Muitas são as dificuldades no estudo do direito marítimo, por existir, na doutrina brasileira, poucas orientações praticas a respeito dos vários institutos jurídicos desse ramo do direito. Uma das mais controvertidas das matérias diz respeito ao prazo prescricional para a cobrança de sobreestadia de contêiner e como se verá, não há no ordenamento jurídico e na jurisprudência um entendimento uníssono a este respeito, o que torna esse tema uma oportunidade de reflexão.

Antes, porém, de adentrar na questão cujo título patrocina, é necessário algumas breves considerações acerca deste intrigante fenômeno chamado demurrage. O nomen "demurrage" não é acidental, sua origem decorre da palavra DEMUR, que significa demorar, tardar, retardar e sua tradução é conhecida por sobreestadia ou sobredemora, mas esta ultima menos utilizada. A sobreestadia ou demurrage nos dizeres de Carla Adriana Comitre Gilbertoni, "é a indenização paga pelo afretador num fretamento por viagem, pelo tempo que exceder das estadias nas operações de carga e descarga de um navio, conforme estiver estipulado na carta-partida" A demurrage associada com os contratos de transportes marítimos, e na hipótese de afretamento, representa a ultrapassagem do prazo estipulado contratualmente, em que o afretador deveria entregar o navio ao seu armador-fretador, deste atraso na entrega do navio, surge o dever de compensação por cada dia suplementar. Em regra, a estadia inicia-se no momento em que o comando do navio emite a notificação de chegada à área de fundeio ou em lugar adequado ao inicio das operações, esta notificação, denominada NOR (Notice of Readiness) é normalmente enviada ao agente do armador e/ou afretador no porto de operação, e pode variar conforme estipulação prevista no Contrato de Afretamento (Charter Party) . O marco final caracteriza-se pelo completamento da carga ou descarga das mercadorias e conseqüente concessão de livre pratica (free pratique). No contrato de transporte marítimo, no que diz respeito a utilização de equipamento de contêiner para o transporte de carga, a aplicação da regra para demurrage se assemelha na forma, porém muito se distingue por sua própria natureza e pluralidade de usuários contratantes. A maioria dos contratos de transporte prevê a utilização e devolução do contêiner em condições satisfatórias e dentro de um prazo preestabelecido. Porém é justamente a ocorrência da devolução do equipamento fora do prazo franqueado, que dá ensejo a cobrança da taxa de sobreestadia, e esta, é calculada per diem basis em consonância com a tarifa de cada transportador, que por conveniência comercial poderá variar em sua taxa diária e dia de isenção (free time). Diferentemente da sobreestadia de navios, o início de contagem para efeito de sobreestadia de contêiner deve obedecer ao prazo de isenção, concedido pelo transportador ao consignatário para fins de liberação da mercadoria estufada junto à autoridade alfandegária. O prazo de estadia do equipamento pelo consignatário pode variar de acordo com cada contrato mantido com o transportador marítimo, de modo geral, os dias livres de taxa são entre 10-15 dias, começando a fluir a sobreestadia no dia subseqüente ao término da livre concessão. Da retenção da unidade de carga após o prazo contratualmente pactuado será exigido do consignatário, seja ele o atual detentor da unidade ou não, a compensação pelo atraso experimentado. Não se discutirá aqui a quem compete o dever de pagar pela sobreestadia, pois diz respeito às questões extremamente polêmicas e não servem ao propósito da presente reflexão.

Considerando que o transportador utiliza-se das unidades de contêiner para realizar seus contratos de transportes, não é demasiado concluir que a permanência prolongada do equipamento na custódia do consignatário gera desequilíbrio econômico, já que a atividade principal do transportador é vender frete, e frete representa espaço disponível no navio. Em se tratando de navio de carga conteinerizada, indispensável a reutilização do equipamento, por esta razão, o transportador faz jus a recompensa consubstanciada na devolução tardia da unidade de carga.
A extensão do prejuízo experimentado pelo transportador se prolonga, na medida em que permanece privado de sua unidade de carga, não podendo sequer incluir o equipamento faltante nas rotineiras programações de praça. Exatamente por desconhecer a amplitude da lesão que esta demora representa, é que o prazo para início da cobrança se dá a partir do momento em que a referida unidade de carga reintegra a frota do transportador, de modo que a apuração dos dias suplementares e o valor total das diárias podem ser constados. Esse, inclusive, é o teor da REsp 16397/SP, relatoria do Ministro Ari Pargendler, julgado em 29/05/2001, DJ13/08/2001 p.143, de onde extrai-se que "o termo inicial do prazo só inicia após a devolução do ?container?, porque antes disso o respectivo proprietário não sabe qual a extensão do seu direito". Tal entendimento sufragado pelo E. Superior Tribunal de Justiça representa muito mais do que a possibilidade de apurar definitivamente a extensão do dano, mas inaugura, precisamente, o início do prazo prescricional para exercer o direito de cobrança cuja duração é o foco da presente análise.
A matéria prescricional aplicada ao direito de cobrança de sobreestadia de contêiner já foi matéria pacificada em nossos Tribunais de Justiça, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, porém com o advento do novo Código Civil de 2002, o pacífico entendimento deu lugar às acirradas discussões sobre o tema. Isto porque, o Novo Código Civil, em seu art. 2.045 revogou por completo a primeira parte do Código Comercial, inclusive o conclamado artigo 449, cuja redação assim regulava: "prescrevem igualmente no fim de 1 (um) ano: 3.as ações de frete e primagem, estadias e sobreestadias e as avarias simples, a contar do dia da entrega da carga".
Com o desaparecimento da regra prescricional específica para a cobrança de sobreestadia de contêiner, os operadores do direito, mas precisamente aqueles que militam na seara maritimista, passaram a sinalizar normas distintas que pudessem suprir a ausência do dispositivo revogado. Muito embora o art. 449 do CCom., tivesse desaparecido do ordenamento jurídico, houve correntes que optaram pela continuidade da aplicação da parte revogada. Certamente, isso se deu pela reverência dada ao E. Superior Tribunal de Justiça, que através da REsp 163897/SP considerou, por analogia, o mesmo tratamento às ações decorrentes da sobreestadia de contêiner aos casos pertinente a sobreestadia de navio. No entanto, é oportuno destacar que o referido julgado objetivou igualar o tratamento da sobreestadia de navio a sobreestadia de contêiner, conferindo, em ambos os casos, o tratamento isonômico de natureza indenizatória. Em outras palavras, a razão foi estancar a ambigüidade hermenêutica a teor do art. 449 CCom., posto que o citado preceito legal fazia referência apenas a sobreestadia de navios. Porém, uma vez submetida à matéria ao exame pelo STJ a relação atraiu igualmente a prescrição ânua que passou a ser aplicada também nos casos de sobreestadia de contêiner.
Outros entendem que, não há que se falar na eventual aplicação do prazo prescricional previsto no § 3°, do artigo 449 do Código Comercial Brasileiro, por estar expressamente revogado pelo atual Código Civil Brasileiro. Assim, a questão da prescrição da cobrança de sobreestadia passou a ter interpretação divergente na jurisprudência brasileira, porém há corrente que tem se filiado a aplicação da Lei n° 9.611/09, que cuida especificamente de transporte multimodal de cargas. Esse referido diploma, além de conceituar o contêiner como unidade de carga, também traz no seu bojo a definição do prazo máximo de 1 (um) ano para se intentar ações decorrentes do incumprimento do contrato de transporte multimodal. Essa corrente reafirma que, com a vinda do Novo Código Civil, houve considerável redução dos prazos extintivos, logo, ante a revogação da primeira parte do Código Comercial, não haveria razão que justificasse a majoração do prazo prescricional além do prazo antes previsto. Outro fundamento que tem por objetivo consagrar o prazo ânuo da Lei 9.611/98, diz respeito a sua vigência que é datada de 19 de Fevereiro de 1998, antes, porém, da vigência do Novo Código Civil com efeitos a partir de 11 de Janeiro de 2003, razão que justificaria a aplicação daquela e não desta.
Há quem defenda a aplicação da prescrição ânua, prevista no artigo 8° do Decreto-Lei n°116/67, uma lei especial e que por tal razão deve prevalecer sobre a geral. Dessa lei extrai-se a regulamentação sobre extravio de carga, falta e avarias, bem como perdas e danos a carga, delimitando as responsabilidades do transportador durante o transporte por via d?água nos portos brasileiros, frente ao embarcador e consignatário da mercadoria transportada. A corrente que defende o prazo prescricional previsto nesse diploma entende que, além de manter a unidade de tratamento entre as pretensões decorrentes do contrato de transporte marítimo, impede o confronto com a sistemática do Novo Código Civil Brasileiro, que primou pela redução dos prazos prescricionais, em homenagem ao Principio da Segurança Jurídica.
Da mesma forma, as normas que disciplinam as prescrições previstas no Código Civil em vigor vêm sendo aplicável a espécie, e para o prazo especifico contido no artigo 206, § 3°, V, o consenso na doutrina e jurisprudência é no sentido de vincular a aplicação deste dispositivo à natureza jurídica da sobreestadia, que consideram como indenização pré-fixada por quebra contratual. Por tal razão, deveria incidir o prazo prescricional de três anos para toda e qualquer pretensão a reparação civil decorrente de ato ilícito ou quebra contratual.
Ainda que todas as vertentes possuam um fundo de coerência, ouso aqui em discordar de tais posicionamentos.
Primeiramente, revela-se evidente a inaplicabilidade da prescrição ânua contida no art. 449, III, do Código Comercial, pois se trata de norma revogada pelo art. 2.045 do Código Civil Brasileiro. Por outro lado, inadmissível a adoção do prazo de 1(um) ano previsto na Lei do Transporte Multimodal de Carga (9.611/98), seja pela ausência de previsão legal especifica, ou pela inaplicável homogeneidade aos casos de sobreestadia. Não se duvida que o referido diploma, apesar de sua vigência anteceder o Novo Código Civil, empresta utilidade ao instituto discutido, porém tão somente para estabelecer vitais conceitos, tais como a indivisibilidade e acessoriedade do contêiner. Contudo, não abrange a totalidade das operações marítimas, uma vez que foi destinada a regulamentar o Transporte Multimodal de Cargas (OTM), e quanto a isso, não podemos negar.
A problemática desse diploma consiste na definição de multimodalidade do contêiner para efeito de sobreestadia e, consequentemente, aplicação do prazo prescricional de 1 (um) ano. Ora, não se pode simplesmente valer da ausência de legislação específica, a justificar a aplicação da lei de multimodal, deve-se levar em consideração os elementos que formam a obrigação, de modo a se atribuir ou não efeitos da referida Lei.
Sabe-se que a praxe contratual moderna regula a obrigação pelo pagamento da sobreestadia de container baseado em dois instrumentos distintos, mas suplementares entre si, (i) o Conhecimento de Transporte; (ii) o Termo de Responsabilidade pela Devolução da Unidade de Carga. No primeiro, a responsabilidade da consignatária de zelar, guardar e devolver limpo o equipamento; no segundo, o compromisso da consignatária em devolver a unidade de carga dentro do prazo franqueado, sob pena de pagar indenização por cada dia adicional. Nesse exato momento é que a relação deixa de ser propriamente a de transporte marítimo, seja ele unimodal ou multimodal, uma vez que a relação contratual se renova, e passa a ser entre o Transportador e o Consignatário da carga, diferente daquela relação previamente entabulada, onde o embarcador contrata o transportador e indica o recebedor da carga. Embora, o contêiner seja parte ou acessório do veiculo transportador, trata-se de bem móvel por sua natureza, e como tal, não está vinculado ao veículo que o transportou, portanto, poderá perfeitamente ser objeto de novo negócio jurídico.
No que diz respeito à aplicação da prescrição ânua, prevista no artigo 8° do Decreto-Lei n°116/67, tem-se que: "Prescrevem ao fim de um ano, contato da data do término da descarga do navio transportador, as ações por extravio de carga, bem como as ações por falta de conteúdo, diminuição, perdas e avarias ou danos a carga." Com a devida vênia aos que proclamam entendimento contrário, sabe-se que a legislação em tela tem aplicação especial, tão especial que se destina apenas a ações relacionadas às perdas, danos e avarias sobre a mercadoria transportada. Se o legislador tivesse a pretensão de atribuir referido prazo prescricional aos casos de sobreestadia de contêiner, teria feito menção em seu rol descritivo, ainda que não taxativo, não permite interpretação extensiva, já que a redação deixa claro que o objeto da regulamentação é a carga, e não a unidade destinada a unitizá-la. Extraem-se dos diplomas retro mencionados a preocupação do legislador em distinguir as regras que regulam as responsabilidades, vez que remetem situações largamente distintas, fazendo jus a tratamento jurídico diferenciado.
A respeito do artigo 206, § 3°, V, do Novo Código Civil que prevê a prescrição de três anos, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery lecionam que "A norma estabelece prazo de prescrição para o exercício de pretensão de reparação civil de danos. É norma geral e, portanto, subsidiária. Somente é aplicável quando não houver regra especial determinando outro prazo de prescrição para o exercício da pretensão reparatória". Embora a natureza jurídica da sobreestadia seja entendida como indenizatória, a sua cobrança se dá por descumprimento contratual. Logo, o exercício do direito de agir tem relação com a natureza do negócio jurídico e não com a natureza do objeto a que ele trata.
Ainda que plausível os argumentos defendidos nas demais teses, considera-se mais acertada a interpretação de que o prazo prescricional seja o qüinqüenal previsto no artigo 206, § 5°, I, do Código Civil Brasileiro para intentar ações de cobrança nos casos de sobreestadia de contêiner. A razão para tal posicionamento encontra respaldo no próprio negócio jurídico entabulado entre as partes. Como alhures mencionado, a obrigação pela devolução da unidade de carga e conseqüente pagamento pelo uso suplementar do equipamento, não está tão somente assegurado pelo Contrato de Transporte, mas também pelo ajuste realizado entre Consignatário e Transportador, mediante assinatura do Termo de Responsabilidade pela Devolução de Contêiner. Este termo de responsabilidade possui natureza equivalente ao acordo extrajudicial, qual seja a de negócio jurídico que tem por fim adquirir, modificar ou extinguir direitos. Trata-se de ajustamento de acordo do qual o consignatário da mercadoria torna-se parte em uma nova relação jurídica de interesse comercial. Esse novo negócio consiste na utilização da unidade de carga pelo consignatário/importador e a disponibilização do equipamento pelo transportador marítimo, concedendo prazo de isenção (free-time) e estipulando taxas por dia de atraso na devolução. O termo firmado pelo consignatário instrumentaliza a vontade entre as parte e constitui contrato formalmente perfeito, apto a produzir seus regulares efeitos. Embora, tal documento não demonstre inicialmente valor liquido, pois sequer sabe nesse momento se haverá sobreestadia ou não, é certo que o valor prefixado per diem adicional ao contrato, se tornará dívida líquida e certa, se constatado o atraso na devolução. Portanto, o termo de responsabilidade adquire forma excepcional de contrato, e o consignatário será capaz de mensurar o valor devido no momento em que efetuar a devolução do equipamento. Assim, podemos dizer que o termo de responsabilidade acompanhado da fatura de sobreestadia emitida pelo transportador, constitui dívida líquida e certa, podendo ser exigida do transportador e cobrada judicialmente dentro do prazo qüinqüenal, por tratar-se de cobrança de instrumento particular, tal como preceitua o artigo 206, § 5°, I, do CC.
Oportuno também consignar que quando tratamos de prescrição devemos dispensar cuidado redobrado, pois sua extensão afeta diretamente o exercício do direito de quem, em tese, o possui. Desse modo, exige-se aplicação branda da hermenêutica jurídica a preservar a apreciação da controvérsia e não promulgar seu súbito desaparecimento pela prescrição. Na lição de Washington de Barros os prazos prescricionais "são sempre de aplicação estrita, não comportando interpretação extensiva, nem analogia; a exegese será sempre restritiva" .
Apesar de todas as considerações pontuadas, o mais prudente para aqueles que pretendem militar na área marítima, sobretudo, nas ações que envolvem a cobrança de sobreestadia de contêiner, é sem sombra de dúvida, agir com cautela e observar o mínimo prazo prescricional de 1 (um) ano, ou talvez promover a devida interrupção do prazo prescricional por meio da medida apropriada. Talvez não tenhamos de volta a harmonia no entendimento da prescrição que regula a espécie, mas desse modo, estaremos evitando que a longa jornada processual resulte inócua ante a extinção da demanda fulminada pela prescrição.