A PROFESSORA DE FRANCÊS

De Romano Dazzi

 

 

Chamava-se Gianna, ou Joana. Lecionava francês. E como a odiávamos!

Era italiana mas, casada com um francês, havia morado em Paris por um longo tempo.

Tão longo, que acabaram os dois cansando um do outro.

Ele ficou lá, ela voltou para a casa dos pais. A partir daí, ela foi “a francesa”.

A palavra era vagamente depreciativa e lembrava coisas terríveis: Moulin rouge, can-can, meias-ligas,  chanel n. 5. Enfim, o pecado;  um pecado capital.

A luxuria morava na França, assim como a gula na Alemanha, a avareza na Inglaterra, o orgulho na Espanha, a preguiça....bem, a preguiça, sem dúvida, no sul da Itália.....

Como éramos preconceituosos! Mas agora eles acabaram, não é?

Uma divorciada, naquele tempo, era apontada como uma pecadora, uma excomungada.

Só quem morou numa comunidade tradicionalista clerical sabe da repressão e da censura, da intolerância e do preconceito que a regem.

Ninguém parecia querer se aproximar da moça; poucos falavam com ela, apenas o indispensável., as mulheres por temor do cura; os homens por temos das mulheres.

Apesar disso, ao passar, despertava a pena disfarçada das mulheres e o interesse indisfarçável dos homens. 

Quando a conheci teria uns cinqüenta anos. Alta, magra, loira, olhos verde claro, com um olhar tão penetrante que nos atravessava como se fôssemos  feitos de vidro.

Tinha gestos medidos, secos, um porte  elegante, mas era brusca no falar, reservada.

Vinha dar suas aulas no Ginásio, de bicicleta, pedalando todo dia 25 quilômetros, com sol, com chuva, com neve, sempre vestindo velhas roupas surradas, uma saia xadrez, a malha de lã no inverno, a blusinha de seda no verão; e um cachecol branco, que esvoaçava, lembrando fotos da Isadora Duncan.  Pensávamos que, se aquele cachecol fosse um pouquinho mais comprido, talvez chegasse a enroscar um dia na roda da bicicleta e.... mas era um pensamento infame.

Pelo contrário, ela sempre chegou na hora; todos os dias; por cinco longos anos, com uma única exceção: furou um pneu – pedíamos isso fervorosamente todos os dias – mas não adiantou. Pegou carona num caminhão e chegou apenas cinco minutos atrasada, em tempo para dar a prova bimestral, que nos vitimava sempre,  impiedosamente.

Nós a odiávamos, já disse.

Porque era inatingível; porque nos desprezava; porque não permitia camaradagem ou liberdades. Porque todas as suas notas eram rigorosamente matemáticas.  Não cederia meio ponto, um quarto de ponto, um décimo de ponto. Não aceitava lamentações. Não suportava hipocrisia.  Era a integridade em pessoa.  

Com tudo isso, só podíamos odiá-la.

Em cinco anos de aulas diárias de francês, porém, passamos desde os rudimentos, à gramática e à sintaxe, aos verbos irregulares, à história, à geografia, e finalmente à literatura.  A vida, o pensamento, a sabedoria secular, o humanismo ímpar da cultura francesa, entraram nos nossos ossos. 

Transmitiu-nos noções insuspeitadas, que não entendíamos na hora.

Permeou de França todos os nossos pensamentos.

Vinte anos depois, quando tive que usar o francês no meu trabalho, percebi admirado quanto conhecimento ela tinha conseguido enfiar com persistência e firmeza, na minha cabeça dura.

Por mim, enquanto sofria com suas aulas, sonhava poder assá-la na fogueira.

Mas devo reconhecer: tal como a outra Joana, ela foi uma santa: fez ao menos um milagre....ensinou-me o  francês!