimidade, e devendo o Ministério Público intervir na ação como fiscal da lei quando não a propõe, não se justifica que a entidade pública co-legitimada, tendo detectado ato ilícito, passível de enquadramento na Lei nº 8.429/92, por meio do controle interno ou de auditoria externa contratada, deixe de adotar diretamente as providências necessárias para apuração dos fatos e de ingressar, sendo o caso, com a ação judicial nos termos da Lei nº 8.429/92, cingindo-se a repassar, por meio de representação, o relatório respectivo ao Ministério Público, quando não há obstáculos ou impedimentos naturais ao exercício da tutela pela própria entidade pública. De fato, o Ministério Público tem a finalidade, nos termos da Constituição Federal, de agir em defesa da sociedade (art. 127), tanto assim que expressamente lhe foi “vedada a representação judicial e a consultoria de entidades públicas” (art. 129, IX). Nas hipóteses em que, pela natureza e circunstâncias dos fatos, ou pela condição dos responsáveis, o interesse social não aponta para a necessidade de pronta e imediata intervenção Ministerial, pode o Parquet, inicialmente, provocar a iniciativa do Poder Público, nada obstando que, em havendo omissão, venha a atuar posteriormente, inclusive contra a omissão, se for o caso. Os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público legitimam a solução acima, pois são eles que, de um lado, explicam as prerrogativas outorgadas à Administração (posição de supremacia), que a ela possibilitam garantir a prevalência do interesse social, e de outro,  positivam que no exercício da função administrativa a vontade da Administração é subordinada à lei, ou seja, não há autonomia e sim o dever de cumprir a finalidade contida na norma legal (vontade da lei), razão pela qual a doutrina preconiza que a Administração tem o dever-poder de agir para atender e fazer respeitar o princípio da legalidade, o que bem explica a autotutela (dever de rever e anular atos ilegais; de apurar e punir infrações, etc.). Destarte, tomando conhecimento de fatos que, em tese, se enquadrem na Lei nº 8.429/92, não cabe ao Poder Público legitimado a opção entre agir ou não. A legitimidade do Ministério Público, nos termos da Lei nº 8.429/92, como assinalado, é concorrente à da entidade pública, e deve servir à defesa do interesse social, podendo ficar reservada, nas situações antes comentadas, para a hipótese de omissão injustificada da Administração, desta cobrando as iniciativas e medidas legais cabíveis. Bem por isso, a Lei nº 8.429/92, a par da legitimidade concorrente (art. 17), previu para o Ministério Público a requisição à autoridade administrativa, de ofício ou em face de representação, de instauração de inquérito policial ou procedimento administrativo para apuração de ilícito previsto na mesma lei. Sinaliza-se, com isso, a linha de entendimento ora exposta de que é possível ao Ministério Público avaliar, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, entre agir diretamente e desde logo ou provocar a atuação do Poder Público legitimado (dever-poder de agir), deste cobrando o resultado da apuração ou medidas adotadas. É certo que apenas a omissão injustificada poderá  caracterizar ato de improbidade administrativa (art. 11, II, da Lei n. 8.429/92). Nesta ordem, se a autoridade administrativa firmar o entendimento, devidamente fundamentado, de que não restou caracterizada a existência de dano ou improbidade administrativa, não há se falar em omissão indevida, para efeito do citado art. 11, II, da Lei nº 8.429/92, mas nem por isso estará o Ministério Público impedido de, em relação ao fato principal objeto de investigação pela Administração, adotar entendimento diverso, ou seja, complementar, em procedimento próprio, as investigações, ou promover a ação civil pública. A solução ora preconizada em nada compromete o interesse social (interesse público primário), porquanto o Ministério Público sempre estará apto a agir, vigilante, certamente, do prazo prescricional da sanção de improbidade, e, sendo ajuizada a ação civil pública pelo Poder Público, nela intervirá como fiscal da lei (art. 17, § 4o), podendo aditar a inicial, se for necessário. Adotada a providência pelo ente público e sendo ela documentada através da juntada aos autos do procedimento do relatório da autoridade, petição inicial, decisão e, se for o caso, eventual aditamento, pelo Órgão do Ministério Público, da própria petição inicial, seguir-se-á a promoção de arquivamento em razão da satisfação do objeto (Pt. nº 28.442/02)”.

            Na hipótese descrita nesta súmula, o Ministério Público poderá “provocar a iniciativa do Poder Público co-legitimado”, arquivando o inquérito civil após verificar que foram tomadas providências por parte do ente público.

Qualquer que seja a posição que se tome diante das súmulas em questão, em termos de atuação do órgão ministerial, constata-se a necessidade de a Administração Pública passar a ingressar com ações judiciais em razão dos atos de improbidade contra si praticados. Isso abrange os atos que atentem contra os seus princípios, os que importem enriquecimento ilícito e os que causem prejuízo ao erário. Nessa última hipótese há patente interesse do Estado na recomposição de seu patrimônio.

4. Preservação do patrimônio público: interesse público primário e secundário

           

            O interesse público, na conceituação de Celso Antonio Bandeira de Mello, é “o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”.[11] Trata-se do interesse público primário, ou interesse público propriamente dito na acepção do mesmo autor[12].

            Assim, temos que a proteção ao patrimônio público interessa à sociedade como um todo, sendo abrangida pela noção de interesse público primário.

            A par disso, a preservação do patrimônio do Estado integra o conceito de interesse público secundário deste, na medida em que faz parte dos interesses privados do ente público[13].

Nesse caso há uma coincidência, mas nem sempre coincide o interesse do Estado, interesse secundário, com o interesse da sociedade como um todo, interesse primário.

            Quando o Ministério Público ajuíza ação de improbidade, age como representante da sociedade, mediante legitimação extraordinária, defendendo o interesse público primário de proteção ao patrimônio público. Ainda que sua atuação reflita sobre o interesse público secundário, não é, e nem pode ser, esse o objetivo precípuo do Ministério Público.

            A Administração Pública, por seu turno, ao combater os casos de lesão ao erário, protege tanto o interesse público primário quanto o secundário. Age, nessa hipótese, tanto em seu interesse particular de recompor o seu patrimônio, como no interesse geral de assegurá-lo[14].

5. Opções do Estado diante de ação de improbidade proposta pelo Ministério Público

 

            Conforme já afirmado, uma vez ajuizada a ação pelo Ministério Público, tem o Estado, nos termos do artigo 17, § 3°, da Lei nº 8.429/92[15], três opções: contestar o pedido, abster-se de qualquer manifestação ou integrar o pólo ativo.

            Segundo Guilherme José Purvin de Figueiredo e Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer a opção pela abstenção é excepcional, uma vez que o Estado deve buscar atuar no pólo que entenda ser o mais conveniente ao interesse público:

“A Lei da Ação Popular, no que foi seguida pela Lei n. 8.429/92, autoriza expressamente o Procurador do Estado a se abster de contestar. Todavia, como ressaltado, entendemos que somente excepcionalmente poderá deixar também de apresentar manifestação. De duas, uma: ou o ato impugnado é perfeitamente legal e não causou lesão ao patrimônio público; ou então o pedido do autor popular procede e, por conseqüência, impõe-se ao Procurador do Estado que se manifeste no sentido de integrar o pólo ativo da ação.

Na primeira hipótese, o Procurador do Estado deverá contestar a ação. Na segunda, assumirá a posição de assistente do autor popular.[16]

                  Tal posicionamento é coerente com a defesa do interesse público pelo Estado.

Verifica-se, assim, que, ainda que não proponha a ação, pode o Estado vir a ingressar no pólo ativo da ação de improbidade, se concluir que tal atitude atende melhor ao interesse público.

6. Propositura de ação de improbidade pelo Estado

 

            A par da possibilidade de ingressar no pólo ativo em ações de improbidade propostas pelo Ministério Público, a  pessoa jurídica interessada detém legitimidade própria para a propositura de tais ações. Destarte, o Estado em geral, seja Administração Pública direta, indireta ou fundacional, da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, pode (ou mesmo deve, como defendemos) ingressar com ações visando a responsabilização por atos de improbidade. Nesse caso, ocupa papel de destaque a advocacia pública.

A seguir será abordada a legislação pertinente à atuação da advocacia pública nessa seara no âmbito estadual, por meio das Procuradorias dos Estados. A mesma conclusão, contudo, é aplicável no âmbito municipal, mediante atuação das Procuradorias dos Municípios, e no âmbito federal, com a Advocacia-Geral da União[17].

            Na hipótese específica do Estado de São Paulo, terá atuação a Procuradoria Geral do Estado, responsável pela representação judicial do Estado. Entre as funções institucionais da Procuradoria Geral do Estado, compreende-se a propositura de ação civil pública representando o Estado, nos termos do artigo 99, inciso VII, da Constituição Estadual. No mesmo sentido é o artigo 2°, inciso XVI, da Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Desse modo, a propositura de ação civil pública está incluída entre as atribuições da Procuradoria Geral do Estado, o que abrange também a propositura de ação de improbidade administrativa.

            Ressalte-se que, de acordo com o artigo 98 da Constituição do Estado de São Paulo[18], a Procuradoria Geral do Estado orienta-se pelos princípios da indisponibilidade do interesse público e da legalidade. Assim, evidente que a Procuradoria Geral do Estado tem entre suas funções a proteção ao patrimônio público, devendo ser salientado que o compromisso da instituição é com o Estado e não com o governante[19].

7. A defesa do patrimônio público e o interesse do Estado no ressarcimento

As sanções pela prática de ato de improbidade administrativa independem da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento, nos termos do artigo 21, inciso I, da Lei nº 8.429/92. Portanto, é possível a imposição das sanções ainda que o patrimônio em sentido estrito não tenha sido atingido, diante de ofensa aos princípios da Administração Pública ou de enriquecimento ilícito do agente sem dano econômico direto ao Estado.

Não obstante a responsabilização por atos de improbidade que impliquem apenas em ofensa aos princípios da Administração Pública, sem repercussão patrimonial, seja essencial, serão enfatizadas nesse ponto as ações de improbidade que versem sobre atos que causem prejuízo ao erário[20].

Com relação aos atos que causem prejuízos econômicos ao Estado, há especial interesse na utilização da Lei nº 8.429/92, uma vez que ela contém diversos mecanismos dirigidos à indenização dos danos causados pela prática de atos de improbidade. Desse modo, há a possibilidade de ressarcimento dos danos, recompondo-se o patrimônio lesado.

Há, do mesmo modo, efeitos financeiros benéficos ao Estado nas ações que versem sobre atos que impliquem em enriquecimento ilícito. Com efeito, os bens perdidos pelo agente, porque ilicitamente obtidos, reverterão em benefício da pessoa jurídica prejudicada pelo ato ilícito, nos termos do artigo 18 da Lei nº 8.429/92[21].

Dentre as previsões da Lei nº 8.429/92 voltadas a assegurar o ressarcimento do dano destacam-se as seguintes medidas cautelares: o sequestro, o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras mantidas pelo indiciado no exterior e a indisponibilidade de bens.

As procuradorias têm legitimidade expressa para requerer a decretação do sequestro de bens, como se depreende do artigo 16 da Lei de Improbidade Administrativa[22].

Já no que tange à indisponibilidade dos bens, a lei dispõe que a autoridade administrativa deve representar ao Ministério Público para que este requeira a medida judicialmente. Esta previsão de representação é criticada, a nosso ver com acerto, por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem também a indisponibilidade dos bens do agente pode ser requerida pelas procuradorias:

“Aliás, o dispositivo tem uma redação infeliz, porque, se a própria pessoa jurídica interessada tem legitimidade para propor a ação, não há razão para que ela mesma não tome a iniciativa para requerer judicialmente a decretação da indisponibilidade. Não há necessidade de requerer especificamente ao Ministério Público o exercício de uma competência que pode ser exercida pelo órgão jurídico da própria entidade a que pertence a autoridade administrativa.”[23]

E, ainda, em caso de ser autor da ação de improbidade o Ministério Público, pode a Fazenda Pública, quando for o caso, promover as ações necessárias à complementação do ressarcimento do patrimônio público, nos termos do artigo 17, § 2º, da Lei nº 8.429/92.

Resta evidente, portanto, que a Lei de Improbidade Administrativa disponibiliza um significativo conjunto de instrumentos voltados à recuperação do patrimônio público, cabendo ao Estado utilizá-los, a fim de obter o efetivo ressarcimento ao erário. Realmente, o Estado é o principal interessado na recomposição de seu patrimônio e, dispondo de mecanismos para tanto, não há porque não empregá-los.

8. Conclusão

 

            A despeito de o Estado ostentar legitimidade para a propositura de ações de improbidade administrativa, verifica-se que a maioria das ações de improbidade é proposta pelo Ministério Público, o que pode ser explicado pelas dificuldades que a pessoa jurídica interessada enfrenta para propor ações contra seus administradores.

            Independentemente da atividade do Ministério Público nesse campo, a atuação do Estado em ações de improbidade deve ser intensificada, considerando-se que ele é atingido pelos atos de improbidade, sendo patente seu interesse na recomposição do patrimônio público.

            Ao ajuizar ações de improbidade administrativa em virtude de lesão ao erário, o Estado defende tanto o interesse público primário, quanto o interesse secundário. Defende, assim, tanto o interesse geral quanto o seu interesse particular.

            A fim de permitir a recomposição do patrimônio público, a Lei nº 8.429/92 confere ao Estado diversos instrumentos, como é o caso do sequestro. Assim, cabe ao Estado utilizar os mecanismos de recomposição do patrimônio público, de forma a obter o efetivo ressarcimento ao erário. Desse modo, será preservado o patrimônio público e, com isso, atendido o interesse público, finalidade precípua do Estado.

            Conclui-se, portanto, que a advocacia pública deve buscar uma postura mais ativa em tema de responsabilização de agentes que tenham praticado atos de improbidade administrativa, para bem cumprir o seu papel na defesa do patrimônio público.

           

9. Referências bibliográficas

 

DI PIETRO, MARIA SYLVIA ZANELLA. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de; Pfeiffer, Roberto Augusto Castellanos. Ação civil pública e tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa pelos órgãos de Advocacia Pública. Advocacia Pública & Sociedade, v. 2, n. 2, p. 55-74, 1998.

MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007.

PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009.



[1] Essa posição já foi por nós defendida no XXXVI Congresso Nacional de Procuradores do Estado, realizado em 2010 na cidade de Maceió.

[2] Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.

Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.”

[3] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 414.

[4] Probidade administrativa, p. 414. Marino Pazzaglini Filho, por seu turno, entende que a empresas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra e as empresas que recebam subvenções, benefícios ou incentivos, fiscais ou creditícios do erário também detêm legitimidade para propor a ação de improbidade. In Lei de Improbidade Administrativa Comentada. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 200.

[5] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa, p. 415.

[6] Eventual dúvida no tocante à legitimidade do Ministério Público foi dissipada com a edição da Súmula nº 329 pelo Superior Tribunal de Justiça versando sobre a matéria: “O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público”.

[7]“Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.§ 3º A pessoas jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente.”

[8] MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 213.

[9] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva., Probidade administrativa, p. 410.

[10]A defesa dos interesses difusos em juízo, p. 218.

[11] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 58.

[12] Curso de direito administrativo, p. 63.

[13] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 63.

[14] No mesmo sentido é o entendimento de Wallace Paiva Martins Júnior: “É a entidade que teve o seu interesse violado pelo ato de improbidade administrativa, e, agindo contra ele, estará defendendo, a um só tempo, o interesse público secundário (interesse próprio de seu patrimônio) e o primário (manutenção da integridade do patrimônio público, que a todos pertence)(...)”. Probidade administrativa, p. 413.

[15] Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.(...) § 3º  No caso de a ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, aplica-se, no que couber, o disposto no § 3º do art. 6º da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965.”

[16] FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de; Pfeiffer, Roberto Augusto Castellanos. Ação civil pública e tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa pelos órgãos de Advocacia Pública. Advocacia Pública & Sociedade, v. 2, n. 2, p. 55-74, 1998, p. 64 e 65.

[17] Merece menção a atuação da Advocacia-Geral da União na busca da recomposição do patrimônio público. A respeito, cite-se a seguinte notícia publicada no site da instituição em 23/08/2012: Acordo entre a Advocacia Geral da União (AGU) e o Grupo Ok garante a restituição aos cofres públicos de R$ 468 milhões. A quantia é relativa ao desvio de recursos durante a construção do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo. À vista, a empresa vai efetuar o pagamento de R$ 80 milhões e o restante será parcelado em 96 meses. Para assegurar que esse valor entre na conta do Tesouro Nacional, será mantida a penhora de 1.255 imóveis e aluguéis, que equivalem a 150% da dívida. (...)Durante coletiva de imprensa, a Procuradora-Geral da União, Helia Maria Bettero, destacou que essa é a maior recuperação de dinheiro desviado dos cofres públicos da história do Brasil, e talvez, do mundo. (...)Segundo Helia Maria, a atuação proativa da AGU no combate à corrupção representa uma mudança de paradigma e preservação do interesse público. "São devolvidos aos cofres públicos valores que pertencem a toda sociedade e que foram desviados indevidamente" .O acordo é referente a duas ações de execução de decisões do Tribunal de Contas da União (TCU), nas quais a AGU atua na Justiça. Uma cobra multa e a outra, o débito principal. Outros quase R$ 500 milhões de correção monetária e juros ainda são discutidos em processo judicial. (...) Conforme André Mendonça (Diretor do Departamento de Patrimônio e Probidade Administrativa da AGU), a restituição aos cofres públicos só foi possível graças a atuação incisiva do Grupo Permanente de Atuação Proativa da AGU. "O Grupo atua no caso desde 2009, sendo responsável pela propositura e acompanhamento das ações de execução de julgados do TCU, ações de improbidade visando a defesa do patrimônio público e o ressarcimento de valores desviados por agentes públicos e privados", afirmou. (...).” Link: http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateImagemTextoThumb.aspx?idConteudo=205939&id_site=3. 

[18] “Artigo 98. A Procuradoria Geral do Estado é instituição de natureza permanente, essencial à administração da justiça e à Administração Pública Estadual, vinculada diretamente ao Governador, responsável pela advocacia do Estado, sendo orientada pelos princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público.”

[19] Celso Antonio Bandeira de Mello enfatiza que “a Constituição e as leis outorgam aos servidores públicos um conjunto de proteções e garantias tendo em vista assegurar-lhes condições propícias a uma atuação imparcial, técnica, liberta de ingerências que os eventuais e transitórios ocupantes do Poder, isto é, os agentes políticos, poderiam pretender impor-lhes para obtenção de benefícios pessoais ou sectários, de conveniência da facção política dominante no momento.” Curso de direito administrativo, p. 245.

[20] Segundo Guilherme José Purvin de Figueiredo e Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer, fora esses casos seria possível, inclusive, alegar falta de interesse de agir: “Caso a satisfação do interesse material possa ser realizada sem a intervenção do Poder Judiciário, ausente estará o interesse processual. É o que ocorre em relação à mera anulação de atos administrativos que não tenham trazido lesão ao erário. Deste modo, desnecessário ao Estado o ajuizamento de ação para a mera anulação ou declaração de nulidade de atos administrativos viciados por alguma irregularidade. Assim, a propositura de ação visando apenas este objetivo acarretaria a extinção do processo sem julgamento do mérito, por estar ausente o interesse de agir.” Ação civil pública e tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa pelos órgãos de Advocacia Pública, p. 61. Todavia, é possível o ajuizamento de ação de improbidade por ofensa aos princípios da Administração Pública em que se busque também a imposição das penalidades previstas na Lei 8.429/92.

[21] Art. 18. A sentença que julgar procedente ação civil de reparação de dano ou decretar a perda dos bens havidos ilicitamente determinará o pagamento ou a reversão dos bens, conforme o caso, em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito.”

[22] Art. 16. Havendo fundados indícios de responsabilidade, a comissão representará ao Ministério Público ou à procuradoria do órgão para que requeira ao juízo competente a decretação do sequestro dos bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.”

[23] In Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 733.