A Fazenda Pública em Juízo

Já estabelecidas às considerações indispensáveis ao estudo da antecipação de tutela em nosso ordenamento jurídico, disciplinada no art. 273, do CPC, passaremos doravante à análise sistêmica da antecipação de tutela nas demandas propostas em face do Poder Público, a qual pode ser considerado a espinha dorsal do presente trabalho monográfico. Cumpre observar que esse assunto foi, e é alvo de uma grande celeuma na seara do Direito Processual Civil, surgindo relevantes posicionamentos tanto no sentido da possibilidade de concessão, quanto da não concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda Pública.

Essa divergência de posição se restringe à possibilidade de oponibilidade das chamadas “prerrogativas” da Fazenda Pública à eficácia do instituto da tutela antecipada, na qual se entende que a sua não concessão poderá ser entendida como um tratamento diferenciado conferido à Fazenda Pública em sua atuação perante o Poder Judiciário, como o juízo privativo e os prazos processuais dilatados.

Antes de discorrermos sobre o tema central, convém conceituar as expressões Fazenda Pública e Fazenda Públicaem Juízo. Utilizandoa expressão “Fazenda Pública”, de modo genérico a abranger as pessoas jurídicas de direito público interno – União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, bem como suas autarquias e fundações públicas.

Segundo a visão de Leonardo José Carneiro da Cunha:

"A expressão Fazenda Pública identifica-se tradicionalmente como a are da Administração Pública que trata da gestão das finanças, bem como da fixação e implementação de políticas econômicas. Em outras palavras, Fazenda Pública é expressão que se relaciona com as finanças estatais, estando imbricada com o termo Erário, representando o aspecto financeiro do ente público.[1]

Já o sentido de Fazenda Pública em Juízo:                  

 

"O uso freqüente do termo Fazenda Pública fez com que se passasse a adotá-lo num sentido mais lato, traduzindo a atuação do Estado em juízo;em Direito Processual, a expressão Fazenda Pública contém o significado de Estadoem juízo. Daípor que, quando se alude à Fazenda Pública em juízo, a expressão apresenta-se como sinônimo do Estado em juízo ou do ente público em juízo, ou, ainda, da pessoa jurídica de direito público em juízo.

Na verdade, a expressão Fazenda Pública representa a personificação do Estado, abrangendo as pessoas jurídicas de direito público. No processo em que haja a presença de uma pessoa jurídica de direito público, esta pode ser designada, genericamente, de Fazenda Pública.

(...)

“Quando a legislação processual utiliza-se do termo Fazenda Pública está a referir-se à União, aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal e a suas respectivas autarquias e fundações.”

 

 

O que de fato nos interessa no presente trabalho é o sentido técnico processual, onde a expressão “Fazenda Pública” se refere à Administração Pública, representada pelas próprias pessoas jurídicas de direito público interno, ou seja, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, bem como, as autarquias e Fundações.

Como dito nas primeiras linhas desse trabalho, além dos percalços amargados nos balcões das varas das Fazendas Pública e as mazelas enfrentadas por aqueles que aguardam na fila de pagamento dos famigerados precatórios. A escolha desse tema se deu especialmente porque, enquanto se apregoa aos quatro cantos a premente necessidade de modernizar e democratizar o judiciário brasileiro, na contramão desses anseios, presenciamos o crescente desequilíbrio da relação processual quando um ente público figura como parte.

 

 

Haja vista que as medidas que garantem uma tutela mais célere, muitas vezes vão de encontro com os interesses e prerrogativas da Fazenda Pública e é esse ponto que pretendo enfocar no presente trabalho.

 Aspectos Controvertidos da Possibilidade de Concessão da Tutela Antecipada em Face da Fazenda Pública

 

O tema escolhido é bastante controvertido e polêmico, pois encontramos divergências tanto na doutrina como na jurisprudência. Discorremos sobre os dois posicionamentos, contudo sem a pretensão de exaurir o assunto.

 

Um dos fatores mais importantes dessa controvérsia é a prevalência do interesse público perante o particular, além disso, temos o fato de que a burocracia que impera na máquina administrativa atrapalha a defesa do ente público.

 

Cediço que a Fazenda Pública, quando em juízo, apresenta uma série de privilégios, ou, para sermos mais amenos e imparciais, as prerrogativas existentes em favor da Fazenda Pública em juízo nada mais são do que uma forma de alcançar a isonomia preconizada pelo ordenamento jurídico, peculiares ao regime jurídico administrativo. Sendo eles: prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer (art. 118 do CPC), juízo privativo (art. 109, I, da CF), isenção de prévios pagamentos dos atos processuais que só serão pagos ao final do processo (art. 27 do CPC), dispensa de preparo para recorrer (art. 511), procedimento próprio para execução de seus créditos (Lei 6.830/80), bem como, para pagamento das execuções de quantia certa movida a seu desfavor (art. 100, da CF e 730, do CPC), reexame obrigatório (art. 475, I), regime próprio quanto às decisões proferidas.

 

Nesse sentido Hely Lopes Meirelles aduz: afastando essa terminologia, por considerá-la equivocada e pejorativa, e que o melhor seria chamá-la de garantias ou precauções.[2]

 

Sergio Ferraz em primoroso artigo afirma que: “quando o particular sagra-se vitorioso numa contenda judicial contra o ente público, ele, o particular, também é perdedor, juntamente com toda a comunidade, porque do Estado, vale dizer, do público, foi retirado determinado valor que lhe pertencia e que será destinado a uma única pessoa. Neste contexto, não haveria propriamente privilégios, mas a intenção explicita de cercar com os maiores cuidados possíveis o ente público, responsável pela administração e guarda do patrimônio público”[3].

 

Esses privilégios decorrem da própria função precípua da Fazenda Pública de proteger o interesse público, por isso ela ostenta uma condição “diferenciada” das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. Nas palavras do insigne doutrinador Leonardo José Carneiro da Cunha, supracitado:

 

"Exatamente por atuar no processo em virtude da existência de interesse público, consulta ao próprio interesse público viabilizar o exercício dessa sua atividade no processo da melhor e mais ampla maneira possível, evitando-se condenações injustificáveis ou prejuízos incalculáveis para o Erário e, de resto, para toda a coletividade que seria beneficiada com serviços públicos custeados com tais recursos."[4]

 

Com os chamados privilégios processuais ou como alguns preferem “prerrogativas” pretendeu o legislador, ao que parece resguardar o patrimônio público e o interesse coletivo, de toda e qualquer atividade danosa, eis que, uma eventual negligência processual por parte de um Procurador do Estado, ameaçaria não só sua credibilidade profissional, mas também poderia ensejar dano efetivo ao patrimônio público, atingindo, assim, diretamente os interesses do ente estatal e, por via reflexa, toda a coletividade.

 

Deste modo, quando o legislador pretendeu beneficiar ou privilegiar a Fazenda Pública, ele o fez expressamente, a exemplo dos prazos diferenciados para contestar e recorrer previsto, o reexame necessário, execução privilegiada, como já falamos acima.

 

Sob esse aspecto, entende-se para que a Fazenda Pública consiga atuar da melhor maneira possível, se torna fundamental que existam privilégios suficientes para tanto, pois quando a Fazenda Pública está em juízo, ela está defendendo os interesses do erário, logo, ao contestar uma ação ou recorrer de uma decisão, ela está protegendo o interesse público. Só por isso justificaria e justifica as vantagens processuais, acima mencionadas.

 

Neste sentido, forçoso concluir que o Estado não pode ser considerado igual aos demais que com ele, Estado, contendam. E, como já exposto no inicio desse trabalho, levando em conta que o princípio da igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais e igualmente os iguais, para que assim se possa alcançar a verdadeira igualdade, como pretendem alguns não se podem considerar inconstitucionais tais garantias.

 

Isso quer dizer que como a Fazenda Pública é diferente pelos motivos retro mencionados, consequentemente ela deve receber tratamento distinto da outra parte. Atinge-se, assim, a igualdade material, dispensando tratamento desigual aos que se encontram em situações desiguais, concretizando princípio constitucional de todo Estado Democrático de Direito.

 

Sob a égide do conceito de igualdade, por mais difícil que seja, temos que reconhecer que, em razão do interesse defendido pelo ente público em juízo, os privilégios processuais “em tese” não ofendem o principio da isonomia. Entretanto, as prerrogativas processuais da Fazenda Pública não cessam por ai.

 

Assim, amparado na premissa maior de que o interesse público deve prevalecer sobre o privado, o legislador desde logo tratou de elaborar normas que restringem a atividade judicante na concessão de liminares contra os interesses públicos. A primeira delas foi a Lei nº 2.770/56, que versava sobre a liberação de bens, mercadorias ou coisas oriundas do exterior, dando origem à Súmula 262 do STF. Em seguida veio à baila a Lei n.º 4.348, de 1964, impedindo a concessão de medida liminar em mandado de segurança que verse sobre reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou conceda aumento ou extensão de vantagens, condicionando a execução do mandado somente depois do trânsito em julgado a respectiva sentença.

 

Nesse mesmo ano, foi editada a Lei 4.357, de 16.07.1964, cujo art. 39 estabeleceu: "Não será concedida medida liminar em mandado de segurança, impetrado contra a Fazenda Nacional, em decorrência da aplicação da presente Lei". Todavia, no ano seguinte o art. 51 da Lei 4.862, de 29.11.1965, veio revogar esse dispositivo legal.

 

Após um intervalo de tempo considerável sem interferência do legislador e já na constância da Constituição de 1988, foi publicada a Medida Provisória nº 118, de 05.12.1989, transformada na Lei 7.969, de 1989, que estendeu às medidas cautelares o disposto no artigo 5º da Lei 4.348/64. (16)

 

Neste viés, o § 5º do artigo 1º da Lei 8.437/92 impede a concessão de liminar para deferir compensação de créditos tributários e previdenciários.

 

Já o artigo 2º da Lei 8.437/92 só permite a concessão de liminar no mandado de segurança coletivo e na ação civil pública após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito pública, que deverá se pronunciar no prazo de 72 horas.

 

E não seria diferente nos casos de concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública. De acordo com o artigo 1º da Lei 9.494/97, “aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei 4.348/64, no art. 1º e seu § 4º da Lei 5.021/66, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei 8.437/92”. Não nos resta dúvida de que na elaboração dessa lei, que disciplina a aplicação daquela tutela contra a Fazenda Pública a intenção do legislador é de evitar que, diante da vedação de liminar em mandado de segurança, o interessado se utilize do processo cautelar ou da tutela antecipada para obter o resultado similar.

     

É claro que a grande celeuma da antecipação da tutela contra a Fazenda Pública, se dá quando ela está no pólo passivo da demanda. No entanto, ela pode figurar em qualquer dos pólos da relação processual, seja no pólo ativo, na condição de autor ou assistente, seja no pólo passivo como réu, opoente, reconvinte ou excipiente, ou ainda como terceiro interessado.

 

Mas com certeza é mais comum que os entes públicos figurem como demandados. Um dos principais motivos se deve em grande parte pela ingerência do Estado na atividade econômica do país, outro se deve ao fato de que para a grande maioria dos desvalidos do Estado, ele constitui a última esperança para reaver pretensas perdas ou prejuízos imputados pelos sucessivos desmandos de governos em todos os níveis: municipal, estadual e federal.

 

Para a doutrina, a matéria não é tão pacífica quanto parece. Da análise de obras a respeito, como acontece em tantos outros assuntos na área de direito, verificamos que existem duas correntes: uma a favor e outra contrária ao cabimento da concessão da tutela em face da Fazenda Pública.

 

E mesmo com tamanha controvérsia e passados quase dez anos da entrada em vigor da atual redação do artigo 273 do CPC a sua aplicabilidade face à fazenda Pública não é pacifica, existem fortes argumentos tanto para possibilidade, quanto para a negatividade da aplicação da antecipação.

 

O primeiro óbice apontado pelos renomados juristas encontra-se no próprio sistema jurídico, como visto acima, inúmeras são normas que protegem a Fazenda Pública em razão do bem da vidaem litígio. Porisso a incidência da antecipação da tutela em ações que envolvam a Fazenda Pública como requerida não se coadunaria com os princípios e normas que norteiam o ordenamento

 

O segundo obstáculo seria o disposto no art. 475 caput e inciso II, in verbis, eis que grande é a dificuldade em saber: como seria possível antecipar os efeitos da tutela contra a Fazenda Pública, se esta está sujeita ao duplo grau de jurisdição e não produz efeito, senão depois de confirmada pelo tribunal, conforme dispõe o artigo 475 do CPC.

 

 

Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública.

§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não

o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.

§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a sessenta salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na

execução de dívida ativa do mesmo valor.

§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.

 

 

Com base nele, de que valeria o juiz antecipar os efeitos da tutela na sentença, ou mesmo confirmá-los na decisão de mérito, se impreterivelmente estarão sujeitos à revisão do órgão eminentemente tribunais superiores.

 

Assim, para muitos o duplo grau necessário consiste um entrave a concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, já que a decisão necessariamente teria que se submeter ao 2º grau de jurisdição. Na verdade, a tutela antecipada poderia até ser concedida, mas perderia sua razão de ser em face da remessa obrigatória.

 

Mesmo assim, dentre os doutrinadores, existe ainda aqueles que defendem a aplicação da tutela contra a fazenda pública, sustentando que a incongruência entre o artigo 273 e 475 do CPC é apenas aparente, de forma que pode ser harmonizada com a aplicação do princípio da proporcionalidade.

 

Além disso, o duplo grau obrigatório é exigido apenas nas matérias de extrema importância social como aquelas enumeradas nos incisos do artigo 475. Alguns ressaltam que seria incoerente admitir a tutela antecipada contra a Fazenda Pública não só pelo fato de o duplo grau necessário se tratar de mais uma prerrogativa, mas também por causa dos valores que envolvem a ré da suposta demanda.

 

Ainda no âmbito processual, com a edição da já citada Lei 9.494/97, a qual disciplina a concessão da tutela em face da Fazenda podemos afirmar que o ordenamento jurídico passou a admitir a concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, já que os dispositivos legais acima mencionados apenas passaram a restringir sua aplicação, em que pese os óbices apontados acima.

 

Na prática o que presenciamos é que a Fazenda Pública aproveitando-se da prerrogativa prevista no artigo 475 tem sustentado que não é possível a antecipação da tutela contra si, pois a eficácia de um provimento nesse sentido só surtiria efeito se a decisão do juízo a quo for ratificada pelo órgão eminentemente superior. Desde já quero externar minha posição contrária a essa.

 

Sob este aspecto citarei os principais doutrinadores favoráveis a sua concessão. Sendo salutar primeiramente trazer à colação a lição do nosso ilustre professor de Cássio Scarpinella Bueno[5]:

 

"A regra jurídica só pode encerrar critério de competência funcional, em nada inibindo a concessão de qualquer medida contra a Fazenda Pública, sob pena, pelas mesmas razões expostas ao longo deste trabalho, de não poder prevalecer por violar, em cada caso concreto, o amplo acesso à justiça.”

 

Já para Luiz Guilherme Marinoni[6], o direito que se aplica ao particular, também deve ser aplicado à Fazenda Pública, sob pena de se autorizar, ainda que por via indireta, violação aos direitos do cidadão, conforme a seguir consignado:

 

 

“(...)

se o legislador infraconstitucional está obrigado, em nome do direito constitucional à adequada tutela jurisdicional, a prever tutelas que, atuando internamente no procedimento, permitam uma efetiva e tempestiva tutela jurisdicional, ele não pode decidir, em contradição com o próprio princípio da efetividade, que o cidadão somente tem direito à tutela efetiva e tempestiva contra o particular. Dizer que não há direito à tutela antecipatória  contra a Fazenda Pública em caso de fundado receio de dano é o mesmo que afirmar que o direito do cidadão pode ser lesado quando a Fazenda Pública é ré.”

 

 

Carreira Alvim[7] aduz que não admitir a antecipação da tutela, por conta do duplo grau obrigatório, nas causas contra a Fazenda Pública, obrigaria também a não admiti-la, pelo mesmo motivo, nas causas contra os particulares em que houvesse recurso voluntário recebido nos efeitos devolutivos e suspensivos.

 

Mais adiante, seguindo o mesmo raciocínio, Carreira Alvim, com propriedade relata:

 

Em algumas hipóteses, o pedido de tutela é direcionado à própria preservação da vida humana, como nas transfusões de sangue não autorizadas por familiares por motivos religiosos, ou na autorização

para amputação de um membro de uma pessoa, em que, sendo indispensável a cirurgia, ela se recusa a dá-la; noutras, à manutenção da saúde do interessado, como sucedeu na liberação dos cruzados bloqueados, para fins de tratamento médico ou operações urgentes e, noutras, à sobrevivência do segurado, como na restauração de benefício previdenciário, dado o caráter alimentar dos proventos.

 

 

Desse “lado”, temos ainda o posicionamento de Antonio Claudio da Costa Machado[8], que sustenta que o duplo grau de jurisdição obrigatório para as sentenças, contrárias ao interesse público não é barreira à emissão de decisões interlocutórias contra o Estado, mas apenas uma garantia de que, havendo uma sentença desfavorável a ele, esta será necessariamente reapreciada por um tribunal.

 

Sustenta ainda, Humberto Theodoro Júnior[9] que, dada a diferença existente entre tutela antecipada e a medida cautelar, tem-se entendido que o particular, observados os requisitos do artigo 273, do CPC, tem direito de obter, provisoriamente, os efeitos que somente adviriam da sentença final de mérito, mesmo em face da Fazenda Pública, havendo a ressalva de Nelson Nery de que não pode haver violação à redação do artigo 100, da Constituição Federal.

 

Reconhecendo, ainda que de forma contida a possibilidade de antecipação da tutela contra a fazenda pública, manifestou-se João Batista Lopes[10], lecionando que "Conquanto admissível, a antecipação da tutela não poderá fugir às peculiaridades da execução contra a Fazenda Pública, o que, em termos práticos, obsta à plena eficácia da antecipação."

 

E também favorável à antecipação da tutela contra a Fazenda Pública, sustenta Luiz Rodrigues Wambier, que a decisão que concede a tutela antecipada não é sentença, portanto, não estando sujeita ao que determina o artigo 475, do Código de Processo Civil.

 

Na via transversa da possibilidade de concessão da tutela antecipada também existem renomados juristas, os quais sustentam não ser cabível a execução provisória contra a Fazenda Pública devido à falta de eficácia da sentença, enquanto esta não for confirmada pelo Tribunal e, em decorrência, adotam o artigo 475 do CPC como principal óbice à tutela antecipada contra as pessoas jurídicas de Direito Público. Francesco Conte[11], em seus ensinamentos, assim se preconiza:

 

Descabe, reitere-se, em perpesctiva de interpretação sistemática, a antecipação da tutela quando, no pólo passivo, figurar a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os municípios, posto que, se a própria sentença proferida contra estas entidades de direito público está sujeita ao reexame necessário, não confirmada pelo tribunal (art. 475, II, do CPC), a medida antecipatória, concedendo o próprio direito afirmado pelo autor, consubstanciando mera decisão interlocutória, a fortiori, não tem, na espécie, aptidão para produzir qualquer efeito. A eficácia do apêndice (decisão interlocutória) não pode ser maior do que a do próprio corpo.

 

Seguindo esse mesmo raciocínio, temos o posicionamento de Hugo Brito Machado[12], onde este assevera que

 

"...tal privilégio não consiste no direito ao duplo grau de jurisdição mas apenas na dispensa de iniciativa recursal da Fazenda Pública." dizendo, mais à frente, que "A obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição, em se tratando de sentença contra a Fazenda Pública, apenas significa que, vencida esta, considera a apelação sempre interposta, para proteger o ente público contra a eventual inércia de seus representantes judiciais. Os efeitos da sentença proferida contra a Fazenda Pública são exatamente os mesmos produzidos por uma sentença contra a qual foi interposta a apelação." e concluindo, em seguida, seu raciocínio, da seguinte forma: "Vê-se, portanto, que a prevalecer o argumento segundo o qual não é admissível a antecipação da tutela contra a Fazenda Pública em face do duplo grau de jurisdição, tem-se de entender também incabível a antecipação da tutela em qualquer caso, posto que sempre poderá ocorrer a interposição de apelação. Interposta esta, a sentença somente poderá ser executada depois de confirmada pelo Tribunal."

 

 

Também contrária a possibilidade de se antecipar a tutela em face do ente público, encontra-se o posicionamento de Raphael Silva Salvador que, anteriormente à Lei 9.494/97, disse ser “... impossível a tutela antecipada concedida a favor de autor contra a União, o Estado e o Município, pois aí, haveria, obrigatoriamente, pedido de reexame necessário se a concessão fosse em sentença final, o que mostra que não é possível, então, a tutela antecipada, que burlaria a proteção legal prevista no art. 475, II, do Código de Processo Civil.

 

Mesmo com os robustos argumentos dos doutrinadores acima citados opinando pela não concessão de tutela antecipada contra a fazenda pública. No sentido anversos desses e de acordo com o posicionamento doutrinário e jurisprudencial, bem como a previsão legal entendemos ser possível a concessão de Tutela Antecipada em face da fazenda pública.

 

No entanto, assim como a simples concessão prevista no art. 273 do CPC, esta impreterivelmente prescinde do preenchimento dos requisitos ensejadores da mesma.

 

Sem sombra de dúvida, é claro, que aquele que estiver autorizado a promover a execução provisória da decisão, se beneficiado com a tutela antecipada, terá vantagem sobre aquele que for obrigado a esperar a sentença de mérito e promover a execução.

 

Em certos casos a antecipação representa a própria satisfação do direito  no plano do direito material: por exemplo a realização de cirurgia inadiável, no curso do processo cujo objeto é discussão de cláusula  restritiva do plano de saúde, é um exemplo de satisfação plena no plano material ou no mundo dos fatos.

 

Sendo retratado nas palavras de Carreira Alvim, “Muitas vezes, a subsistência do direito subjetivo material, depende da antecipação de tutela, não comportando a hipótese de um juízo muito rígido de probabilidade, porquanto a sua denegação pode tornar sem objeto o próprio processo ou, no mínimo, imprestável a sentença que nele vier a ser proferida”.

 

Contudo, não podemos perder de vista que os efeitos de uma sentença prolatada contra a fazenda são distintos daqueles que emanam de outras sentenças, tal  distinção está apenas no fato de que enquanto as sentenças, em geral, podem ou não ser submetidas ao duplo grau, dependendo da vontade da parte vencida, a proferida contra a fazenda pública necessariamente será reapreciada, por força da vontade da lei, com o fito de se evitar prejuízos ao Estado.

 

Além do duplo grau há de observar que a efetividade do título judicial contra a Fazenda Pública, como se sabe, só ocorrerá através dos famigerados precatórios, conforme dispõe o artigo 100 da Constituição Federal, outro fator preponderante e incompatível com a celeridade processual tão preconizada pelo instituto da tutela antecipada.

 

O artigo 100 da Constituição Federal e os artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil, tratam da execução por quantia certa contra a Fazenda Pública. Preconizam que para o inicio do processo de execução, exige-se sentença transitada em julgado.

 

Tal previsão esta devidamente retratada nas palavras de Hugo Brito Machado "A sentença, mesmo sem trânsito em julgado, quando nesta houver sido concedida antecipação, ou a decisão interlocutória, presta-se como título adequado a instruir o precatório. Quando o juiz determinar a sua expedição, deixará claro que se trata de execução provisória, em face da nova figura processual, e dirá que o valor correspondente deve ser colocado à disposição do juízo. É certo que a Fazenda pública não pode ficar desprotegida. O valor a ser pago ao contribuinte, autor da ação de repetição de indébito tributário, em cumprimento do precatório, deve permanecer depositado até que transite em julgado a sentença final. Esse depósito será a garantia de que não se criou uma situação irreversível. É possível, outrossim, o próprio pagamento ao contribuinte, se este ofertar caução idônea... Na eventual ocorrência de trânsito em julgado de sentença julgando a ação improcedente, o valor à disposição do juízo será convertido em renda da Fazenda Pública.".

 

Corroborando esse entendimento citamos João Batista Lopes[13]:

 

Não havendo no regime do art. 273 do CPC nada que exclua o Poder Público de sua incidência, correta a conclusão que defende sujeição desta à norma contida naquele dispositivo legal (J.E.S. Frias, ob. cit., n.º 44, p. 69). O certo, porém, é que a execução provisória da medida antecipada, in casu, não poderá fugir da sistemática dos precatórios, se se tratar de pagamentos de somas em dinheiro, ainda que as prestações sejam de natureza alimentar, como já assentou o Supremo Tribunal Federal 

 

 

Neste viés, o artigo 100 da Constituição Federal ainda prevê que, formado o precatório e requisitada a verba à autoridade fazendária, para ser quitado o precatório deverá obedecer-se uma ordem cronológica de apresentação e o Supremo Tribunal Federal ao interpretar o artigo acima referido, decidiu que duas filas de precatórios devem ser observadas: uma relativamente a valores de natureza alimentícia e outra de precatórios referente aos de natureza não-alimentícios.

 

Portanto, não existe previsão legal para a quitação antecipada dos precatórios decorrentes de antecipação de tutela, já que o STF apenas estabeleceu a formação de apenas duas filas de precatórios, levando em conta a natureza da verba requisitada, sendo esse mais um entrave a viabilidade da consecução dos efeitos da tutela antecipada em face da Fazenda Pública.

 

 



[1] Fazenda Pública em Juízo, São Paulo: Dialética, 2007. p. 15.

 

[2] MEIRELLES, Lopes Ary. Direito Administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 647

[3] Apud Souto, João Carlos. A União Federalem Juízo. São Paulo: Saraiva, 1998. P.140.

[4] Fazenda Pública em Juízo, São Paulo: Dialética. p. 34.

 

[5] BUENO, Cássio Scarpinella, Aspectos Polêmicos da Antecipação da Tutela, pág.89, Editora RT, 1997, São Paulo.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 3. ed. São Paulo: Malheiros nº 4.17. p. 211.

[7] ARRUDA ALVIM, José Manoel. Manual de direito processual civil. Processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Vol. 2.

[8] MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Tutela antecipada, São Paulo, Juarez de Oliveira, 3ª edição, 1999.

[9] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela antecipada "in" Aspectos polêmicos da antecipação de tutela, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.

[10] LOPES, João Batista. Tutela antecipada e o art. 273 do CPC "in" Aspectos polêmicos da antecipação de tutela, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.

[11] CONTE, Francesco. A fazenda pública e a antecipação jurisdicional da tutela, RT 718.

[12] MACHADO, Hugo Brito. Tutela jurisdicional antecipada na repetição de indébito tributário "in" Revista dialética de direito tributário, nº 5, São Paulo, Oliveira Rocha, 1996

[13] LOPES, João Batista, ‘O juiz e a Tutela Antecipada’, Tribuna da Magistratura, Caderno de Doutrina, jun. 1996, p. 18)".