1.1 DA PRODUÇÃO DO SUJEITO



1.1.1 O ESQUEMA FOULCAULTIANO


A verdade em si mesma concebida. Todo saber é fundado nessa tecnologia. Tecnologia que nesse subcapítulo estudar-se-á não a verdade concebida mas a tecnologia de sua obtenção - "Poderíamos encontrar na nossa história toda uma "tecnologia" desta verdade: levantamento de suas localizações, calendário de sua ocasiões, saber dos rituais no meio dos quais se produz." [FOULCAULT, M., 28,113].

O signo encerrava a verdade para ocidentais do século XV e XVI. Quando da criação, Deus depositara no signo primeiro a verdade universal. Bastava para o homem olhar seu cerne sígnico para reencontrá-la. Dentro de um sistema de semelhança essa duplica-se ao infinito, estando em todos os signos, que ao mesmo tempo eram duplicados por um sistema de interpretação. "O mundo é coberto de signos que é preciso decifrar, e estes signos, que revelam semelhanças e afinidades, não passam, eles próprios, de formas de similitude. Conhecer será, pois interpretar: ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas."? [FOULCAULT, M.,24,48]. Dentro do esquema Foucaultiano a ciência é um misto de ciência e adivinhação - "A adivinhação não é uma forma concorrente do conhecimento; incorpora-se ao próprio conhecimento. Ora, esses signos que se interpretam só designam o oculto na medida em que se lhe assemelham." [FOULCAULT, M., 24, 49]. Dessa maneira, como uma serpente que devora seu próprio rabo ao infinito, a epistemologia do século XVI desenvolve sua tecnologia da verdade - "Como categoria de pensamento, aplica a todos os domínios da natureza o jogo das semelhanças redobradas; garante a investigação que cada coisa encontrará, numa escala maior, seu espelho e sua segurança macroscópica; afirma, em troca, que a ordem visível das mais altas esferas virá mirar-se na profundeza mais sombria da terra. Mas, entendida como configuração geral da natureza, ela coloca limites reais e, por assim dizer, tangíveis ao inacessível curso das similitudes que se permutam." [FOUCAULT, M.,24,47].

Uma passagem ou transformação ocorre no cerne desse processo de obtenção da verdade em Foucault. "A verdade era o efeito produzido pela determinação ritual do vencedor. Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos séculos a existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco sendo desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo discurso filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento.Ela não se dá por mediação de instrumentos, mas sim provocada por rituais, atraída por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões: estratégia e não método. É uma relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder. É claro que esta tecnologia da verdade/acontecimento-ritual/prova parece há muito ter desaparecido. Mas ela permanece, núcleo irredutível ao pensamento científico." [FOUCAULT, M.,28,114-115]. "Desde o estoicismo, o sistema dos signos no mundo ocidental fora ternário, já que nele se reconhecia o significante, o significado e a ?conjuntura?. A partir do século XVII, em contrapartida, a disposição dos signos tornar-se-á binária, pois que será definida, com Port-Royal, pela ligação de um significante com um significado. (...) Essa nova disposição implica o aparecimento de um novo problema até então desconhecido: com efeito, perguntava-se como reconhecer que um signo designasse realmente aquilo que ele significava; a partir do século XVII, perguntar-se-á como um signo pode estar ligado àquilo que ele significava; a partir do que ele significa. As coisas e as palavras vão separar-se. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que ele diz. (...) Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pelo qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso." [FOUCAULT, M.,24, 58-60].

Tais conceitos permitem algumas inferências:

a) Uma tecnologia da verdade antes baseada em uma interpretação a procura do signo primeiro é substituída por uma tecnologia de produção da verdade em função de uma quebra na constituição sígnica cujo marco encontra-se no pensamento Kantiano.

b) Essa relação produção/verdade/ciência é um núcleo de estratégia de poder. Suas estratégias são para Foucault o núcleo de suas arqueologias.


Essa é uma síntese do pensamento Foucaultiano sobre a verdade.



1.1.2 O JOGO SEMIÓTICO

Dentro do jogo semântico do século XVI o ato divino ou o signo primeiro encontrava-se dentro da estrutura semiótica da produção sígnica. A descoberta da verdade nada mais era que a busca desse signo primeiro, desse ato divino. "Nós, homens, descobrimos tudo o que está oculto nas montanhas por meio de sinais e correspondências exteriores; e é assim que encontramos todas as propriedades das ervas e tudo o que está nas pedras. Nada há nas profundezas dos mares, nada nas alturas do firmamento que o homem não seja capaz de descobrir. Não há montanha bastante vasta para ocultar ao olhar do homem o que nela nada existe; isso lhe é revelado por sinais correspondentes." (Paracelso, Archidoxis. Mágica. Trad. Francesa, 1909, pp.21-3 citado em [FOUCAULT, M., 24, 49]).

Em função da interpretação desses sinais exteriores era possível a sua descoberta. Porém somente sobre esse parâmetro - da ligação marca / signo. O conhecimento passava a ser um avolumado de interpretações da natureza e de interpreta ções de interpretações.


Quando o signo primeiro é dissociado da relação semiótica geral, adota-se uma relação binária que possui algumas características peculiares em relação ao esquema anterior.


a) Em função ternária o significado era ligado ao seu significante através de uma espécie de força divina, ou signo primeiro. Na estrutura ternária o significado é atribuído ao significante em função de uma força divina.

b) Num sistema semiótico binário a identificação sígnica só é possível a partir de um outro signo "O estado de coisas é uma ligação de Objetos. " [Wittgeinstein, L., 39, 135]

c) Surge aqui também o problema do ?A priori? Kantiano na função de preposição Wittgensteiniana e o problema do referente. "A unidade da proposição é problemática: sinais materiais se ligam para apresentar-se o que é e o que não é. Donde vem a for ça deste vínculo? Para estudá-lo é preciso tematizar a proposição como se fosse um objeto, mas este deixa de ser verdadeiro ou falso, ao menos no sentido em que essa bipolaridade afeta a proposição em seu uso normal. Nem as partes proposicionais podem representar uma situação, ainda é preciso mostrar como tais partes se relacionam com o real, vale dizer, como o vínculo meramente lógico-formal ainda apresenta situações que podem ser reais. " [GIANNOTTI, J.A.,29,21].

d) Uma outra questão é o problema do referente do sujeito. Como surge esse referente? Qual a sua sem ântica?

Primeiramente necessita-se de uma definição de sujeito. "O essencial é aquilo que somos, é um produto de decantação, como disse Freud, de nossas identificações com outros. Com isto, queremos dizer que todos os predicados ou elementos constitutivos do sujeito dependem da linguagem para afirmar suas ?características subjetivas.?" [COSTA, F.,21,32]. Sendo o sujeito um produto de rede lingüística, a realidade passa a ser possível somente através da linguagem - em outras palavras, verdade e linguagem encontram-se intrinsecamente ligadas - "Mas, digo, novamente que a ?realidade das árvores e das estrelas? considerada como ?realidade? também é uma realidade fundada em acordo lingüístico. Posso não apenas dizer que árvores e estrelas, mas também montanhas e planetas existiam antes dos homens e das linguagens, sem que isto comprometa a definição neo-pragmática de ?realidade.?" [COSTA, F., 21,35].

Resta ainda uma definição de linguagem. Utiliza-se esse trabalho o conceito neo-pragmático de linguagem Wittgensteiniana onde: "Porém, se observamos qual o significado destes termos, veremos, como mostrou Wittgenstein, que todos eles dependem da linguagem para existirem enquanto realidades mentais, subjetivas ou psíquicas. Definindo psicanaliticamente o ego ou o sujeito como um conjunto de representações ou com uma articulação de significantes ou entre significantes, estamos dizendo que a matéria subjetiva nada mais é do que matéria lingüística." [COSTA, F., 21, 37-38].

1.2 DA ESTRUTURA DA CIÊNCIA MÉDICA SOCIAL


O que se pretende demonstrar neste subcapítulo é que o recorte sofrido pelo corpo durante a era vitoriana (séc. XVIII - XIX) tem menos conotação econômica que estrutural em um sistema de identificação.


Dois são os fatores importantes dentro da análise Foucaultiana:

a) O conceito de que a medicina social não surgiu em função de uma necessidade ou planejamento econômico.

b) A criação de um objeto de estudo - a criação da persona a ser esquadrinhada.


Esses dois movimentos são importantes para compreender-se o fenômeno a nível global. A necessidade de afirmação de uma classe social, proteção de seu corpo (base de identificação burguesa) e controle das verdades que podiam surgir do corpo.

A impossibilidade de atribuições sob condições próprias, como no caso do sistema funcional, onde cada classe possuía sua função social, levou ao desenvolvimento de um projeto de identificação baseado no outro, em um projeto do outro com base no corpo. O corpo do burguês seria o responsável pela sua identificação social. "Deve-se, ao contrário, vê-la, a partir da metade do século XVIII, empenhada em se atribuir uma sexualidade e constituir para si, a partir dela, um corpo específico, um corpo ?de classe? com uma saúde, uma higiene, uma descendência, uma raça: autossexualização do seu próprio corpo, encarnação do sexo em seu corpo próprio, endogamia do sexo e do corpo." [FOULCAULT, M.,25,117]


O corpo tem de ser protegido de toda e qualquer degeneração possível. Em nenhuma época houve um desenvolvimento tão violento da medicina. Eis o motivo de um movimento de reurbanização das cidades com vistas a eliminar os focos de doenças em um primeiro instante e a segregar pobres e ricos em um segundo.


Como toda fonte de identificação a produção de suas verdades deveria ser controlada a fim de evitar qualquer duplicação indevida - expulsão de qualquer processo de sedução.


Pensamento corrente nos meios acadêmicos coloca a economia como cerne de todo processo social. Não foi o demonstrado porém no desenvolvimento de ciências como a medicina social. A medicina social funciona antes como meio higienizante de uma classe (burguesa) que maneira de controle social (proletário). O que obviamente não invalida uma teoria de saber/poder/controle social, porém em função de algo diferente que um fator econômico. "Gostaria de tomar posição com relação a certas hipóteses geralmente aceitas. É verdade que o corpo foi investido política e socialmente como força de trabalho. Mas, o que parece característico da evolução da medicina social, isto é, da própria medicina, no Ocidente, é que não foi a princípio como força de produção que o corpo foi atingido pelo poder médico. Não foi o corpo que trabalha, o corpo do proletário que primeiramente foi assumido pela medicina. Foi somente em último lugar, na segunda metade do século XIX, que se colocou o problema do corpo, da saúde e do nível da força produtiva dos indivíduos." [FOUCAULT, M., 28,80].


Foucault coloca em seu ensaio sobre medicina social, que fora em uma sociedade onde a burguesia não era muito desenvolvida e não possuía-se uma estrutura capitalista ativa e forte que desenvolveu-se um modelo de medicina social de caráter intervencionista - na Alemanha no século XIX. Como mesmo classifica grosso modo... "Pode-se, grosso modo, reconstituir três etapas na formação da medicina social, medicina urbana e, finalmente, medicina da força de trabalho." [FOUCAULT, M.,28, 80].

O olhar para a questão dentro do universo Estatal Alemão foi diferente que quaisquer outro modelo até então adotado, mesmo entre seus contemporâneos mais adiantados. "Mas, tanto na França quanto na Inglaterra a única preocupação sanitária do Estado foi o estabelecimento dessas tabelas de natalidade e mortalidade, índice da saúde da população, e da preocupação em aumentar a população, sem entretanto, nenhuma intervenção efetiva ou organizada para elevar o seu nível de saúde" [FOUCAULT, M.,28,82].

Outro dado importante é no tocante a forma que o projeto fora adotado. Primeiro normalizou-se a ordem médica e sobre ela ergueu-se toda a estatização dessa estrutura. O saber revestido de poder. Na França já surge em função de um fenômeno completamente diferente. Segundo Foucault "É com o desenvolvimento das estruturas urbanas que se desenvolve, na França, a medicina social." [FOUCAULT, M.,28,85]. Aponta como causas uma necessidade de administração centralizada do poder público - "Em primeiro lugar, certamente, por razões econômicas. Na medida que a cidade se torna um importante lugar de mercado que unifica as relações comerciais, não simplesmente a nível de uma região, mas a nível da nação e mesmo internacional, a multiplicidade de jurisdição e de poder tornar-se intolerável. A indústria nascente, o fato de que a cidade não é somente um lugar de mercado, mas um lugar de produção, faz com que se recorra a mecanismos de regulação homogêneos e coerentes." [FOULCAULT, M.,28,86]- e o controle da população urbana - "No final do século XVIII, ao contrário, as revoltas camponesas entram em regressão, acalmam-se em conseqüência da elevação do nível de vida dos camponeses e a revolta urbana torna-se cada vez mais freqüente com a formação de uma plebe em vias de se proletarizar. Daí a necessidade de um poder político capaz de esquadrinhar esta população urbana." [FOUCAULT, M.,28,86]. O instrumento utilizado no caso francês foi a quarentena - "Ela lançou mão de um modelo de intervenção muito bem estabelecido mas raramente utilizado. Trata-se do modelo médico e político da quarentena. " [FOUCAULT, M.,28, 87].

Nem mesmo na pátria do capitalismo a dinâmica foi diferente; é o que demonstra o caso Inglês. "A medicina dos pobres, da força do trabalho, do operário não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar o Estado, em seguida a cidade e finalmente os pobres e trabalhadores foram objetos de medicalização." [FOUCAULT, M.,28,93].

Inicialmente é preciso verificar como fora problematizado o próprio pobre na Inglaterra - mais precisamente como fora problematizado o pobre como foco que necessitasse ser esquadrinhado pela medicina.

Foucault coloca como fatos a mudança na visão utilitária dos pobres na sociedade, onde esses prestavam serviços tidos como impróprios para os burgueses - como por exemplo: Serviços Postais, Eliminação de Dejetos e Lixos, etc...Com a sistematização desses serviços sua utilidade social sofre grande avaria. Outros fatores também contribuíram para essa mudança:

a) Visão de população e não apenas de massa amorfa.

b) A cólera e a peste. Esses dois itens foram decisivos para a aplicação de medidas sanitárias entre as classes sociais mais baixas.

Outro fenômeno surge na Inglaterra através da lei dos pobres - Cría-se um vínculo assistencial que exige um esquadrinhamento ou intervenção impedindo que os pobres o façam por si mesmos. "Um cordão sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da classe pobre" [FOUCAULT, M.,28, 95]. O esquema foi completado pelo Health Service, que tinha como objetivo garantir a nível global da mesma intervenção da lei dos pobres . "Ora, quando se observa que efetivamente funcionou o Health Service vê-se que era um modo de complementar, ao nível coletivo, os mesmos controles garantidos pela Lei dos pobres. A intervenção nos locais insalubres, as verificações de vacinas, os registros de doenças tinham de fato objetivo o controle das classes mais pobres" [FOUCAULT, M.,28,96]. Em resumo "Uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios para pagá-la"??FOUCAULT, M.,28,96?.

1.3 DO DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE


Nenhum instrumento projetou linhas de poder tão profundas quanto o dispositivo de sexualidade - quer na ordem econômico social, quer na ordem particular dos indivíduos, o dispositivo de sexualidade dita normas, procedimentos, desejos. O desejo é interditado em nome de uma classe, em nome de uma identificação.

O desejo é chamado a falar - a confissão medieval. A verbalização do desejo é incitado - o dever de todo bom cristão. O desejo é controlado - normatização do que é moralmente ou não aceito. As três faces de um jogo que visa um círculo perfeito. Cria-se um clima discursivo erótico, o qual, ao mesmo tempo que se incita a fala, reprime-se o desejo - Paradoxo da Confissão.


O mesmo artifício usado pela cientificidade do burguês. A ciência una da verdade chama o indivíduo a dizer a verdade de seu desejo. O burguês é chamado a mostrar seu desejo - necessidade de normatização. A nova instrumentação da verdade necessita porém de uma nova estrutura operativa.

O discurso da verdade sobre o sexo burguês ( o novo sangue nobre) deve emanar de uma única instância - a ciência. A ciência é chamada a maximizar o sexo burguês. Interdição do sexo burguês - nova instância do saber-poder. É a normatização da produção da verdade burguesa - é a verdade do corpo. Corpo burguês, corpo público ( social, população). A normatização do corpo não é apenas o interesse de uma classe mas de interesse público. Mas é a classe burguesa o laboratório das subjetivações e interdições desse corpo.

Normatização do corpo - primeira necessidade de uma classe que tem de mostrar sua face, sua individualidade. Em um esquema de subjetividade estrutural a criação de imagens ou padrões universais se torna um mistério a uma sociedade que precisa de parâmetros (novos) para personalizar-se. Quem é o burguês e por quê? É a pergunta a ser respondida pela ciência.
Linhas de penetração infinitas são deflagradas sobre o corpo burguês. A ciência a partir de então tem a função de estabelecer qual o padrão a ser seguido. É a obsessão burguesa - o corpo perfeito, instrumento pelo qual padrões e mais padrões foram impostos. Como assegura Foucault - Saber-poder.

Degenerescência do corpo burguês - eixo pelo qual se desenvolve a estratégia de esquadrinhamento social. A busca do corpo perfeito, a maximização do processo de produção desse corpo e sua manutenção. Três são os eixos dessa estratégia.



1.3.1 O IDEAL DO CORPO


É a necessidade burguesa de identificação intrínseca dentro de uma subjetividade estrutural técnica. O corpo mais preparado, sem deficiência, apto para sua tarefa de governar o mundo.


Atributos de uma estrutura sólida, mas de conceitos absurdamente preconceituosos. É a brecha do preconceito científico. É a justificação científica do domínio de uma raça sobre as inferiores. Do Darwinismo biológico ao social foi um passo. À Nietzsche nem um passo necessitou-se. O que se questiona e evidencia não é a teoria em si, mas qual sua repercussão social, como se dá sua utilização social, sua produção. Eugenismos e verdadeiras discriminações foram realizadas em nome desse Corpo-Perfeito.

1.3.2 A PRODUÇÃO DO CORPO PERFEITO


A garantia da produção do corpo perfeito foi a maior empreitada desferida pela ciência burguesa no século XIX. Não que essa preocupação fosse historicamente exclusiva dos burgueses. Já na Grécia Antiga existia uma preocupação sobre o assunto. Mas nada que se compare com as estratégias da tecnologia diferencial.

Na base de experiências lingüísticas foram decantadas figuras que tinham por objetivo um parâmetro de identificação. Desde o ato de concepção, as condições de seus pares, e a manutenção da prole. Nada poderia ser esquecido pela ci ência burguesa.


Já na escolha dos pares pode-se verificar os primeiros sinais de esquadrinhamento . Qualquer degenerescência dos pais poderia ser passada aos filhos (o que na maioria dos casos acontecia dentro da concepção do conceito da época) - obsessão burguesa. O fantasma da degenerescência perturbava todos os burgueses em todos os instantes.


O sexo perfeito. O sexo está para o burguês como o sangue para o nobre. Tudo aquilo que o envolve é de interesse "privado" - quando não de interesse público. O Estado tem interesse na população apta ao trabalho. O sexo produtor acaba por criar um conflito endógeno em um sistema que na área privada era seguido por uma minoria e na área pública necessitava ser estendido a uma massa presa a costumes medievais.

Como todo processo produtivo, este deveria obedecer a uma determinada estrutura a fim de garantir a eficiência do processo. A partir desse momento passa-se à criação da concepção lingüistica de sexualidade bem como de suas instrumentações. "Sexualidade é a exigência funcional para a implantação de uma ciência para a produção de uma verdade." [FOUCAULT, M.,25,67].

Como base primeira adota-se o casal "heterossexual" como constituinte da família burguesa. A partir da concepção lingüística de heterossexualidade aplica-se a sistematização do normal e patológico e da individualização daquilo que antes era caracterizado como uma situação conjectural. A conjectura passa a ser o indivíduo. Impossível separar um do outro.
Mas que não se engane em pensar que a Perversão criada a partir da heterossexualidade seja uma prisão onde são enviados os patológicos do sexo. A heterossexualidade é uma prisão, onde as perversões são suas muralhas. E a sociedade inteira é esquadrinhada. Tece-se padrões e esquadrinha-se. Aos normais a vigilância de si, pois o desejo intrínseco da perversão pode manifestar a qualquer momento. Aos perversos os seus respectivos tratamentos - a ação mantenedora da normalidade.

Não demorou para o sexo receber também um esquadrinhamento econômico. Os cuidados para com o sexo passam então da esfera privada para a esfera pública. Pelo menos na ordem acadêmica vigente. Sexo não é mais um problema unicamente de ordem privada, é agora uma questão de Estado.

A salvaguarda do casal malthusiano passa a ser garantida pelo Estado. Todo desvio ou perversão não só deve ser "cuidada" via psiquiatria mas segregada (velho jogo medieval) da sociedade normal via instituições de direito. Perversão passa a ser crime. Porém ao invés dos perversos habitar as prisões habitam os manicômios. Segregados pelas paredes dos manicômios os perversos segregam os normais pela parede da normalidade.
O fruto desse casal também não escapa ao esquadrinhamento. Pedagogos e médicos debruçam-se sobre a criança. Esta deve ser vigiada e analisada a cada segundo em busca de um sinal, por menor que seja, que venha evidenciar qualquer desejo desviante ou qualquer degenerescência intrínseca. O onanismo é combatido ferozmente, pois para ciência oitocentista este era a maior causa da degenerescência. Velho jogo de esconde e excita . Garantia de perpetuação.

Mas nada seria possível sem uma peça chave: a mulher. Essa maravilhosa máquina de fazer e cuidar de filhos (e só isso). Tendo como localização geográfica o lar e função mór e única a sua administração. Gerar filhos sadios era seu papel social, perfeitamente explicado pelos craniologistas do século passado: a mulher possui cérebro menor que o do homem. Que não reste a menor dúvida da função da ciência na sociedade burguesa.

O estudo desses cenários é importante para se visualizar o processo social como um todo, menos como uma dialética do que uma estrutura que se modifica em função de fatores nem sempre determináveis a partir dos elementos diretamente envolvidos. Toda essa tecnologia teve menos uma fundamentação econômica que de identificação social, mas como nenhum processo se desenvolve isoladamente nos processos sociais, foi nesse cenário que o capitalismo pôde se desenvolver e influenciar os demais processos - "Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos."?[FOUCAULT. M, 25, 132]

1.4 CRÍTICA AO ESQUEMA FOUCAULTIANO:

1.4.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO SÍGNICA.


No cerne da filosofia Kantiana analisada por Foucault existe o conceito que separa o signo de seu significado, quebrando o circulo de produção de verdade no pensamento medieval. Porém tal fenômeno expôs de maneira mais clara para as sociedades ocidentais os problemas relacionados à proposição.

Tais conceitos nos permitem uma maior compreensão do fenômeno lingüístico ocorrido entre os séculos XVI e XVIII. Não fora apenas a linguagem que mudara, mas o próprio homem, sua forma de ver o mundo e de individualizar-se. Esse último aspecto é o alvo da presente crítica.
Dentro de um sistema binário de linguagem, o homem não individualiza-se mais a partir de si, mas de outros. Sua constituição subjetiva só é possível a partir da constituição subjetiva de outrem. O homem à partir de então é condenado ao mundo da subjetividade.


Na estrutura binária portanto há um deslocamento do centro constituinte do homem, para o "outro". O homem só individualiza-se a partir da individualização do outro. Todo esforço é investido na individualização do outro.

O que Foucault estabeleceu como tecnologia da verdade e estratégia da verdade / poder nada mais passa à ser do que uma necessidade de individualização do próprio homem, tanto como ser individual quanto social. Não que tais instrumentos não sejam tecnologicamente de verdade ou não exista aí uma estratégia de poder. Porém sua grande preocupação com jogo de estratégias de poder desviaram sua atenção para um ponto menos global que específico.

1.4.2 A BIPOLARIDADE DA REPRESENTAÇÃO E AS CIÊNCIAS SOCIAIS


Dentro do esquema Foucaultiano as ciências sociais surgem como centros estratégicos de poder, onde poder e saber se dinamizam e maximizam. Mas não será esta uma relação de esgotamento? Será que saber e poder não se encontravam em uma situação de esgotamento? - "Na sua fase específica, original, poder e saber opuseram-se muitas vezes com violência (tal como, além disso, o sexo e o poder). Se hoje se confundem, não seria na base de um esgotamento progressivo de seu princípio de realidade, de seus caracteres distintivos, de sua energia própria? (...) Por trás dessa aparente estase do poder e do saber que parece pairar e surgir por toda parte, haveria no fundo apenas metástases do poder, proliferações cancerosas de uma estrutura desde então enlouquecida e desorganizada e, se o poder generaliza e pode ser detectado hoje em todos os níveis (o poder ?molecular?), se torna um câncer no sentido de que suas células proliferam em todas as direções sem mais obedecer ao bom e velho "código genético" do político, é que ele próprio foi atingido pelo câncer e está em plena decomposição. Ou ainda, que foi acometido de hiper-realidade e que só em plena crise de simulação (proliferação cancerosa dos únicos signos do poder) consegue essa propagação generalizada e essa saturação. Sua operacionalidade sonambúlica. Por conseguinte, é preciso fazer sempre e em todas a parte a aposta da simulação, tomar o avesso dos signos, que, com certeza, tomados de frente e de boa-fé, conduzem-nos sempre à realidade e à evidência do poder." [BAUDRILLARD, J.,19,59-60]

Em um primeiro momento surge a necessidade eminente da definição do "outro". Impossível qualquer tentativa de individualização a partir de si. O "outro" adquire papel central dentro dos esforços do homem. Todo olhar e todo esforço social são direcionados para esse "outro"- necessidade de definição, recorte, estudo, normatização.

O homem precisa estudar o "homem" para a partir da imagem desse outro homem individualizar-se. Toda a visão do corpo muda a partir de então. O corpo passa a ser o espelho onde o homem moderno individualiza-se. Passa a ser o sangue burguês. "O sangue da burguesia foi seu próprio sexo." [FOUCAULT, M., 25, 117]

O cuidado do corpo não tem mais a mesma visão que a platônica medieval nem a aristotélica da escolástica da baixa idade média. Não tem nenhuma relação com o uso dos prazeres ou o cuidado de si gregos. Tais afirmações são necessárias para precisar-se que a função do corpo na sociedade moderna é ?sui generis? dentro do processo histórico. É através dele e em função dele que a nova sociedade burguesa passa a individualizar-se.

Da sociologia à medicina social, da Economia Política à psiquiatria, toda estrutura do saber volta-se para o homem. Foco Foucaultiano de saber-poder - a normatização e padronização do "outro" através do saber. O poder da intervenção no homem. Seria interessante portanto abordar a individualização do sujeito nesse sistema, que será discutida nos proximos capítulos.

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(27) -------------------------------.-------------------------------: O Cuidado de Si - vol. 3. Trad. Maria Thereza da Costa. Ed. Rio de Janei- ro, (199-).

(28) --------------------------------. Microfísica do Poder. Trad. Ro- berto Machado. 11. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

(29) GIANNOTTI, J.A. Apresentação do Mundo: Considerações So- bre o Pensamento de Ludwig Wittgeinstein. São Paulo: Com- panhia das Letras, 1995.

(30) GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e Organização a da Cultura. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 9. Ed. Rio de Ja- neiro: Civilização Brasileira, 1995.

(31) KANT, Emmanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro: Ediouro (199-).

(32) ----------------------------. Crítica da Razão Pura. Trad. J. Ro- drigues Mereje. Rio de Janeiro, Ediouro (199-).

(33) KAPLAN, &. ANN (Org). O Mal-Estar no Pós-Modernismo. Trad. Vera Ribeiro. 00 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

(34) NÉRICI, Imídeo Giussepe. Introdução à Lógica. 9. Ed. São Paulo: Nobel, 1985.

(35) NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Geneologia da Moral Trad. A.A. Rocha. Rio de janeiro: Ediouro, (198-)

(36) ---------------------------------------------------. Além do Bem e do Mal. Trad. Márcio Pugliesi. Rio de janeiro: Ediouro, (198-)

(37) PARKER, Richard G. Corpos, Prazeres e Paixões. Trad. Maria Therezinha M. Cavallari. São Paulo: Best Seller, 1991.

(38) SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Representação. Trad. Heraldo Barbury. Rio de Janeiro: Ediouro, (199-)

(39) WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luiz Henrique Lopes Santos. 2. Ed. São Paulo: Edusp, 1994.

II.I REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS


(40) ATÉ O FIM DO MUNDO (UNTIL THE END OF THE WORLD). Alemanha/França/Austrália, 1992. Direção Win Wenders. Produção Jonathan Taplin e Anatole Dauman.

(41) BLADE RUNNER - O CAÇADOR DE ANDRÓIDES (BLADE RUNNER). EUA, 1982. Direção Ridley Scott. Produção Michel Deeley.

(42) ENIGMA DO OUTRO MUNDO (THE THING). EUA, 1984. Direção John Carpenter. Produção David Foster e Lawrence Turman.

(43) 2001 - UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO (2001 - A SPACE ODYSSEY). Inglaterra, 1966. Direção e Produção Stanley Kubrick.

III.I REFERÊNCIAS FONOGRÁFICAS

(44) ALAGADOS. Os Paralamas do Sucesso. Brasil, 1987. Letra Herbert Viana. Produção EMI-Odeon Fonog. Ind. e Eletr. Ltda.

(45) UNTIL THE END OF THE WORLD. U2 . Irlanda, 1991. Letra Bono. Produção Daniel Lanois e Brian Eno. Tema do filme Até o Fim do mundo.