Era apenas uma fileira de pedras que avançava pelo mar e, em torno dela, desenvolveu-se uma das mais bonitas lendas de Paquetá, que nos foi contada por um preto-velho que viveu aqui durante toda a sua vida e que nos disse que a ouviu do seu avô, antigo escravo em nossa Ilha.

"Tudo aconteceu no tempo em que os escravos desembarcavam nesse cais, vindos de Brocoió, onde ficavam em quarentena antes de entrar em contato com a população de Paquetá... e é por essa razão que o cenário dessa estória tem como palco essa velha ponta-de-cais.

O seu personagem principal foi um preto muito forte e muito triste, chamado pelos outros negros de João Saudade e pelos seus feitores de João da Nação Benguella (1).

O seu nome criou fama nas senzalas e , na prosa dos mais velhos , foi um mito: falado e venerado por toda a gente escrava ...

João da Nação Benguella, no tempo dos mil réis, foi vendido aqui por 400$000, avaliados pela força e robustez da exuberância muscular do seu contorno ...

Dizem que veio da Àfrica num dos navios negreiros de Francisco Gonçalves da Fonseca, o dono do Solar D'El Rei ...(2) e, como era costume, depois da quarentena em Brocoió, veio para cá numa falua (3) que uma vez por semana encostava nesse cais daPraia das Pedreiras (4).

Com muita resignação, João obedeceu ao costumeiro ritual, porque no seu peito não havia mais lugar nem para ódios enem para revoltas, porque já estava todo cheio de um outro sentimento: a enorme saudade que lhe fazia sofrer por Januária, e lhe fazia viver pelo amor de Loreano, um pretinho rechonchudo, filho deles dois.

João Saudade não podia imaginar o que fora feito deles ... Quando foi capturado, não houve tempo nem para um abraço e nem para um "adeus" ...

Passavam-se os anos lentamente e João passava os anos rezando pelo amor daqueles dois. No mais íntimo de si havia uma certeza estranha: uma esperança que lhe dava fé ... E ele acreditava com convicção que a falange de Iemanjá, que o trouxera sôbre as ondas, também traria os seus dois amores que, um dia, ele esperava ver também chegando naquela "ponte", depois de alguma quarentena em Brocoió ...Algo lhe dizia que o destino havia reservado um reencontro para eles... e era por ele que João rezava todos os dias para os seus "Guias" e esperava ali a cada desembarque.

Passavam-se os anos ... e cada ano que passava parecia ser mais longo ... mas, nenhum, maior do que a perseverança de João "Benguella", que durante os dias trabalhava nas caieiras e à noite rezava naquela ponta-de-cais ... Falava com a Lua e com as estrelas ... Molhava os pés cansados nas águas calmas do mar ... e lavava todas as suas mágoas nas gotas do sereno ... Só quando ouvia o pio das primeiras aves despertadas é que parava de falar com a Estrela D'Alva e, então, olhava pr'o Céu ... despedia-se da noite já passada ... dava um bom-dia para a madrugada ... e voltava, devagar e triste, para as tristezas da senzala ...Todos os dias João chegava cabisbaixo... cansado de rezar em vão por encontrar um lenitivo para a dor desta saudade que, amargurando a sua alma, minava a resistência do seu coração, transbordando-lhe nos olhos, refletida em cada lágrima...

                                                                    ( 1 )

João não era apenas um escravo triste ... Para alguns dos velhos, era a própria encarnação humana da Saudade ...

E o tempo passava como de costume, no correr dos anos:  João, sua saudade, os desembarques e a velha ponta-de-cais ... Mas eis que um dia, João não regressou com os passarinhos ... e os escravos, na senzala, deram falta dele mas, em vão, o procuraram ...

O desaparecimento de João "Saudade" aconteceu na manhã seguinte de uma 6ª feira em que a rotina da noite foi quebrada por um fato de espanto e de mistério pois, talvez por dois minutos ou um pouco mais, um clarão estranho transformou a noite em dia, sem que ninguém soubesse explicar o por quê ! ... Apenas viram surgir no céu uma estrela muito grande e muito bela, e os seus raios de luz, iluminando a noite, encheram a Ponte da saudade de um clarão de prata, que foi visto por todos na senzala... E quando o clarão se apagou, João Saudade, que rezava no cais, havia desaparecido também, juntamente com a estrela brilhante e os seus raios de luz ...

Ninguém  jamais soube explicar o que aconteceu àquela estrela e a João Saudade que, desde aquela noite, desapareceu misteriosamente ...

Tornou-se crença dos escravos que aquela estrela foi a falange iluminada de Iemanjá que, pela força da saudade de João "Benguella", teve permissão do Astral para vir buscá-lo, pondo fim ao sofrimento do seu Banzo (5) :  saudade imensa pela qual viveu e pela qual sempre pediu p'ra ir embora ...

E o cais onde João ficava passou então a ser chamado de "Ponte da Saudade", transformando-se em local de rezas e de rituais dos negros, na esperançade que umdia, pela força da fé, eles também fossem levados por alguma estrela ...

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  1. – Os escravos eram classificados pelas suas nações de origem: Benguella, Cabinda, Mina, Moçambique, etc ...
  2. – Nome que recebeu o prédio após haver hospedado por várias vêzes D.João VI e sua Corte.
  3. – Tipo de embarcação comumente usada nas caieiras.
  4. – Era o nome de uma antiga praia situada entre a praia "da Guarda" e a praia "Comprida", conforme comprovam escrituras do século XIX.
  5. – Tristeza profunda que acometia os negros escravizados.

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PS – Texto original do livro LENDAS DE PAQUETÁ, 2ª Edição; R.J.;Gráfica JRB; de Marcelo A. L. Cardoso.