A privatização das praias e a responsabilidade do município: o nefasto caso de Jaboatão dos Guararapes - Pernambuco

João Evangelista de Melo Neto

“As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse da segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.” (Decreto Federal 5.300/2004)

Trata-se da ocorrência de irregularidades e danos ambientais ocorridos na Praia de Piedade, Jaboatão dos Guararapes, Estado de Pernambuco, prejuízos esses consistentes na ocupação desordenada do solo urbano em área de preservação permanente e de uso comum do povo, de modo a impedir ou dificultar o uso livre do ambiente praiano e suas adjacências, bem como causar poluição ambiental.

Jaboatão dos Guararapes é um município da Região Metropolitana do Recife, situado no litoral sul do estado de Pernambuco. Suas três praias (Piedade, Candeias e Barra de Jangada) apresentam-se num contínuo fitogeográfico à praia de Boa Viagem, no Recife.

Na área praiana de Piedade, assim como em toda a orla do município do Jaboatão dos Guararapes, está a ocorrer, de três a quatro décadas para hoje, a ocupação desordenada e irregular do espaço urbano, o impedimento ou imposição de dificuldades para o livre e seguro acesso à praia, poluição e danos em área de preservação permanente, nisso se entendo os ambientes de restinga em apreço.

Não se pretende aqui imputar a esse ou aquele proprietário que, como bem será demonstrado, promoveram, mais por ganância do que por ignorância, a ocupação ilegal de áreas de preservação permanente, implantaram obstáculos ao livre e seguro acesso às outrora bela praia de Piedade, onde, há poucas décadas, vicejavam coqueirais a perder de vista, entremeados por mangues e dunas. Os aspectos observados provocam a poluição ambiental no referido ecossistema.

De fato, até as décadas de 1970 e 1980, as praias de Piedade, Candeias e Barra de Jangada apresentavam-se com aspectos de boa preservação, pois que a urbanização se fazia incipiente, menos por respeito à legislação de proteção ambiental (vigorava, então, o Código Florestal de 1965) do que pelas dificuldades de acesso. Predominava as grandes extensões de restinga, com coqueirais, dunas e manguezais.

O que se pretende é demonstrar que a Prefeitura Municipal do Jaboatão dos Guararapes não exerceu seu poder-dever de proteger o meio ambiente e zelar pelo ordenamento do uso e ocupação do solo no município, em especial na praia de Piedade, objeto específico deste breve relato.

A Prefeitura Municipal do Jaboatão dos Guararapes tem se mostrado inerte e omissa no dever de garantir a livre utilização das praias, impedir que particulares coloquem obstáculos ou mesmo promovam ocupações desordenadas de áreas de preservação permanente e, ainda, provoquem poluição que comprometa a balneabilidade desses espaços de uso comum do povo, bem como a saúde da população.

Por essa omissão, vislumbramos a necessidade da Prefeitura Municipal ser instada, por força de ação do Ministério Público, a exercer suas atribuições e responsabilidades para que a praia de Piedade se veja livre de obstáculos e quaisquer ameaças, concretizadas ou não, de privatização dos espaços públicos e qualquer tipo de poluição.

Para Nelson Nery Júnior:

 “O Poder Público poderá sempre figurar no polo passivo de qualquer demanda dirigida à reparação do bem coletivo violado: se ele não for responsável por ter ocasionado diretamente o dano, através de um de seus agentes, o será ao menos solidariamente, por omissão no dever que é só seu de fiscalizar e impedir que tais danos aconteçam”.

Agora, veja-se o que se encontra disposto na Lei Complementar N. 002, de 11 de janeiro de 2008, que institui o Plano Diretor do Município do Jaboatão dos Guararapes:

“Artigo 10. – São diretrizes gerais para conservação do Patrimônio Ambiental: (...)

II – a proteção, recuperação e conservação de recursos naturais, tais como mananciais, matas, mangues, restingas, cursos d’água, estuários e outros de reconhecido interesse ambiental para o Município e de importância estratégica para as gerações futuras; (...)

VI – recuperação, monitoramento constante e conservação de praia e estuários do Rio Jaboatão quanto à erosão provocada pelo avanço do mar.” (...)

Art. 27. A ocupação ordenada do território do Município do Jaboatão dos Guararapes dar-se-á mediante o controle efetivo do uso e ocupação do solo, de forma a combater e evitar: (...)

 VI - a privatização e uso inadequado dos espaços públicos; (...)

VIII - a poluição e a degradação ambiental; (...)

Art. 54. A Zona Especial de Lazer e Turismo (ZLT) tem a finalidade de proteger áreas que, tendo em vista seus atributos ambientais , oferecerem potencialidades para o desenvolvimento de atividades recreativas e turísticas, dividindo-se em:

I - ZLT 1, Orla de Piedade e Candeias; (...) 

Art. 55. Constituem diretrizes para as zonas especiais de lazer e turismo: 

I- ZLT1, ao longo da Orla:

a) valorização da integração do patrimônio natural com o ambiente construído; (...)

c) resgate da função de lazer da praia, favorecendo o convívio coletivo e a garantia do direito de visibilidade, acessibilidade e usufruto da praia, inclusive por idosos, pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida;

d) utilizações de materiais adequados que considerem as características locais, valorizem o ambiente, propiciem segurança, tenham durabilidade, baixo custo e fácil manutenção.

e) incentivo a empreendimentos turísticos e de lazer;

f ) promoção de ações de implantação de infra-estrutura básica e turística.

g) recuperação de áreas degradadas, livres ou ocupadas irregularmente e potencialização de suas qualidades;”

Eis acima, grifadas por nós, algumas das diretrizes insculpidas no Plano Diretor do Município do Jaboatão dos Guararapes, as quais não estão sendo objeto de atenção pela Prefeitura Municipal.

Ao contrário, as fotografias que ilustram as páginas iniciais deste relatório demonstram, de forma gritante e inapelável, a omissão da Prefeitura Municipal, a qual está a fazer letra morta de sua principal legislação, o Plano Diretor, que dispõe sobre o ordenamento territorial e ambiental do município.

No que tange ao pequeno trecho de praia abarcado pelas ilustrações fotográficas deste sucinto relato, parece-nos que a Prefeitura Municipal do Jaboatão dos Guararapes não implementa, e muito longe disso está, a “recuperação de áreas degradadas, livres ou ocupadas”, contrariamente ao que foi disposto pelo próprio legislador municipal.

Não obstante o poder de legislar sobre o uso e ocupação do solo, o Município deve se ater ao disposto na legislação de proteção ambiental, vindo ao caso a Lei N. 12.651, de 25 de maio de 2012, que institui o Código Florestal.

Em seu artigo 4º., a referida norma federal dispõe: Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: (...) VI as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues

É no próprio Código Florestal que vamos buscar a definição de restingadepósito arenoso paralelo à linha da costa, de forma geralmente alongada, produzido por processos de sedimentação, onde se encontram diferentes comunidades que recebem influência marinha, com cobertura vegetal em mosaico, encontrada em praias, cordões arenosos, dunas e depressões, apresentando, de acordo com o estágio sucessional, estrato herbáceo, arbustivo e arbóreo, este último mais interiorizado;”(...)

Não vamos aqui nos ocupar sobre o danoso e desastroso processo de ocupação da restinga da praia de Piedade, como de resto ocorreu em outras regiões do Jaboatão dos Guararapes, mesmo porque isso vem de décadas e

constitui assunto para oportunidade diversa, mas atemo-nos às obrigações dispostas no Plano Diretor que, dentre outras incumbências, impõe ao poder público municipal o dever de “recuperação de áreas degradadas, livres ou ocupadas irregularmente e potencialização de suas qualidades”.

A ocorrência de poluição por vazamento de esgoto sanitário, vem a ser uma preocupação importante, pois que nada se sabe sobre as condições de sanidade e balneabilidade da praia de Piedade e Candeia, não se conhece estudos a respeito, pelo menos que tenham sido divulgados ao grande público.

É de se preocupar com a situação de sanidade em que se encontra o lençol freático que permeia o subsolo dos grandes edifícios erguidos sobre a restinga que outrora havia no local. Para onde estaria sendo escoados os dejetos domiciliares gerados em grande quantidade nesses inúmeros edifícios, incluindo grandes hotéis? Certamente que para a praia, através do lençol freático.

Se nalguns pontos é possível observar o esgoto a correr a céu aberto. Como estariam as águas subterrâneas que advém do solo ocupado pelas edificações, e que não tem outro destino a não ser o mar?

Ora, no momento em que a Prefeitura do Jaboatão se omite da obrigação de fiscalizar, torna-se ela conivente com a degradação ambiental, seja ela visível, como o são as obstruções e ocupações demonstradas, seja imperceptível, como esgotos percolados e que vem ter às praias.

Não há como a Prefeitura do Jaboatão não ser objetivamente responsável pelos danos que, por omissão, descaso e desídia contribui para causar, como nos casos fartamente ilustrados nas páginas iniciais e no que estamos a relatar.

Por agir assim, de forma omissa e leniente, a Administração Municipal assume o papel de poluidora, pelo que deve responder, independentemente dos terceiros que são seus administrados.

A Administração Municipal, como mandam os preceitos constitucionais e legais, deve ser ativa e zeladora, mesmo porque isso se encontra grafado no seu próprio Plano Diretor. Se não o faz, torna-se ela tão responsável quanto o próprio poluidor, os empresários insensíveis com a tutela da natureza, mas antes preocupados com o retorno financeiro de seus empreendimentos edilícios.

Gestões anteriores não cuidaram da prevenção dos danos ambientais nas praias, o mesmo podendo-se dizer da atual que não demonstra qualquer ação repressiva, pois se observa que o adensamento das edificações da orla vem a prosperar em passos largos no Jaboatão dos Guararapes, sempre em prejuízo da população. Não se verifica nenhuma ação eficaz para impedir ou minimizar a desordenada expansão das construções irregulares, inclusive sobre o ambiente praiano e áreas de preservação permanente.

Como bem assevera Paulo de Bessa Antunes:

“Está claro que o meio ambiente está incluído dentre o conjunto de atribuições legislativas e administrativas municipais e, em realidade, os municípios formam um elo fundamental na complexa cadeia de proteção ambiental.”

O parágrafo 6º. Do artigo 37 da Constitui Federal assim versa:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando-se o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa”.

A intervenção saneadora do Ministério Público é urgente, pois que os danos perpetrados ao longo de décadas nas praias de Piedade e Candeias, podem ter continuidade no futuro, pois que a Administração Municipal não cumpre sequer a sua própria legislação, de forma a proteger seu riquíssimo patrimônio ambiental constituído pela outrora graciosa orla que integra seus limites.

De outro modo não age a Prefeitura Municipal, a não ser para permitir a ocupação desordenada do solo em áreas de preservação permanente, contrariamente ao determinado na legislação.

Nesse sentido é que urge a tutela judicial que se busca por intermédio do Ministério Público, para proteger o meio ambiente da orla do Jaboatão dos Guararapes contra futuras ações poluidoras, as quais se somariam e potencializariam os efeitos perversos dos casos pretéritos que imprimiram severas modificações da paisagem natural.

Não bastasse a proteção insculpida no referido Código Florestal, referenciamo-nos aos preceitos que determinam o gerenciamento da orla marítima no país. Trata-se do Decreto Federal N. 5.300, de 07 de dezembro de 2004, o qual regulamenta a Lei N. 7.661/1988, que dispõe sobre o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, e impõe uma linha de segurança física que visa, dentre outros, a conter a onda devastadora de privatização das praias brasileiras.

Assim se encontra grafado no Decreto N. 5.300/2004:

Art. 3o A zona costeira brasileira, considerada patrimônio nacional pela Constituição de 1988, corresponde ao espaço geográfico de interação do ar, do mar e da terra, incluindo seus recursos renováveis ou não, abrangendo uma faixa marítima e uma faixa terrestre, com os seguintes limites: (...)

II - faixa terrestre: espaço compreendido pelos limites dos Municípios que sofrem influência direta dos fenômenos ocorrentes na zona costeira.(...)

Art. 6o São objetivos da gestão da zona costeira: (...)

III - a incorporação da dimensão ambiental nas políticas setoriais voltadas à gestão integrada dos ambientes costeiros e marinhos, compatibilizando-as com o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro - PNGC; 

IV - o controle sobre os agentes causadores de poluição ou degradação ambiental que ameacem a qualidade de vida na zona costeira; (...)

Art. 21. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse da segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. (...)

Art. 23. Os limites da orla marítima ficam estabelecidos de acordo com os seguintes critérios:

II - terrestre: cinqüenta metros em áreas urbanizadas ou duzentos metros em áreas não urbanizadas, demarcados na direção do continente a partir da linha de preamar ou do limite final de ecossistemas, tais como as caracterizadas por feições de praias, dunas, áreas de escarpas, falésias, costões rochosos, restingas, manguezais, marismas, lagunas, estuários, canais ou braços de mar, quando existentes, onde estão situados os terrenos de marinha e seus acrescidos.

Por fim, e para restringir a questão legal correlata aos fatos em apreço, referencia-se a Lei Estadual 14.258, de 23 de dezembro de 2010, que institui a Política Estadual de Gerenciamento Costeiro de Pernambuco.

Essa norma estadual versa, dentre outros aspectos, sobre o acesso às praias, quando assim prescreve:

Art. 11. O Poder Público assegurará o acesso às praias e ao mar considerando os seguintes critérios, estabelecidos no Decreto Federal de n° 5.300, de 2004: (...)

Parágrafo único. O acesso que trata o caput deste artigo deverá ter uma largura mínima de 4m (quatro metros), e a distância de um acesso a outro não deverá ser superior a 250m (duzentos e cinquenta metros). (...)

Art. 3º São instrumentos da Política Estadual de Gerenciamento Costeiro, aplicados de forma articulada e integrada: (...)

II - os Planos Municipais de Gerenciamento Costeiro - PMGC, a serem estabelecidos por lei específica de cada município integrante da zona costeira, que define as responsabilidades e os procedimentos institucionais para a implementação do plano; “

Até a conclusão deste relatório não nos foi possível ter em mão o aludido Plano Municipal do Jaboatão dos Guararapes, o que é de suma importância para o ordenamento territorial da orla municipal.

Os danos e ilegalidades relatados consistem, em suma:

a)    Privatização de espaços públicos, na Praia de Piedade, por instalações e edificações particulares;

a)    Aumento da geração de esgotos sanitários, com possíveis efeitos poluidores nas praias e na água do mar;

b)    Alterações negativas e degradações provocadas pelas ocupações irregulares na orla de Piedade.

c)     Obstrução do livre acesso à praia de Piedade.

Diante do exposto, entende-se que deve o Ministério Público do Estado de Pernambuco avaliar os subsídios ora apresentados para propor, ao seu digno critério, a competente Ação Civil Pública, nos termos da Lei N. 7.347/85.

É de se sugerir que a Prefeitura do Jaboatão dos Guararapes seja condenada à obrigação de fazer:

1 – remoção de todos os obstáculos e ocupações existentes nos acessos públicos à praia de Piedade, inclusive estruturas de metal, alvenaria e plantações de cactáceas e outras plantas arbustivas que dificultem o acesso seguro da população, de forma a compatibilizar tais acessos ao que se encontra prescrito no Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e na Política Estadual de Gerenciamento Costeiro;

2 – promover a análise da água do mar na praia de Piedade e proceda o monitoramento permanente de eventuais dejetos sanitários nos acessos, ao longo da praia, junto às edificações e na água do mar junto à praia, conforme estabelece a Política Estadual de Gerenciamento Costeiro;

3 – se não o tiver, que institua através de lei o Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro, nos termos da legislação específica federal e estadual, ofertando-se, para tanto, prazo determinado;

4 – efetuar o levantamento cadastral de todos os imóveis situados na faixa de 50 (cinquenta) metros perpendicular à linha do mar, em escala adequada e de forma a verificar se as edificações existentes correspondem aos dados cadastrais existentes na Prefeitura, assinalando-se, quando houver, os eventuais excessos edificados em cada um dos lotes inventariados.

5 – contrapor o levantamento efetuado das ocupações, ao longo da faixa de 50 (cinquenta) metros, ao que se encontra no cadastro da Secretaria do Patrimônio da União, a fim de verificar a regularidade das ocupações permanentes.

E, também, que seja a Prefeitura Municipal do Jaboatão dos Guararapes condenada à obrigação de não fazer:

1 – autorizar ou conceder alvará de construção em todos os terrenos situados na orla de Piedade e Candeias, na faixa de 50 (cinquenta) metros, demarcados na direção do continente a partir da linha de preamar, incluindo terrenos de marinha e seus acrescidos.

2 – que essa proibição se estenda até o momento em que for instituído o Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro e que todas as ocupações irregulares tenham sido removidas.

Em suma, são estas as sugestões que se faz ao Ministério Público diante do desordenado processo de ocupação da Praia de Piedade, no município do Jaboatão dos Guararapes, como forma de impedir o pernicioso processo de privatização dos ambientes praianos especialmente protegidos por lei e bens de uso comum do povo.