Um filme de capital teuto-britânico com custo relativamente baixo (25 milhões de dólares), para os padrões internacionais, O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener) foi lançado em 2005. Com roteiro baseado na obra de John Le Carré, escritor inglês de romances de espionagem, inicialmente, seria dirigido por Mike Newell, que acabou optando por trabalhar em Harry Potter e O Cálice de Fogo (2005).É aí que entra o brasileiro Fernando Meirelles (Cidade de Deus - 2002e Ensaio Sobre a Cegueira - 2008), que já havia recusado uma grande produção - o novo 007. Um orçamento baixo significa mais liberdade para o diretor, porque os investidores vão ter menos o que perder, caso não dê certo, foi o que declarou Meireles a Carlos Cyrino, na revista eletrônica especializada em Cinema Delfos, ao dizer por que aceitou o trabalho. 

No elenco, Ralph Fiennes (A Lista de Schindler – 1993 e Dragão Vermelho – 2002) e Rachel Weisz (O Júri – 2003 e Constantine – 2005) protagonizam Justin, um diplomata britânico vidrado em jardinagem – metáfora que antecipa, no micro, a essência do enredo – e Tessa, uma ativista de direitos humanos.

A produção foi indicada para algumas das principais premiações do cinema mundial, como o Oscar, o Globo de Ouro e o Festival de Veneza. Merece destaque a atriz Rachel Weisz, que ganhou, nos dois primeiros, a estatueta de melhor atriz coadjuvante.

Na história, Justin e Tessa se apaixonam após um pequeno desentendimento numa palestra ministrada pelo diplomata, sobre a política externa britânica. Designado para a África - mais precisamente, Nairóbi, capital do Quênia - antes, Justin casa-se com Tessa, e a leva consigo. Em solo africano, a ativista se torna amiga do médico negro Arnold – fato que gera desconfianças no marido e, por vezes, até mesmo no espectador – e começam a investigar, secretamente, o envolvimento de multinacionais farmacêuticas e governos de países ricos em um esquema que testa um novo medicamento para Tuberculose usando como cobaias pacientes soropostivos, sob a idéia de que "vão morrer de qualquer forma, mesmo". Abertamente crítica, Tessa incomoda e chama a atenção dos poderosos envolvidos na trama, até ser assassinada. É aí que o filme começa de fato, com a busca de Justin por respostas. E, como pano de fundo, o retrato das mazelas da África, que são, no fim das contas, a grande intenção do longa, que toma um ponto específico para apontar todo o restante.

Com um enredo que tem a dúvida como o elemento causador das ações das personagens – seja na investigação de Tessa sobre os testes ou na busca de Justin pelo que, de fato, aconteceu com a esposa – O Jardineiro Fiel se pauta pela descontinuidade do discurso (modo pelo qual se conta a história), forma que confere identidade à obra, ao mesmo tempo em que torna compreensível a história. O filme começa a ser contado pelo meio (in media res, livremente traduzido como "no meio da coisa"), considerando que a história se inicia quando Justin e Tessa se conhecem. Na seqüência, a montagem se dá com base na exploração intensa da figura que no cinema costuma-se chamar de flashback, que é a retomada do que aconteceu no passado do tempo discursivo. Essa desconexão entre as velocidades da história e do discurso fragmenta o texto fílmico, mas ela própria reorganiza tudo, como se a narrativa fosse a montagem de um quebra-cabeça. E aqui vale pensar na interação - através desses recursos de descompasso entre forma e conteúdo - de elementos, que num primeiro momento parecem irrelevantes, com outros, de forma que, juntos, esclarecem as desconfianças geradas nas personagens e espectadores.

A supressão de dados que somente mais a diante são apresentados é outro fator importante. Embora a narrativa seja onisciente, isto é, o discurso se dê de fora do espaço-tempo ficcional, com o narrador tendo a visão de tudo, em alguns momentos, o foco narrativo se fecha. Por exemplo, num cena em que Tessa está no hospital onde acabara de dar à luz, a tomada começa como se o narrador assumisse o ponto de vista do colega de Justin, Sandy (Danny Huston), que chega, naquele momento, para uma visita. O espectador tem acesso à mesma quantidade de informação que ele, ao ver Tessa com um bebê negro nos braços, quando já existiam várias conjecturas quanto a um possível relacionamento dela com Arnold.

O final (calma, não vou contar!) é previsível, mas, certamente é uma surpresa. E não há paradoxo nisso. Na história, como em o Senhor das Armas (2005), filme norte-americano dirigido por Andrew Niccol, a lógica é a de que não há muito o que fazer, e uma "ordem superior" naturalmente vai se sobressair, ditando as regras do jogo sem dar outra escolha a não ser aceitá-la. No entanto, mais uma vez a poética faz a diferença, e isso não é dito de qualquer forma. Elementos da diegese, ou seja, da realidade fílmica, se sobrepõem entre si, alterando o grau de relevância que teriam em um discurso comum. Da mesma forma como aconteceu ao longo do filme, fragmentos que, normalmente passariam despercebidos, acabam produzindo sentido além do habitual.

Assim, a poética do filme parece mesmo ser o grande elemento. E um ponto crucial para tudo isso, o que já é praticamente consenso da crítica especializada, é a escolha do diretor. A presença de Fernando Meirelles é fundamental, residindo no fato de que, provavelmente, nenhum europeu ou norte-americano dirigiria uma obra como O Jardineiro Fiel com a ótica de Terceiro Mundo dada pelo brasileiro. Os mínimos detalhes na construção do que se conta revelam como, em um mundo globalizado econômica e culturalmente, os problemas de um país, para muitos, insignificante, e o dia-a-dia numa cidade rica podem estar interligados. Os projetos de modernidade sustentados por uma visão que, embora mais antiga que o Novo Mundo, parece nunca ficar velha. O filme desmascara, adubando plantas, a farsa das boas intenções apregoada a todo instante pelas grandes potências em suas missões de paz e ajuda humanitária. Definitivamente, O Jardineiro Fiel é o tipo de filme que não faz sentido ter final feliz.