A PRÁTICA EDUCATIVA COMO FORMA DE DESENVOLVIMENTO DA CORPOREIDADE E DAS RELACÕES INTRA E INTERPESSOAIS

 

Lissandra Zanon

 

RESUMO: O presente artigo visa analisar as contribuições advindas do ensino artístico-cultural no processo de desenvolvimento dos educandos, mais especificamente na construção da corporeidade e no comportamento intra e interpessoal, possibilitando a formação de um sujeito dinâmico, criativo, cooperativo e com melhor qualidade de vida.

 

Entende-se que toda educação é também educação do corpo. Contudo, a prática escolar sujeita o educando para certa imobilidade. É necessário não só ele trabalhar com o corpo, mas também o educador para sentir, perceber e compreender a importância da efetivação de atividades que desenvolvam o aspecto corporal na educação. Uma vez que as relações interpessoais permeiam esse meio.

A escola, como instituição social, deve possibilitar o crescimento através das relações interpessoais e facilitar a apropriação do conhecimento elaborado. Nesse sentido, deve levar o educando a aquisição de uma consciência critica que lhe amplie a visão de mundo, permitindo a realização de uma leitura interpretativa dos fatos, das relações que o homem estabelece com os outros e com a natureza.

O educador, como mediador entre o educando e o conhecimento, deve ser um profissional formador, reflexivo, consciente da importância de seu papel, comprometido com o processo educativo, integrado ao mundo de hoje. E, porque não adepto a manifestações corporais como forma de criatividade e de variadas linguagens artísticas (música, teatro, literatura, artes plásticas). Ao abordar o processo de corporeneidade, no caso da dança, Duarte Jr (1995) salienta que a dança é compreendida como arte porque é capaz de criar formas expressivas dos sentimentos humanos, sendo uma forma de comunicação. É um meio de assegurar o entendimento e a qualidade nas relações entre as pessoas e os grupos, desempenhando um papel fundamental nos esforços de integração.

A prática da dança como forma de desenvolvimento corporal apresenta uma riqueza em expressões não verbais e esta linguagem, de um corpo que fala, deve ser levada em consideração.

Nesse contexto, Weil & Tompakow (1986, p. 93) destacam que “a vida é um fluxo constante de energia e a linguagem do corpo é a linguagem da vida. Logo temos que conhecer a energia em nós”. Dessa forma, é fundamental o conhecimento do corpo, suas limitações e capacidades, para a formação de um modelo coerente e verídico de si mesmo e do uso desse modelo para operacionalizar a construção da felicidade. Ou seja, nada mais é do que Celso Antunes (1998), Gardner (1995) e Goleman (1995) chamam de ”inteligência intrapessoal”.

A inteligência intrapessoal é entendida por esses autores como a competência de uma pessoa para ser exemplo de alguém, capaz de refletir sobre suas emoções e depois transmiti-las para outros. Ela é o correlativo interno da inteligência interpessoal. É a habilidade para ter acesso aos próprios sentimentos, sonhos e idéias, para discriminá-los e lançar mão deles na solução de problemas pessoais. É o reconhecimento de habilidades, necessidades, desejos e inteligências próprias, a capacidade para formular uma imagem precisa de si mesmo e a habilidade de usar essa imagem para funcionar de forma efetiva.

Ao conhecer as possibilidades e limites do próprio corpo, o indivíduo passa a construir relações interpessoais mais resolvidas, ao mesmo tempo em que estimula a sua auto-imagem com a tomada de consciência de sua individualidade e identidade.

De uma maneira geral, a dança, as dinâmicas, os teatros, os jogos, as brincadeiras, entre outros são instrumentos que proporcionam aos educandos criar, descobrir e desenhar o corpo no espaço, levando-os a experiências de caráter emocional que expressam sua subjetividade, seu íntimo.

Segundo Garaudy (1980) a expressão através dos movimentos do corpo organizados em seqüências significativas de experiências que transcendem o poder das palavras e da mímica, possibilita aos educadores e educandos a tomada de consciência de suas possibilidades mediante a expressão corporal, e ao praticá-las transfere segurança para suas atividades cognitivas, tornando harmonioso o seu desenvolvimento na comunicação e expressão, e nas características reais e integrais do corpo.

 Sant’anna (2001, p. 71) vem acrescentar à idéia anterior quando diz que “o corpo constitui nosso espaço cotidiano: é nele e por ele que sentimos, desejamos, agimos, e criamos”. É através do corpo que nos apropriamos de um lugar no mundo, que mantemos relações interpessoais.

A expressão corporal deve ser vista com novos olhares, permitindo um entrelaçamento entre corpo e mundo. Os gestos e movimentos devem ser construídos através de experiências sensoriais significativas, possibilitando o conhecimento do corpo, sentindo que é através dele que o indivíduo se comunica com o outro. Segundo Wallon (apud CHARLOT, 2000 p. 46), “(...) toda a relação de mim comigo mesmo passa pela minha relação com o outro (...). O eu e o outro estão ligados para sempre.”

De acordo com Gardner (1995) a inteligência interpessoal inclui a habilidade de compreender as outras pessoas: como trabalham, o que as motiva, como se relacionar eficientemente com elas. Esse tipo de inteligência é a que sobressai nos indivíduos que tem facilidade de relacionamento com os outros, que usam essa habilidade para entender e reagir às manifestações emocionais das pessoas a sua volta. Nas crianças e nos jovens tal habilidade se manifesta naqueles que são eficientes ao negociar com seus pares, que assumem a liderança, ou que reconhecem quando os outros não se sentem bem e se preocupam com isso.

Nesse prisma, é necessário refletir sobre a capacidade de perceber e compreender as outras pessoas, descobrir as forças que as motivam e sentir empatia pelo outro, pois estamos “entrelaçados” por relações interpessoais. Estas são favorecidas pela expressão corporal, viabilizando maior cooperação, comunicação, motivação e capacidade de trabalhar em equipe. Sendo de fundamental importância o desenvolvimento de relações positivas no processo de construção da subjetividade do ser humano e de sua auto-realização. Uma vez que ninguém é feliz sozinho, nós nos completamos nas relações com os demais. Nesse sentido, Weil & Tampakow (1986, p. 91) dizem que “(...) um ser humano isolado não pode, obviamente, mostrar suas relações humanas completas”.

A expressão corporal vem favorecer o resgate e formação de valores humanos essenciais, presentes em diferentes culturas e etnias. Esses valores são a base que fundamenta o ser humano, pois o desenvolvimento da motricidade, como linguagem de expressão, permite a construção de vínculos afetivos, educacionais e culturais, a vivência no grupo de valores como: respeito, cooperação, solidariedade, liderança e responsabilidade, estando diretamente relacionados às necessidades de auto-estima e auto-realização. Em meio a isso, faz-se necessário repensar as práticas pedagógicas. Elas podem desempenhar papel primordial na educação dos corpos, na vinculação do educando à sua realidade cultural e social, na construção de valores que articulam suas ações formativas, dentre outros.

O ensino-aprendizado da motricidade além de ser um instrumento de transformação pessoal, ou seja, de possibilitar o desenvolvimento de competências e habilidades e incentivar o fortalecimento da identidade do indivíduo e de suas relações intra e interpessoais, é um meio de transformação social e de defesa da democracia e da paz. Portanto, é enorme e positiva a influência que os fatores artísticos culturais acarretam no ser humano e em suas relações, independentemente de raça, cor, religião, língua e/ou opção sexual.

As atividades corporais envolvem todas as possibilidades articulares, sempre assessoradas pelo uso do ritmo musical, dos diferentes níveis e planos, eixos, formas e direções, objetivando sentir e efetuar os movimentos, desde os mais simples aos mais complexos, dos combinados aos isolados. Essa movimentação corporal, além de auxiliar no desenvolvimento da criatividade e das capacidades de imaginação, cognição e expressão, também proporciona prazer, bem-estar, paz, tranqüilidade, socialização, auto-estima e, acima de tudo, qualidade de vida.

De acordo com Silva (1999), as dimensões emocionais da qualidade de vida se dão sobre múltiplos aspectos, a considerar a ação benéfica que uma boa qualidade de vida exerce sobre o estresse, as tensões do viver, etc.

De modo geral, o movimento corporal vislumbra o ser humano em sua singularidade, com a inclusão dos princípios de solidariedade, respeito ao outro, não discriminação, coletividade e superação a partir do autoconhecimento advindo de múltiplas experiências, desfrutando de sua beleza, ludicidade e criatividade. Dessa maneira, a expressão não verbal, isto é, o que não pode ser comunicado por meio de palavras, poderá se exprimir através do corpo.

Gardner (1995) afirma que as pessoas possuem inteligências, capacidades, das quais se valem para criar, resolver problemas e produzir. Contudo, essas inteligências precisam ser estimuladas, desenvolvidas durante a vida. Nesse âmbito, a educação corporal pode ser um instrumento desencadeador dessas inteligências, em especial, da inter e intrapessoal.

O mesmo autor chama a atenção para o fato de que, embora as escolas declarem que preparam seus alunos para a vida, a vida certamente não se limita apenas a raciocínios verbais e lógicos. Ele propõe que as escolas forneçam o conhecimento de diversas disciplinas básicas; que encorajem seus alunos a utilizar esse conhecimento para resolver problemas e efetuar tarefas que estejam relacionadas com a vida na comunidade a que pertencem; e que favoreçam o desenvolvimento de combinações intelectuais individuais.

Ainda, dentro da Teoria das Inteligências Múltiplas, Gardner deixa bem claro que a mesma relevância atribuída à Inteligência lógico-matemática, por exemplo, também deveria ser dada as outras inteligências. Cabe aqui mencionar a Inteligência cinestésica corporal que é uma capacidade da pessoa usar o próprio corpo, ou partes dele, para solucionar um problema ou conceber um produto. É a capacidade de controlar os movimentos (destrezas, equilíbrio, força, velocidade), manejar objetos e a percepção de medidas e volumes.

É preciso olhar para os aprendizes de modo mais amplo e descobrir que eles podem ser “inteligentes” não apenas em línguas e matemática, mas também no modo de movimentar o corpo seguindo uma música, ou na maneira de se relacionar com os outros. Em suma, faz-se pertinente uma educação que busque incentivar o desenvolvimento de inteligências múltiplas.

Neste sentido, é louvável a  Lei nº 11.769 que altera a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), tornando obrigatório o ensino de música na matriz curricular dos ensinos fundamental e médio. A disciplina já era defendida por Heitor Villa-Lobos, um dos mais talentosos maestros brasileiros. Para especialistas, significa uma formação mais humanística dos estudantes, na qual serão desenvolvidas a motricidade, habilidades de concentração e a capacidade de trabalhar em grupo, de ouvir e de respeitar o outro.

Parece-me que há uma evolução no sentido de olhar o educando não apenas como uma cabeça que se desenvolve lingüística e matematicamente. Pois, quando existe um padrão único e preestabelecido de competência, é inevitável que muitos acabem se sentindo incompetentes, especialmente porque esse padrão costuma supervalorizar uma ou duas habilidades.

Ao mesmo tempo, esboço minha preocupação com carência de profissionais capacitados para ministrar essa disciplina. Pois, em conformidade com a referida Lei, só estarão autorizados a lecionar os professores com formação em nível superior, ou seja, profissionais que tenham cursado a licenciatura em Universidades e Institutos Superiores de Educação na área em que irão atuar.

Para além dessa questão, uma coisa é certa: todo espaço educacional deve ser marcado por um ambiente cooperativo e estimulante, de modo a favorecer o desenvolvimento e as manifestações das diferentes inteligências e, ao mesmo tempo, promover a interação entre os distintos significados apreendidos pelos alunos, ou criados por eles, a partir das propostas que realizarem e dos desafios que vencerem.

O que se propõe é a criação de um ambiente positivo, que incentive os alunos a imaginar soluções, explorar possibilidades, levantar hipóteses, justificar seu raciocínio e validar suas conclusões. Os erros devem ser entendidos como pertencentes ao processo, devendo ser explorados e utilizados de maneira a gerar novos conhecimentos.

Em qualquer grupo, quando há um espaço agradável, este propicia ao indivíduo expressar-se com muito mais emoção e motivação. Daí, a pertinência de tratá-los como indivíduos capazes de construir, modificar e integrar idéias; para tanto, precisam ter a oportunidade de interagir com outras pessoas e áreas do conhecimento, refletindo acerca de seus procedimentos.

Sendo assim, é essencial a presença de atividades físicas e culturais, como a dança, a música, os jogos, as brincadeiras, as dinâmicas de grupo... Uma vez que auxiliam no desenvolvimento da motricidade, da comunicação, da capacidade de trabalhar em grupo, das aptidões e dos interesses relacionados ou não às tarefas diárias, além de aumentarem o nível de autoconhecimento e entendimento da realidade social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACHCAR, D. Ballet, arte, técnica interpretação. Rio de Janeiro: Cia Brasileira de Artes Gráficas, 1985.

ANTUNES, C. As inteligências múltiplas e seus estímulos. Campinas: Papirus, 1998.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma Teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

DUARTE JÙNIOR, J.F. Fundamentos Estéticos da Educação. São Paulo: Papirus, 1995.

FERREIRA, A. P. H. Dicionário básico de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

GARAUDY, R. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

GARDNER, H. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Campinas: Papirus, Educação e Sociedade, ano XVI, nº52, dez/1995.

GOLEMAN, D. Inteligência emocional: a teoria emocional que redefine o que é ser inteligente. (58ª edição). Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

SANT'ANNA, D. B. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

SILVA, M. D. Qualidade de vida in Ghorayeb, N. & Barros, T. O exercício. São Paulo: Editora Atheneu, 1999, p.261 a 265.

WEIL P. & TOMPAKOW, R. O corpo fala: a linguagem silenciosa da comunicação não verbal. 49ª edição. Petrópolis: Vozes, 1986.