A POSSÍVEL ADOÇÃO DA TEORIA DO RISCO INTEGRAL PELA LEI 12.663/2012 E A ADI 4976

 

Luiz Saraiva Narciso

 

 

RESUMO: Este artigo tem por escopo uma breve análise da possível adoção pelo dispositivo insculpido no art. 23 da Lei n. 12.6663/2012 – Lei Geral da Copa – da teoria do risco integral, em matéria de responsabilização extracontratual do Estado. Dessa forma, são analisadas posições doutrinárias a respeito do tema. Sob outro prisma, são também abordados os fundamentos da ADI 4976, que tem como objetivo a retirada do ordenamento jurídico do art.23 da Lei Geral da Copa.

PALAVRAS – CHAVE: Lei Geral da Copa – Responsabilidade do Estado – Risco Integral

As discussões sobre a adoção ou não da teoria do risco integral cresceram e se desenvolveram nos últimos meses. Inicialmente, ainda quando se falava no projeto de lei que daria origem à Lei Geral da Copa, se abordou a questão das garantias à FIFA no tocante à responsabilidade assumida pelo Brasil serem excessivamente abrangentes. De acordo com Gorsdorf e Hoshino, em texto para a publicação Le Monde Brasil: diplomatique, a entidade máxima do futebol soube escolher bem suas prerrogativas. Nesse sentido, os autores anotaram o seguinte:

Por fim, como todo empreendimento necessita de garantias, a Fifa soube escolher bem as suas: ninguém menos que a própria União deve assumir a responsabilidade por danos e prejuízos causados à entidade. Pela forma como se encontra redigido o artigo 30 do projeto de lei, não se trata apenas de responsabilidade civil pessoal. Ao contrário, a União responderá amplamente por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos eventos”. (GORSDORF e HOSHINO, 2012)

Ainda segundo os autores, as garantias são gerais e genéricas, o que tornaria o Estado brasileiro muito mais que responsável por seus atos durante a realização da Copa das Confederações de 2013 e Copa do Mundo de 2014. O Brasil passaria a ser uma espécie de “fiador” da FIFA, conforme anotam:

Nada poderia ser mais genérico e, em última instância, quase toda eventualidade se enquadraria nessa formulação, aumentando substancialmente a conta da Copa do Mundo em reparações e indenizações com verbas públicas. A situação é kafkiana. O Estado brasileiro tornou-se de repente, não mais que de repente, o fiador da Fifa em seus negócios particulares. (GORSDORF e HOSHINO, 2012)

A aprovação da Lei n. 12.663/2012 não trouxe mudança na situação fática da polêmica acerca da forma como a responsabilidade estatal seria tratada durante os megaeventos do futebol a serem realizados no Brasil. Isso porque o texto, que cobria “quase toda eventualidade” (GORSDORF e HOSHINO, 2012) foi aprovado da forma como foi proposta em projeto de lei.

Surgiram, entretanto, vozes dissonantes na doutrina, as quais não consideram de nenhuma maneira a adoção da responsabilidade integral pelo nosso sistema jurídico por meio da Lei Geral da Copa. Assim caminham Camargos e Santoro na obra Lei Geral da Copa Comentada. Na posição dos referidos autores:

Ainda sobre esses temas uma falsa polêmica tem se instalado nos debates que o circundam: o Brasil estaria assumindo uma responsabilidade integral para a realização desses mega eventos esportivos? Há, sem dúvida, um equívoco quanto ao próprio alcance da Responsabilidade do Estado em nosso país. (CAMARGOS e SANTORO, p. 83, 2012)

A responsabilidade objetiva, pelo que defendem os supracitados autores, não se reveste de caráter absoluto e deve conter, obrigatoriamente: a alteridade do dano, a causalidade entre o evento causador do dano e o comportamento positivo ou omissivo do agente Público a oficialidade da atividade causal e lesiva imputada a agente do Poder Público, e, por fim, a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal.

Dessa forma, considerar-se-ia a responsabilização da Administração Pública apenas quando presentes esses citados requisitos e, a Lei Geral da Copa, em seu capítulo que trata da responsabilidade o Estado não seria capaz de alterar tal condição, já assentada por jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Assim, o Estado não assumiria a responsabilidade propriamente dita, mas apenas adota instituto que complementa a reparação dos danos. Assumiria, portanto, os prejuízos. Camargos e Santoro explicam  o mecanismo com as seguintes palavras:

Não sendo possível, portanto, a responsabilidade integral do Estado, restaria, entende-se, por outro lado, que o mecanismo de reparação dos danos causados pelo Estado deva ser complementado por um sistema de assunção de responsabilidade civil pela União. A Lei Geral da Copa adotou expressamente este instituto, conforme se lê no art. 23.

Trata-se de disposição pela qual a União deverá assumir despesas de responsabilidades civis perante terceiros na hipótese de “dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer ou acidente de segurança relacionado aos Eventos”.

Observe-se, contudo, que não se trata de assunção de responsabilidade. O Estado não se considera, in casu, responsável pelo ato danoso, mas tão somente deverá ser autorizado a assumir o débito decorrente da ação lesiva. (CAMARGOS e SANTORO, p. 83, 2012)

Como se observa, na consideração dos distintos autores, foi, na verdade, utilizado um instituto de assunção dos prejuízos pelo Estado, mesmo sem assunção da responsabilidade. Não é a criação deste instituto, uma vez que este já se encontra presente na Lei n. 10.744/2003, que dispõe sobre a assunção, pela União, de responsabilidades civis perante terceiros no caso de atentados terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público.

Necessária se faz, explicação que a assunção da responsabilidade civil explicitada na Lei n. 10.744/2003 não se trata, propriamente deste instituto em sua forma clássica, conforme leciona José Carlos Moreira Alves, que anota:

Essa legislação é curiosa, porque não estabelece propriamente reponsabilidade civil do Estado em seus termos clássicos, mas dispõe sobre assunção, pela União, de responsabilidades civis perante terceiros no caso de atentados terroristas ou atos de guerra contra aeronaves de empresas brasileiras. Neste caso, o Estado não está responsável objetivamente pelos danos decorrentes desses atos de terrorismo, mas como uma assunção, por parte da União, de responsabilidades civis perante terceiros. (MOREIRA ALVES, p. 13-14, 2002)

 

A discussão em relação à adoção ou não da teoria do risco integral pela Lei Geral da Copa chegou, recentemente, ao judiciário. Em 31 de maio de 2013 foi distribuída ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4976, Relator Min. Ricardo Lewandowski) que tem como requerimento a declaração da inconstitucionalidade dos arts. 23, 37, 47 e 53 da Lei n. 12.663/2012 (Lei Geral da Copa). O art. 23 é justamente o que faz com que o aludido diploma supostamente adote a teoria do risco integral.

Como fundamentos para tal ação, o Procurador Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos aduz ser a responsabilidade objetiva do estado, que consta do § 6º do art. 37 da Constituição da República de 1988, encontra-se arraigada na noção de risco administrativo. Dessa maneira, o dever de indenizar não nasce de uma relação jurídica específica entre a Administração Pública e o beneficiário de um serviço público, mas do dever do Estado perante todos os administrados, independentemente de qualquer qualidade subjetiva presente na vítima. (RE 591.874, Rel. Min. Ricardo Lewandowski)

Portanto, apesar de prescindir da comprovação da culpa ou do dolo, sempre decorrerá a responsabilidade civil da Administração Pública da conduta de um agente público, seja ela comissiva ou omissiva, mesmo quando o afetado não seja o beneficiário de um serviço público.

Consubstanciado nesses argumentos, o Procurador Geral da República anota que a Lei Geral da Copa, em seu art. 23, adota a teoria do risco integral, por impor à União a assunção da responsabilidade por danos que não foram causados pro seus agentes. Por conseguinte, não haveria necessidade de comprovação de falha administrativa, sendo responsabilizado o ente público inclusive pelos prejuízos decorrentes de fatos de terceiro e fatos da natureza. Impor-se-ia, assim, dever de indenização por parte do Estado, por atos predatórios de terceiros e por fatos estranhos à atividade administrativa, o que não coaduna com a teoria do risco administrativo, baseada na ideia de responsabilidade pela falta do serviço.

Logo, a admissão dessas situações de exceção, em que não há comprovação de nexo de causalidade entre o responsável e o dano causado configuraria ofensa constitucional à disciplina da responsabilidade civil do Estado, baseada no risco administrativo.

Cabe ainda acrescentar, que a declaração de inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei Geral da Copa causaria mal-estar político entre o governo brasileiro e a FIFA, uma vez que a regra em questão apenas coaduna com o que foi assinado no hosting agreement – assinado no momento em o Brasil foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014. O mal-estar é devido aos prejuízos ou ao menos a minoração dos lucros que a FIFA obterá durante a realização dos eventos.